Sem lei, sem alma

Por Clair Castilhos Coelho.

 Dos tubarões fugi eu

Os tigres matei-os eu

Devorado fui eu

Pelos percevejos.

(B. Brecht)

1983. Ilha de Santa Catarina, porção insular da capital catarinense. Praça XV de Novembro, Câmara Municipal. Esse foi o palco de uma das mais férvidas discussões sobre o destino da cidade. Tramitação, deliberação e aprovação do Plano Diretor dos Balneários, que resultou na Lei nº 2193/85.

O Plano, após muitos anos, finalmente chegou ao plenário. Mutilado e desatualizado. Adaptado às construções irregulares e às alterações de gabarito antes mesmo de sua votação. Assim age a elite predatória de Florianópolis. Retarda a aprovação das leis e regulamentos que ordenam o uso e ocupação do solo usando vereadores, servidores públicos venais, personagens do judiciário que esqueceram as leis e fiscais ambientais corruptos. Predomina o pensamento capitalista/neoliberal pelo qual cada centímetro quadrado desta ilha pode ser vendido, porque o mercado está ávido para faturar de forma imediatista e destrutiva.

No final dos anos 80 e início dos 90, do século passado, travou-se outro grande debate ideológico-conceitual a respeito do melhor destino para a cidade. Em 1988 o PDS/PFL, com Esperidião Amim e Bulcão Viana, venceu as eleições para Prefeito e a direita elegeu a grande maioria dos vereadores. Os eleitos apresentaram à Câmara Municipal uma série de projetos ditos de desenvolvimento para a cidade.

Tratava-se de um conjunto de propostas que continha graves violências ambientais. Provocavam mudanças irreversíveis na qualidade urbana, no meio ambiente; alteravam o zoneamento das áreas de preservação permanente; desfiguravam a paisagem urbana; levavam à destruição do canal da Barra da Lagoa com a construção de uma marina para um loteamento, num ecossistema sabidamente frágil; aumentavam os gabaritos nas ruas da orla da Lagoa, engendravam um hotel, centro de convenções e uma sede para a prefeitura na área existente nos entornos da ponte Hercílio Luz, hoje, Parque da Luz.

A justificativa era a necessidade de Florianópolis evoluir, desenvolver-se, gerar empregos, adentrar na modernidade (o Brasil conhece esse argumento). O padrão divisado era o de Palma de Mallorca, Ibiza, Cancun, entre outros.

Para entender a situação atual é imperativo que seja relembrada a absurda caçada moral e política que se transformou o episódio das votações e debates sobre o Plano Diretor de Florianópolis nos anos de 1990. Foi o famoso episódio dos “amigos de Florianópolis” (empresários do turismo, especuladores imobiliários, predadores das belezas naturais, leiloeiros de cada pedacinho de terra) versus “os contras” (vereadores oriundos de partidos de esquerda, movimentos sociais, ecologistas, jovens, intelectuais e ativistas sociais).

Essa marca atingiu os seis vereadores da oposição, da legislatura de 1989 a 1992. Esses parlamentares ousaram questionar e apresentar argumentos sólidos em defesa do município e de seus cidadãos. Defenderam um modelo de desenvolvimento brando, pouco agressivo, suave, com respeito à natureza e ao patrimônio arquitetônico de Florianópolis. A campanha foi intensa. Os seis vereadores foram caluniados e agredidos duramente com peças jornalísticas e televisivas que depois foram usadas nos programas eleitorais do então PDS. Os “contras” não se reelegeram.

Hoje, mais de 20 anos depois, as teses e propostas desses vereadores ficaram comprovadas como corretas e adequadas para a boa qualidade de vida da cidade.

Hoje, os mesmos colunistas e comunicadores da imprensa, repetem os mesmos argumentos utilizados pelos “contras” para manifestar perplexidade e espanto com a presente realidade de Florianópolis. Constatam o triste cenário que ajudaram a construir.

O episódio, mais recente, da operação “Moeda Verde” escancarou a maior quadrilha, eclética, diversificada e ferozmente letal, composta, mais uma vez, do prefeito, vereadores, empresários, servidores, fiscais e elementos do judiciário. E, ao que tudo indica existente há muitos anos.

