Por Isadora Stentzler.
Foi no barraco erguido a grossas toras de madeira e coberto por lonas, onde o ar atravessa de uma ponta a outra os colchões que se amontoam acima do chão batido, que o marido e os quatro filhos de Eduarda Duarte Lopes encontraram seu corpo gélido, pendurado por uma corda nas mesmas toras que sustentam aquele abrigo.
Há dias, a indígena Avá-guarani, da tekohá Pyahu, de Santa Helena, anunciava que se não conseguisse a documentação dos filhos e o auxílio assistencial, cometeria suicídio.
O cumprimento veio mais rápido que a ajuda e, em um momento de exaustão, na tarde de segunda-feira, dia 20 de dezembro, Eduarda se somou às estatísticas de suicídio em guaranis do Paraná, tornando-se a 16ª vítima de algo que vem se tornando uma epidemia entre os indígenas da região.
Priscila Lopes, de 19 anos, que vive próximo à casa de Eduarda, ouviu o prenúncio naquela manhã, sem acreditar que fosse uma promessa a ser cumprida.
“Antes dela morrer a gente se viu. Ela me falou que se a Funai [Fundação Nacional do Índio] não fizesse o documento para os filhos, ela não se perdoaria. Falou que amava muito eles. O sonho dela era mesmo documentar os filhos e ela falou que se o documento não saísse para os filhos, ela não queria mais viver”, conta, lembrando a última conversa.
Indígenas ouvidos pela reportagem e que vivem na mesma comunidade apontam que era constante a busca pela documentação dos quatro filhos, que não conhecem o pai (o companheiro atual não era pai das crianças). No entanto, os motivos da não obtenção não são claros.
Segundo o cacique Fernando Lopes, um imbróglio envolvendo o pai das crianças, natural do Paraguai, seria parte do impasse para não conseguir a documentação para os jovens. Sem os registros, o cacique disse que ela não conseguia acessar os programas de assistência, sendo atacada por funcionárias do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Santa Helena, quando solicitava ajuda.
De acordo com Fernando, ela sobrevivia a partir da renda dos filhos, que trabalhavam por diárias a baixos salários. “Toda vez que ela pediu [documentação], a Funai negou. Disse que não podia fazer a documentação”, acusa o cacique.
“Ela ficou desesperada. Ela estava pensando que não merecia nada, que não valia para a sociedade. Ninguém ajudou ela. Ela teve um sonho, de todos os filhos viverem como pessoas normais, iguais aos outros, mas não conseguiu”, complementa.
Epidemia de suicídios
O caso de Eduarda marcou o 16º suicídio de indígena só no ano de 2021 em comunidades distribuídas no estado do Paraná, sendo o 11º entre os Avá-guaranis.
De acordo com levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os casos ocorreram em contextos que poderiam ser revertidos, tendo registros em todas as regiões do estado. Fora do Oeste do Paraná, o Cimi contabilizou suicídios entre kaingangs nas Terra Indígenas Ivaí (1), Apucaraninha (1), Queimadas (2), Marrecas (1). Nessas mesmas comunidades também foram registradas tentativas, sendo cinco casos na Terra Indígena Queimadas, dois na Ivaí e um caso na TI Apucaraninha.
Ao todo, no estado, foram 29 tentativas apenas neste ano, o que tem acendido alerta entre entidades que acompanham os povos originários sobre as influências e os motivos que têm levado a este aumento exponencial de suicídios entre indígenas.
Carta para MPF
Não única, a situação vivida por Eduarda antes da morte encontra eco na comunidade que denuncia arbitrariedades no trato com os indígenas a partir do Cras do município.
“A pobreza está atingindo muito a tekoha. E o Cras é muito preconceituoso”, denuncia o cacique.“Ela [Eduarda] foi maltratada porque o filho dela não tinha documento. Ela foi pedir auxílio alimentação e foi maltratada. Ouviu muita coisa que ofende a gente. E todo tempo a gente passa por isso. Eu tô relatando essas coisas agora porque eu, como cacique, não aguento mais”, afirma.
Em outubro deste ano, o cacique escreveu de próprio punho uma carta para o Ministério Público Federal, em que elencou situações de racismo de funcionários do Cras, localizado na Rua Argentina do município de Santa Helena.
O documento é um pedido de socorro, escrito a caneta em uma folha de caderno de desenho:
“Venho através deste documento para levar ao conhecimento do M.P.F. que nossa comunidade ou família do Tekoha Pyauhu está passando humilhação por funcionários do Cras. Uma vez que uma família foi solicitar alimentação de cesta básica, a família foi recebida por palavras dessa forma: aqui não tem alimento para índio. Também foi falado: índio tem que trabalhar para comer porque a Funai trouxe 3 cestas básicas para cada família. Ela falou: como que o índio come tão rápido essas 2 ou 3 cestas básicas? Pra que vem pedir cesta no Cras? Algumas famílias consegue, mas com muito maltrato. Nós, indígenas, não quero mais viver assim maltratado, humilhado. Porque não temos terra demarcada para plantar para sobreviver. Pedimos para o M.P.F. apoio para acabar com esse preconceito.” [Foram alteradas apenas pontuações para facilitar a compreensão do leitor].
