Por Amanda Miranda.
O assédio judicial contra jornalistas, internacionalmente reconhecido como SLAPP – “Strategic Lawsuits Against Public Participation” ou “Estratégias Judiciais contra a Participação Pública”, em tradução livre, é uma ameaça cada vez mais comum não só ao CPF de pessoas físicas e ao CNPJ de organizações midiáticas, mas sobretudo à democracia e ao reconhecimento da função pública do jornalismo.
Alguns desses episódios ganham notoriedade pública rapidamente e repercutem mundialmente. Schirlei Alves, a repórter que denunciou a humilhação sofrida por uma jovem vítima de estupro em uma audiência judicial, foi condenada a um ano de prisão em regime aberto e ao pagamento de R$ 400 mil em indenizações a um promotor e a um juiz.
A jornalista é vítima do que a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) chama de assédio judicial, definido como “o uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalismo, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público”.
O juiz Rudson Marcos, autor de centenas de processos relacionados a este mesmo caso, também tentou intimidar artistas e pessoas públicas com ações sequenciais. Mas foi em um processo contra um jornalista que ele acabou condenado por litigância de má fé, já que processou um homônimo. Mesmo alertado do erro, decidiu insistir na ação. Após a sentença, desistiu de outros processos.
Segundo o Monitor de Assédio Judicial Contra Jornalistas divulgado em maio de 2024, pelo menos 54 novos casos de assédio judicial contra jornalistas surgiram no último ano – três deles são contra mim, Amanda, autora deste artigo, processada civil e criminalmente pela deputada federal bolsonarista Julia Zanatta por expor notas fiscais de pagamentos feitos pelo seu gabinete a um portal do interior de Santa Catarina. Além dela, seu marido também me processa por descobrir, via portal da transparência, que ele estava em uma viagem internacional fora da agenda de trabalho em um órgão público no qual tem cargo de confiança do governo estadual.
Há outros casos históricos em que a estratégia de calar e censurar jornalistas por meio de ações judiciais fica evidente: a jornalista Elvira Lobato enfrentou mais de uma centena de processos movidos por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus após uma reportagem publicada na Folha de São Paulo. O jornalista e escritor João Paulo Cuenca foi intimidado por 144 ações em tribunais distantes do país. Os processos também vinham da Igreja Universal.
Parece mera coincidência, mas é tática. Igreja, políticos, magistrados e figuras conhecidas como o empresário bilionário Luciano Hang partilham do mesmo objetivo: espalhar o medo nas redações e em profissionais independentes que atuam para revelar contradições do poder.
Sim, estamos falando de poder e da assimetria que costuma acompanhar esse tipo de ação – quem a move costuma ter dinheiro para bancar custas processuais e grandes escritórios de advocacia. No ranking da Abraji, Luciano Hang e Julia Zanatta aparecem como assediadores judiciais ao lado de outras figuras e instituições conhecidas, como a ONG Médicos Pela Vida e o empresário Daniel Dantas. Os réus, ao contrário, ficam com o prejuízo financeiro e, acuados, podem rapidamente tornar-se vítimas da autocensura.
Nova tese do STF pode ter repercussões
Os casos de assédio judicial contra jornalistas buscam intimidar a prática profissional, afetando tanto aqueles que trabalham em redações como os que atuam de forma independente, cobrindo e acompanhando círculos de poder. Buscam gerar danos financeiros e emocionais, além da tentativa de descredibilizar o trabalho daquele que é processado. Uma eventual condenação, ainda que injusta, pode minar a reputação do profissional com fontes e audiência.
O cenário não é dos mais otimistas, mas passou por avanços a passos de tartaruga neste ano. Juristas consideram a ADI 7055 o principal fato de 2024, e que pode ter repercussão em decisões que se arrastem por 2025 e pelos próximos anos.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pela Abraji e a partir dela fixou-se a tese de que jornalista só pode ser civilmente responsabilizado caso tenha publicado informação falsa com dolo ou culpa grave. Nestes casos, opiniões estariam protegidas em qualquer caso.
A discussão do STF também permitiu que se revisse a utilização dos Juizados Especiais Civis como tribunais de cerceamento do jornalismo. Além disso, o pedido da Abraji considerou que as ações que configurem assédio judicial sejam julgadas no domicílio do profissional ou do veículo de imprensa, com casos repetitivos sendo reunidos em um único processo. Algumas decisões judiciais já devem ocorrer em conformidade com o aval da nova jurisprudência.
Esse novo entendimento pode dificultar uma das situações mais clássicas de assédio: quando muitas pessoas em localidades diferentes processam um jornalista pela mesma matéria. No meu caso, respondo a processos de duas pessoas da mesma família em duas cidades diferentes. No de J.P Cuenca, foram 144 ações em localidades distantes. A tática é mobilizar o jornalista a gastar com viagens e advogados, com isso abalá-lo psicologicamente e evitar que ele volte a escrever sobre esses assuntos novamente.
Na sua tese no STF, o ministro Luis Roberto Barroso indicou como assédio comprometedor da liberdade de expressão “o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa”.
Mas mesmo assim, as ações caracterizadas como assédio não podem ser automaticamente suspensas. Diz a tese que, caracterizado o assédio judicial, “a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave”.
“Processa de volta”
Quando os casos de assédio judicial são escancarados à opinião pública, é comum que os jornalistas sejam abordados com a pergunta: “mas por que você não processa de volta”? Como procurar um tribunal de justiça pedindo indenização por injúria ou por dano moral não é considerado crime, o jornalista que se vê como réu acaba sem fundamentos jurídicos para “dar o troco” naquele que tenta censurá-lo.
