“Em vários países, a Internet é considerada um direito fundamental. No Brasil, estamos tornando um direito governamental. Tudo fica para decreto.”
“Hoje é o dia de se investir contra a internet. Peço a atenção dos partidos de oposição. Tratar com pressa não é boa coisa.”
“Há uma ofensiva do governo para controlar a internet. A internet não pertence ao Estado. A internet pertence aos cidadãos. É livre e foi criada para ser livre”, disse.
As frases, proferidas pelo deputado Miro Teixeira (PDT/RJ), ilustram bem o que aconteceu nesta quarta-feira, 7/11, no Plenário da Câmara dos Deputados, ao aprovar dois projetos de lei que tipificam crimes cometidos pela Internet e adiar para a próxima semana a votação do Marco Civil da Internet, que trata dos direitos dos internautas e dos deveres dos provedores de acesso e de serviços/conteúdos.
Criminalizamos a rede, mas não conseguimos chegar a um consenso sobre as liberdades que queremos defender. Entre elas, o princípio da neutralidade de rede, que de fato merece um debate mais aprofundado no Congresso, especialmente diante das implicações que uma regulamentação posterior, mal conduzida, possa ter, vis-à-vis às últimas declarações do Ministro das Comunicações Paulo Bernardo, já que o novo texto do Marco Civil delega a regulamentação das exceções ao Poder Executivo.
Me desculpe mais uma vez o Ministro Paulo Bernardo, mas não consigo ver no que o princípio de neutralidade de rede _regulamentado ou não pela Anatel _ ajudará a definir “quem vai ganhar o quê” com o atual modelo de negócios da internet e nem a “separar os interesses das grandes corporações da internet dos interesses de usuários individuais”.
Certamente, ministro, a julgar por suas declarações, vai separar os interesses dos usuários individuais e das grandes corporações da internet dos interesses das operadoras. Basta ver como elas têm se portado até hoje em relação à iniciativa dos pontos de troca de tráfego, PPTMetro, do Nic.br…
Uma das principais vantagens do modelo de pontos de troca é a racionalização dos custos, uma vez que os balanços de tráfego são resolvidos direta e localmente e não através de redes de terceiros, muitas vezes fisicamente distantes. Outra grande vantagem é o maior controle que uma rede pode ter com relação a entrega de seu tráfego o mais próximo possível do seu destino, o que em geral resulta em melhor desempenho e qualidade para seus clientes e operação mais eficiente da Internet como um todo.
Acordos multilaterais e bilaterais de troca de tráfego podem resultar em economia de recursos com a contratação de banda e a melhor qualidade de interconexão. Razão pela qual as operadoras brasileiras ignoram a iniciativa de uso dos PTTs geridos pelo PPTMetro.
De novo é fácil entender: hoje, no Brasil, quem solicita a troca de tráfego com determinada operadora tem que ir até ela para buscar o que deseja. Ou seja, tem que levar uma conexão direta até o ponto da troca (quase sempre o datacenter da operadora ou do provedor controlado por ela). Ora, quem cobra por essa conexão _ muitas vezes um valor maior que o custo de uma linha de comunicação de dados padrão para um provedor internet? A operadora, claro.
Vou além? Lembram da Taxa Google, defendida pelo senador francês Philippe Marini e pelo presidente da Airtel, da Índia, Sunil Bharti Mittal?
Pois é… me lembrei dela quando li sua declaração, ministro Paulo Bernardo: “Nem tudo que parece ser de graça é de fato de graça e os grandes sites de busca hoje estão trilionários”.
Pois bem… É uma prática corrente do Google a instalação do chamado Google cache, um conjunto de equipamentos colocados dentro da operadora para facilitar o acesso dos clientes dessa operadora aos seus conteúdos mais requisitados. Onde o cache inexiste, seja pela natureza do conteúdo acessado ou por interesse da operadora, o acesso precisa ser roteado através das redes de comunicação de dados que formam a malha da internet, muitas vezes usando diversas redes, de diferentes operadoras. A tal Taxa Google seria uma taxa paga pelo Google pela interconexão das redes, como a taxa cobrada hoje entre as redes fixas e as redes móveis.