A carta foi escrita em outubro. Priscila conta que ela foi uma das pessoas que teve a cesta básica negada, conseguindo o alimento após muita insistência.
“Ela [funcionária] me maltratou bastante. Falou muitas coisas pra me darem a cesta. Primeiro me perguntou sobre a cesta básica que a Funai leva. Mas eu falei que naquela cesta tem pouca coisa. E ela começou a falar que a gente comia rápido, perguntou onde foi todos os alimentos. Também falou que as cestas básicas são só pra quem precisava e falou que cacique guardou as cestas que não dava para ninguém. O cacique nunca fez isso com as comunidades dele. Eu, quando saí da sala, eu quase chorei”, lembra, dizendo que o descrédito ou dificuldade no acesso ao alimento é recorrente na unidade.
Situação semelhante é narrada por Mavel Escalada Jegros, de 21 anos, que vive na mesma comunidade e sobrevive com ajuda da mãe. Além do constrangimento a que diz ser submetida para receber a cesta básica, ela conta que ainda teve o pedido para receber auxílio do extinto programa Bolsa Família negado.
“Se eu não precisasse de ajuda, não teria ido lá”, diz. “Ela [funcionária] me perguntou se meu marido trabalhava ou não. Eu disse que não, porque ele está doente. Faz três anos que ele tem problema na perna e faz um ano que parou de trabalhar por causa disso. Ela disse que meu marido também podia trabalhar para manter a casa.”
Ela também conseguiu a cesta após discussão com as funcionárias. O caso de Mavel ocorreu no dia 25 de outubro, mesmo dia em que descobriu não estar entre os beneficiários do programa de auxílio do governo federal, o que compromete a renda, sobretudo após o nascimento da filha, neste mês de dezembro.
Funai responde
Procurada, a Funai disse desconhecer os casos envolvendo funcionários do Cras e indígenas. Segundo a Fundação, em setembro deste ano foi realizada uma reunião com todos os Cras e lideranças indígenas do município de Santa Helena, mas, na ocasião, não foram relatados casos de racismo.
Em relação ao caso de Eduarda, a Funai disse que os filhos teriam nascido em São Miguel do Iguaçu, não se sabendo por que não foram registrados na época, sedo que Funai e Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) já existiam na época.
“A Funai fica limitada ao que determina a legislação vigente, portanto, devemos seguir o que está previsto em lei e regulamento, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal inclusive. Lamentamos o ocorrido, porém é no mínimo leviano acusar a Funai de ser causador de mal a indígena, quando, na verdade, atuamos para resolver os problemas existentes e evitar futuros. Além do mais, existe um grupo de trabalho com participação de Sesai, Funai e Unila [Universidade Federal da Integração Latino-Americana] para mapear, diagnosticar e propor caminhos para combater essa epidemia que atinge a comunidade Guarani do oeste do Paraná”, informou.
“Quem tem condições é a Funai”
Após a procura da reportagem, o cacique disse que a Funai entrou em contato com ele. Segundo o cacique, a entidade solicitou que a comunidade fosse ao Paraguai localizar os documentos faltantes.
“Pediram para mim ir atrás do parente dele, pra ver onde ele nasceu e se ele não tem documento do Paraguai. A própria Funai falou isso agora, agorinha [quinta-feira, 23], e eu vou perguntar só pro avô dele onde ele nasceu, mas ir no Paraguai, procurar, eu não vou fazer. Por que quem tem condições, quem tem dinheiro, quem recebe dinheiro pra isso é a Funai”, disse o cacique sobre a ligação.
Segundo as normas que regem o funcionamento da Funai, é de incumbência da Fundação o auxílio na conquista de registros para comunidades indígenas.
Em 2007, o Governo Federal publicou o Decreto 6.289/07, que institui o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento. O programa recebeu novo texto em 2019, dado pelo Decreto nº 10.063/19, mas manteve as responsabilidades dos entendes federados na obtenção de registro.
No que se refere estritamente aos indígenas, conforme consta no site da Fundação, cabe à Funai assegurar a documentação de povos originários, garantir acompanhamento e, em alguns casos, até o custeio das despesas com deslocamento e alimentação de indígenas para obtenção do Registro Civil e documentação. O mesmo vale para os Cras, que são incumbidos de garantir a inscrição de indígenas no Cadastro Único de Programas Sociais.
A reportagem aguarda manifestação da Prefeitura de Santa Helena, sobre os atendimentos do Cras, e do Ministério Público Federal (MPF).
Edição: Lia Bianchini