Para processar alguém, é preciso sentir-se vítima de um crime. E ainda que o assediador judicial de jornalistas não se sinta de fato vítima, mas use o instrumento para intimidar e calar, não seria fácil provar materialmente nos tribunais o quanto essas ações geram danos reais aos profissionais e à democracia.
Quando os processos vêm de políticos e magistrados, a situação tende a ser ainda pior: há um abuso de poder claro e cristalino ao olhos de quem sofre a injustiça, com a estrutura do estado agindo em favor da parte que processa. Mas nem isso traz elementos suficientes para que o assediado reverta suas perdas e transforme aquele que o processa em réu.
Pelo mundo
Os processos judiciais contra jornalistas também preocupam o mundo, tendo sido pauta de discussões no Parlamento Europeu. Em fevereiro, os representantes públicos chegaram a um entendimento de que pessoas ou organizações que atuem na dimensão do interesse público, direitos humanos, combate à corrupção, defesa da democracia ou combate à desinformação sejam protegidas pela União Europeia em casos de assédio judicial.
Nos Estados Unidos, o radicalismo das extremas direitas pelo mundo levou o publisher do New York Times, Arthur Gregg Sulzberger, a identificar o assédio judicial como uma tática que coloca em risco a liberdade de imprensa. No artigo publicado pelo Washington Post ele reconhece que, no Brasil, os assediadores usam desse expediente para sobrecarregar os jornalistas com processos judiciais supérfluos. O texto também menciona Luciano Hang, líder nos processos contra jornalistas segundo o monitor da Abraji.
Além do Brasil, outros países da América Latina têm identificado o crescimento dos processos contra jornalistas. No Peru, por exemplo, a jornalista Mabel Cáceres contabiliza 16 processos movidos por conta do trabalho jornalístico – alguns deles simultâneos.
O assunto está intimamente vinculado à temática da liberdade de imprensa e liberdade de expressão, pois um país com jornalistas intimidados por ações movidas por políticos e poderosos é um país com jornalistas temerosos de confrontar o poder. O diagnóstico também veio junto ao relatório do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2024, desenvolvido pela organização Repórteres sem Fronteiras.
“Os jornalistas que se expressam nas redes sociais no Vietnã (174.º) são quase sistematicamente presos. Na China (172.º), além de prender o maior número de jornalistas do mundo, o governo continua a exercer um controle rigoroso sobre os canais de notícias, implementando políticas de censura e vigilância para regular os conteúdos online e limitar a divulgação de informações consideradas sensíveis ou contrárias à narrativa do partido”, pontua o estudo.
O Brasil tem um desafio expressivo para 2025: melhorar sua posição no ranking da liberdade de imprensa. Hoje, estamos no 82º lugar de 180 nações avaliadas. “A violência estrutural contra jornalistas, um cenário midiático marcado pela alta concentração privada e o peso da desinformação representam desafios significativos para o avanço da liberdade de imprensa no país”, destaca o diagnóstico.
O futuro
Em 2025, organizações não governamentais, como a Abraji e a britânica Media Defence devem continuar sendo instrumento de proteção a jornalistas e comunicadores vítimas do assédio judicial, patrocinando suas defesas. A Abraji, inclusive, desenvolve também o trabalho de advocacy, pautando o assunto junto à opinião pública; e de produção de conhecimento, consolidando os dados em relatórios estatísticos.
Mas, não podemos negar, o cenário é pouco otimista. Além de não conseguirem acolher todos os casos, entidades assim não podem assumir o papel do Estado de garantir segurança e proteção para que os jornalistas consigam exercer seu trabalho. Quanto maior o acirramento do extremismo e da polarização no país, mais chances para os casos se multiplicarem.
Enquanto finalizava esse artigo, uma das ações que respondo na Justiça, movida pela deputada Júlia Zanatta, abriu um precedente importante para a defesa do Jornalismo. O juiz Marcelo Carlin, da causa civil, recusou o pedido de indenização da parlamentar e defendeu a atividade jornalística: “A imprensa auxilia a transformar informações em conteúdo compreensível para todos, promovendo um debate público acessível e essencial para o funcionamento de uma democracia vibrante”, escreveu. Decisões como estas podem ter repercussão positiva em outros processos que tentam intimidar profissionais da imprensa.
Outro ponto importante é o fortalecimento de instituições estatais preparadas para amparar jornalistas vítimas de assédio. O Ministério da Justiça, sob Flávio Dino, chegou a criar Observatório da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, mas a mudança de ministro parece ter esfriado as discussões e encaminhamentos.
A institucionalização dos debates é urgente: se 8 de janeiro foi um atentado direto à democracia, a multiplicação de casos de assédio judicial também o são, em sua escala. A autocensura no confronto ao poder é dificilmente diagnosticável em números e evidências concretas, mas eu posso provar com minha própria experiência: jornalistas ameaçados mudam sua forma de trabalhar, afrouxam suas críticas e evitam assuntos espinhosos.
No ano que se avizinha, é importante que entidades de classe, como a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e os sindicatos locais estejam preparados para fortalecer essa pauta em suas agendas. O trabalho vai além do acolhimento das vítimas: é preciso pautar o assunto, convocar agentes políticos e outras organizações que possam alavancar a discussão de forma séria, que se notabilize em forma de leis.
Por fim, é imprescindível que os grandes veículos e entidades patronais como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), comecem a levar a pauta a sério. Enquanto esses processos estiverem nos chamados “desertos informativos”, pequenas cidades em que jornalistas independentes lutam para dar visibilidade a assuntos de interesse público, parece haver uma certa conivência e falta de rigor com o assunto. Mas não há dúvidas que a tática deve escalar ainda mais caso não seja coibida. E aí pode ser tarde demais para que a democracia esteja protegida.
Amanda Miranda é uma jornalista de Santa Catarina com mais de 20 anos de atuação na área e doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina.