60 famílias, 20 das quais sírias, habitam ocupação no bairro da Liberdade, na região central da capital paulista; “movimento de sem teto demonstrou uma linda solidariedade conosco”, diz refugiado
Por Lamia Oualalou.
Silmara Silva poderia ter ficado mais duas horas na avenida Paulista para tentar vender as jóias que ela mesma faz, mas a forte ventania e as ameaças de chuva a fizeram voltar para casa. Ou, dito melhor, para “o prédio”. É assim que a artesã de cabelos vermelhos define a ocupação onde ela mora no bairro da Liberdade, na região central de São Paulo.
O imóvel de onze andares era da Telesp, a antiga operadora de telefone do Estado de São Paulo. Ela conta que está abandonado há 15 anos. “Apesar disso, está em boas condições, a luz e a eletricidade nunca foram cortadas, e a gente fez uma vaquinha para consertar um dos elevadores”, acrescenta a mulher, vestida de uma longa saia feita por uma amiga artesã. Na fachada do prédio, é possível ler nas bandeiras vermelhas penduradas as palavras “Terra Livre”. É o nome de um dos grandes movimentos populares de moradia da metrópole paulista.
Originaria de Rondônia, Silmara veio para São Paulo sete anos atrás para fazer um curso de cabeleireira. Ela viajou com uma mala e a filha de quatorze anos. Colorista, trabalhou em vários salões até janeiro passado, quando ela desenvolveu uma alergia ao formol usado nas escovas progressivas. “Fiquei desempregada, gastei todo meu dinheiro guardado para pagar os médicos, já que não tenho plano de saúde, não dava mais para pagar aluguel; foi quando uma amiga me apresentou o Terra Livre”, conta. Um mês de ocupação, em outro prédio, no bairro de Pinheiros (zona oeste de São Paulo), foi suficiente para convencer a cabeleireira de virar militante do movimento. “Mas é que, quando cheguei aqui, tudo mudou, porque a galera é muito especial. Daí virei coordenadora do prédio, cuidando deles, além do meu trabalho”, diz Silmara, convidando o visitante a subir no elevador.
Ocupando o imóvel há apenas 40 dias, a tal “galera” é constituída por 60 famílias, das quais 20 vieram da Síria. “Temos dois sírios, três egípcios, mas a grande maioria é composta de palestinos que já eram refugiados na Síria. Todos tiveram que deixar o país por conta da guerra”, conta. Alguns chegaram diretamente do aeroporto, outros foram encaminhados por mesquitas, onde eles dormiam, esperando um teto. “Quando eles chegam, organizações da sociedade civil como Caritas encontram um lugar para eles, mas não podem ficar mais do que 90 ou 120 dias, depois, eles têm que se virar. Não é fácil, já que muitos não têm a documentação em dia, não têm trabalho, e, sobretudo, não sabem falar português”, diz a rondoniense. Os refugiados ocupam os três últimos andares do prédio, enquanto os sem-tetos brasileiros estão nos seis primeiros.
Apesar da distância entre Síria e São Paulo, o Brasil é hoje a nação que mais concedeu asilo a refugiados sírios na América Latina. A Agência da ONU para refugiados (Acnur) calcula que já são 2.077 no território nacional. Eles são atraídos pela presença de uma comunidade sírio-libanesa desde o século passado, mas também pela facilidade de se conseguir asilo. Em 2013, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) adotou uma resolução para desburocratizar a emissão de vistos para cidadãos sírios e outros estrangeiros afetados pela guerra. As facilidades expirariam no fim do mês de setembro, mas o governo as prorrogou.
A artesã Silmara Silva coordena o “prédio”, como ela mesma chama, no qual moram também sírios, palestinos e egípcios
Yahya Moussa é um dos refugiados que se beneficiou desta burocracia mais flexível. Ele chegou ao Brasil nove meses atrás. Após um tempo na mesquita de Guarulhos, o homem, de cerca de 45 anos, conseguiu trazer a esposa, Zubeida, e a filha do casal, Alma. “A gente considera o Brasil como uma nação mãe, sabe”, explica o pai de família, em árabe. “Conseguimos tirar um visto no Consulado do Brasil em Beirute, onde nos refugiamos depois de fugir de Damasco. Os outros consulados não queriam saber nada da gente”, completa. Após três anos de espera no Líbano, a Europa, mais próxima, já não era mais uma opção. “Uma parte da minha família morreu afogada no Mediterrâneo. Um pai, uma mãe, e dois filhos. Não podíamos correr este risco”, relata Zubeida, cujos cabelos são cobertos por um véu discreto.
A vida no Brasil não é fácil. Ao contrário do que acontece em países europeus, o governo não proporciona nenhuma ajuda para encontrar um emprego ou um teto. “Não importa. Pelo menos aqui, nossa filha vai todos os dias para escola, não tem mais medo. Em quatro meses, já aprendeu o português”, insiste Yahya. Para sobreviver, ele arrumou um bico num pequeno restaurante que faz sanduíches falafel. “Quando falar português, vou conseguir algo melhor”, assegura, cheio de esperança.