O que sobrou de tanta virulência e insanidade foi o grotesco e deprimente cenário de uma ilha semidestruída. Uma ilha ocupada intensivamente, com a paisagem urbana deteriorada; o trânsito caótico e paralisado; viadutos disformes; ruas e avenidas cortando comunidades, antes tranquilas; “shoppings” gigantescos sobre mangues invadindo sem nenhum respeito à vida e ao cotidiano dos bairros; prédios amontoados em todos os espaços existentes asfixiando a cidade; dunas e mangues ocupados com habitações sub-humanas; favelas, poluição, condomínios de luxo e casas lançando esgotos in natura nos mares e lagoas. Além de tudo isso as doenças infecciosas como as dermatites, micoses, gastrenterites, otites brotando das águas e areias das praias, antigamente, límpidas e saudáveis.

Prédios, casas, restaurantes, bares, milhares de lojinhas horrendas e antiestéticas construídas sobre as restingas, áreas públicas ocupadas (os maiores exemplos estão em Ingleses e Canasvieiras). Poluição visual incontida, propagandas, cartazes, outdoors, privatização da paisagem. Será que a elite da construção civil, do comércio e do turismo conseguiu seu objetivo? Conseguiu uma cidade sem leis, uma terra de ninguém, um consórcio de compadres, onde a legislação é mero acessório, alterável conforme seus interesses? Uma terra que teve seu patrimônio artístico, cultural, arqueológico e arquitetônico, lesado de forma irreversível, que perdeu a sua alma? Que enterrou suas referências históricas, alienou as imagens e lembranças de seus ancestrais? Conseguiu transformar Florianópolis num lugar sem alma, sem história e sem emoção, presa fácil dos urubus do mercado imobiliário?

E a sociedade florianopolitana como está frente à tamanha tragédia urbana e ambiental? Estará perplexa, impotente, revoltada, triste, nauseada? Ou, contente e entusiasmada com o “progresso”, a notoriedade e o dinheiro fácil que chega? Impossível saber.

Haverá alguma reação? Ou, acompanhará submissa e silenciosa a paixão e morte de seu antigo paraíso?

É hora de usar todos os meios legais, toda a capacidade de pressão dos movimentos sociais e comunitários em favor das ações coletivas e civilizatórias para salvar o que restou de Florianópolis.

É hora de intimidar os “bandidos” locais e os que aqui chegam, nestes tempos globalizados, impedi-los de contaminar e lesar o patrimônio natural, o futuro das novas gerações, a qualidade de vida do presente.

É hora de tomar consciência do que representa para a velha Desterro a chegada massiva da insana vulgaridade que a invade.

Essas discussões já ocorreram nos anos 80, nos anos 90, no início do terceiro milênio, mas os efeitos ainda são frágeis, as críticas localizadas. Ainda não ganharam paixão e consistência junto à grande maioria da população.

A ofensiva da burguesia local, contra a qualidade de vida da cidade, resultou no que vemos hoje: um paraíso da mediocridade, da especulação, da destruição cultural, artística e arquitetônica; o embasamento da memória histórica; um crescimento asfixiante acompanhado da pior mobilidade urbana da história. Um reino encantado de ex-BBBs2, de jogadores de futebol famosos, de colunistas de quinta, de “penas e bocas alugadas” (alardeando as delícias da “ilha da magia”), elevados à condição de celebridades e que orientam modelos de comportamento. A isso eles denominam progresso! A isso dão o apelido de modernidade! A isso chamam turismo de primeiro mundo…

O próximo monstrengo da Hantei, na Ponta do Coral já foi elevado à condição de obra prima da arquitetura contemporânea, marco da construção civil!

Chega! É hora de garantir o prazer infinito, e que não é mercadoria, de viver em Florianópolis!

Clair Castilhos é farmacêutica-Bioquímica, Mestre em Saúde Pública, Professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (aposentada), Ex-Vereadora. Secretária Executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.

 2 Big Brother Brasil.

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