Mais uma vez, a lógica das operadoras é a de ganhar sempre, dos dois lados: de quem quer ter acesso ao conteúdo e de quem provê o conteúdo. Não contentes apenas em vender o acesso para o usuário, querem que os provedores do conteúdo que esse usuário deseja acessar também paguem por fornecerem esse conteúdo, que na visão delas, operadoras, sobrecarrega a rede. É como se elas dissesse: hei, você aí, que entope a minha rede, e ganha muito com isso; você também tem que me pagar um pedágio por eu ter construído a estrada que escoa a mercadoria que você vende, além daquilo que você já me paga por levar a rodovia até a sua porta.
Explico. Tradicionalmente, cada ponta da Internet contrata a banda de que precisa e isso deveria ser o bastante para a cadeia de infraestrutura. Sempre foi assim. Um grande consumidor de banda, como por exemplo um provedor de vídeos, contrata e paga por sua conexão à rede. O mesmo ocorre com o consumidor, que pode escolher entre os diferentes planos, de acordo com a banda contratada. Portanto, no caso do provedor de vídeos o pagamento pela banda já ocorre. Se houver pagamento adicional, haverá cobrança dupla.
No extremo, imagine se a companhia de eletricidade quisesse participação no lucro das indústrias que usam eletricidade!?!
Pois bem, nada disso deveria dizer respeito ao princípio básico da neutralidade de rede. Aquele que estabelece que todos os pacotes de determinada natureza devam ter tratamento isonômico, ou seja, sejam tratados da mesma forma, sem discriminações quanto ao conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo utilizado na comunicação. Que um provedor de serviços de Internet não poderá tratar diferentemente um serviço online de vídeo de uma empresa concorrente, em benefício de um serviço análogo por ele gerenciado, por exemplo.
Todas as declarações do atual ministro são argumentos das operadoras na briga para a mudança do modelo de remuneração da Internet. O que remete a outra discussão que, ontem, acabou por provocar novo adiamento da votação do Marco Civil na Câmara.
Neutralidade não deveria dizer respeito a planos e tarifas relacionados a velocidades e volumes, argumento usado pelo deputado Ricardo Izar (PSD-SP), ao comprar a internet com uma estrada congestionada. “Se um usuário paga R$ 9,90 para ter só e-mail e outro paga R$ 200 para baixar filmes, quem paga caro tem de ter prioridade na hora do congestionamento ou as operadoras terão de aumentar o preço do pacote mais barato”, disse ele.
Não senhor… Isso é o que as operadoras gostariam que acontecesse. Hoje, na estrada congestionada da Internet, mesmo quem tem uma Ferrari anda na mesma velocidade de quem tem um Fusca, simplesmente porque os veículos não são discriminados por marca ou modelo. Misturam-se no bolo engarrafado. Só aos veículos de emergência é dada prioridade para que andem em uma velocidade acima da média. Em condições normais de tráfego, a Ferrari dispara, observados os limites de velocidade estabelecidos, entrega seus pacotes mais rápido do que quem anda de Fusca. Imaginemos que a Ferrari seja um pacote de VoIP e o Fusca o pacote de e-mail. É exatamente o que já acontece hoje na Internet. Por razões técnicas da natureza do serviços que prestam, o VoIP anda mais rápido, sem que isso pese no valor pago. O valor do pago está relacionado às condições da estrada onde Ferrari e Fusca andam, mais larga ou mais estreita.
Explico. A neutralidade de rede prevista no Marco Civil não proíbe cobrança por volume de tráfego de dados, mas apenas a diferenciação de tratamento do pacote. O que o Marco Civil proíbe é a diferença de qualidade, mas não a de quantidade. Hoje, de certa forma, a cobrança é feita indiretamente por volume de tráfego, com base na capacidade máxima do fluxo de dados da conexão. Para usuários domésticos, por exemplo, cobra-se proporcionalmente à “capacidade da estrada”, ou seja, quantas pistas ela tem. Se a estrada é mais larga (10-20Mbps), paga-se mais do que quando é mais estreita (1-2Mbps). Como a neutralidade garante que os pacotes são enviados de um ponto a outro da rede sem que se faça distinção entre eles, com uma estrada mais larga, mais pacotes podem ser enviados ao mesmo tempo.