No local onde a família de Yahya está acampada, há apenas colchões, um sofá velho e uma mesinha
A questão da moradia, porém, é crítica. Além da pequena renda, Yahya não tem nenhuma condição de arranjar um fiador. “O movimento de sem-tetos demonstrou uma linda solidariedade conosco, não sei quanto tempo a gente vai poder ficar nesta ocupação, por enquanto, não temos outra opção”, completa o palestino. Como todos seus companheiros, ele ficou impressionado pelo alto custo de vida em São Paulo.
Na sala onde a família está acampada, há apenas dois colchões, um velho sofá recuperado, e uma mesinha onde eles convidam o visitante para beber o chá. Para a pequena Alma, que corre e dança no espaço, parece o paraíso. Ela insiste para mostrar à reportagem de Opera Mundi, página por página, os cadernos da escola municipal onde passa as manhãs. “Aqui, desenhamos a família, aqui aprendemos as letras do alfabeto”, enumera a menina, com cinco anos e meio. Adora posar para fotos e, quando o faz, já adota as posturas das meninas brasileiras, ondulando o corpo e inclinando o rosto. Feliz, ela entoa cantigas brasileiras, como “atirei um pau no gato”, trocando apenas algumas palavras. Em seguida, Zubeida pede para ela cantar em árabe. “A gente vai ter que ensinar o idioma para ela em casa, senão, vai perder tudo”, explica a mãe.
Outro elemento da cultura que Alma não pode perder é a música. Para isso, a família conta com a ajuda de outros refugiados, tal como Salam Sayed, que mora no oitavo andar, junto com outros solteiros. “Os palestinos e os sírios moram juntos, sem separação nos andares deles, enquanto nós brasileiros erguemos paredes de madeira, para ter mais privacidade”, afirma Silmara, enquanto bate na porta do palestino. “Boa tarde, Salim, podemos entrar?”. “Meu nome é Salam”, responde um grande homem magro, abrindo um largo sorriso.
O palestino Salam, que mora na ocupação, comprou forno profissional e fogão para fabricar doces árabes e vender
Silmara pede desculpas. Crescida em Rondônia, ela nunca teria imaginado esta convivência diária com pessoas falando apenas árabe, com nomes “diferentes”. “Confesso que, quando comecei a coordenar a ocupação, achei várias vezes que não ia conseguir, a gente mal se comunicava”, acrescenta a militante. No dia a dia, ela conta com a ajuda de Hassan, um brasileiro de pais palestinos, que faz a tradução entre as duas comunidades. Duas vezes por semana, uma voluntária francesa, Cecília, vem dar aulas de português aos refugiados.
Salam conhece apenas 50 palavras em português, mas já conseguiu montar uma pequena empresa na ocupação. Ele comprou um forno profissional e um fogão, ambos usados, e prepara doces típicos que dois sobrinhos dele, também refugiados, vendem na rua. “Daqui a quatro dias, vou receber caixinhas de papelão que encomendei, vai ficar muito bonitinho”, garante. O palestino já encontrou o nome da marca: “as comidas da paz”. Em árabe, Salam significa “paz”.
Salam toca alaúde, improvisa músicas brasileiras e anima as confraternizações da ocupação
Feliz de construir uma nova vida, Salam não esquece o que deixou para trás. “Em Damasco, eu tinha um restaurante, uma empresa de fabricação de objetos de decoração, fazia parte da união nacional dos artistas”, conta, exibindo um pequeno cartão. “Eu faço escultura, desenho, toco música”, continua, pegando um alaúde, o único objeto que conseguiu levar de Damasco para Beirute, e, depois, para São Paulo. Silmara não esconde a admiração. “Ele toca maravilhosamente, a gente fez um sarau no sábado passado, ele se apresentou e improvisou uma melodia brasileira com este instrumento”, conta.
Como a maioria dos sem-teto brasileiros, Silmara estudou poucos anos na escola e nunca teve acesso a uma educação artística. Ela fica muito impressionada pelo nível de cultura dos novos chegados, e pelo fato que perderam tudo, de um dia para outro: casa, emprego e até parentes. “Tem o caso de uma família que nós trouxemos para aqui, um pai com dois filhos e quatro meninas; não deixaram a mãe embarcar, você imagina o sofrimento dela? Ver os seis filhos partirem em direção de um país totalmente desconhecido, e ficar atrás? Eu abracei a causa dos refugiados depois que conheci este pai”, conta a brasileira, emocionada. No começo de setembro, a mãe finalmente chegou a São Paulo, após três meses de separação.
Para Silmara, a experiência ajuda muito os sem-tetos a relativizarem as dificuldades. “Nos reclamamos das dificuldades do dia a dia, por morar em ocupação, por ter que dividir um espaço pequeno, mas isso é nada perto da luta deles para chegar até o Brasil”, diz. Ela pede para Salam improvisar mais uma vez uma música brasileira. Mas esta noite, o refugiado prefere lembrar uma melopéia [canto ritmado que acompanha uma declamação] da sua região de origem. Um tanto melancólico, ele começa a tocar, em nome de todos os que não conseguiram ainda, como ele, uma terra segura para viver.
Na porta de um dos apartamentos onde moram alguns dos refugiados, a inscrição “Eu amo Allah”
Fonte: Opera Mundi.