É em função dessas diferenças no tráfego que Demi Getschko, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), costuma dizer que neutralidade da rede é um conceito bastante complicado de se discutir, já que ela deve ser exercida em cada camada da rede, com diferentes implicações para cada uma dessas camadas. Em geral, segundo ele, neutralidade deve ser uma equação que equilibre qualidade e quantidade, com diferentes níveis de serviços, mas sempre garantida a não-discriminação dos pacotes.
Antes de qualquer coisa, é necessário dividir os serviços entre aqueles que não podem sofrer atraso e os que, se houver algum atraso razoável, não estariam prejudicados. Voz sobre IP (VoIP), por exemplo, seria um exemplo da primeira categoria, e correio eletrônico seria um exemplo da segunda categoria. Portanto, seria necessário, a seu ver, razoabilidade na administração desses serviços, de modo a garantir melhores conexões para os serviços que são sensíveis ao atraso.
O Marco Civil faz isso. De acordo com o texto proposto, o tratamento diferenciado a vídeos em tempo real ou mesmo a VoIP, por exemplo, está assegurado. Eles podem ser priorizados por motivos técnicos justificáveis, que garantem a qualidade da boa prestação do serviço, sem que haja, contudo, violação ao princípio da neutralidade.
Outro princípio importantíssimo é que a inteligência da Internet está nas pontas, nos computadores ou terminais dos usuários, e não no núcleo da rede – e qualquer terminal pode se comunicar com qualquer outro. Esse conjunto é que permite e garante a inovação. Permite a livre concorrência e o surgimento de novos atores no mercado. Qualquer pessoa pode inventar uma nova aplicação e disponibilizá-la na rede, sem solicitar permissão a ninguém, sem ter de pagar nada a mais por isso, além da contratação da banda necessária para a consecução de seus serviços com qualidade. Não há barreiras que impeçam que determinados produtos circulem pelas estradas que formam a malha de tráfego da Internet.
Modelos diferenciados de cobrança considerando a origem e o tratamento dos pacotes poderiam resultar no fim do modelo descentralizado da Internet e em maior controle do meio em si, impedindo que determinadas mercadorias trafeguem livremente. Empresas de telecomunicações não poderão tratar de forma discriminatória aplicações que permitam a realização de conversas por voz por intermédio da rede. Na estrada, a Ferrari paga o mesmo pedágio que o Fusca. Mas como o dono do Fusca não necessita andar em altíssima velocidade, ele pode optar por usar estradas secundárias, onde a quantidade de pedágios é menor, o que faz o custo total pelo uso da estrada ser menor também. Dentro da estrada que você escolheu, tudo tem que ser tratado da mesma forma.
Os objetivos do Marcos Civil, ao preservar os direitos de todos os cidadãos e as características básicas da Internet, são garantir a neutralidade da rede e promover a inovação, proteger a liberdade de expressão e a privacidade do usuário, além de impedir propostas autoritárias que venham a desfigurar a natureza aberta, não proprietária e distribuída da Internet. É preciso que seja aprovado na Câmara, para que as discussões a respeito continuem no Senado, até mesmo para balizar a aplicação dos dois projetos de lei sobre crimes cibernéticos já aprovados, especialmente nos artigos 10 e 15, que tratam dos logs e da remoção de conteúdos. Dois pontos, aliás, tão polêmicos no novo texto do Marco Civil quanto a neutralidade.
É o Marco Civil que, em linhas gerais, definirá os limites da mão pesada do governo sobre a Internet. Estabelece os direitos, as garantias e as responsabilidades dos usuários e provedores de serviços de internet, além de padronizar diversos conceitos e estabelecer princípios e diretrizes para o uso da Internet no Brasil.
“A aprovação do projeto é de extrema urgência. Será muito importante para evitar contradições e inconsistências na regulação de outros temas relacionados à internet e há muito tempo têm sido cobrados pela sociedade – como a proteção de dados pessoais, os cibercrimes e o comércio eletrônico”, ressalta o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira.
Não discuti-lo e aprová-lo, considerando todas essas questões, aproveitando-se de manobras políticas, é dar razão ao deputado Miro Teixeira.
Fonte: http://idgnow.uol.com.br/blog/circuito/2012/11/08/sem-o-marco-civil-a-internet-e-vuneravel/