Por Salvador Soler.
Vários feridos à bala e tantos outros presos foram o saldo das manifestações, nesta terça-feira, em várias cidades de Mianmar. Depois que o governo militar proclamou a lei marcial na noite de segunda-feira, as mobilizações de protesto continuaram.
Nesta terça-feira, a polícia avançou pela primeira vez contra os manifestantes, disparando em algumas cidades, e com caminhões pipa e jatos d’água em outras. As primeiras informações relatam a morte de uma jovem de 25 anos com um tiro na cabeça, embora se soubesse posteriormente que ela ainda estava viva, embora em estado crítico, e um homem de 48 anos nas mesmas condições.
Depois que o país praticamente parou na segunda-feira por causa da greve geral e dos protestos em massa protagonizados e dirigidos por trabalhadores da saúde, servidores públicos, estudantes e trabalhadores têxteis combativos, os militares declararam a Lei Marcial em pelo menos seis locais.
Foi imposto um toque de recolher que proíbe reuniões de mais de cinco pessoas e discursos públicos. Essa nova medida repressiva se soma ao corte da internet e das redes sociais. A medida, que atinge vários bairros de Rangum, a maior cidade e centro econômico do país, começou também nesta segunda-feira em Mandalay, Monywa, Loikaw, Hpsaung e Myaungmya. A resposta dos manifestantes foi um novo chamado para uma greve geral e protestos massivos ao redor do país.
O anúncio foi feito depois que os militares, por meio do canal de televisão estatal MRTV, ameaçaram tomar medidas contra os manifestantes a quem acusam de “atentar contra a estabilidade do país, a segurança pública e o Estado de Direito”.
Os protestos em Mianmar alcançaram nível nacional e são as maiores manifestações no país desde a “Revolução do Açafrão” liderada por monges budistas em 2007. Naquela época, os militares reprimiram os manifestantes, matando pelo menos 31 pessoas. Na ocasião atual, as autoridades apenas recorreram a canhões de água para dispersar a multidão, evitando uma revolta maior.
View of Myanmar citizens protesting against Military Coup in Yangon at 9 in this morning. We want democracy and we are not afriad to demand it back.
The military can cut Internet connection but not our souls of fighting for our country.#Feb8Coup#WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/lRSEkFzgq4— Eveline (@Eveline11798) February 8, 2021
A onda de protestos contra o golpe militar da semana passada – quando muitos dos líderes políticos democráticos do país foram presos em ataques antes do amanhecer – cresceu nos últimos dias. Na última quarta-feira, médicos de todo o país entraram em greve, desencadeando uma primeira campanha de “desobediência civil” que se espalhou para outros ramos de trabalhadores.
Até agora, a mídia estatal e mídias alinhadas ao Exército evitaram qualquer notícia sobre as mobilizações pacíficas contra os militares uniformizados.O novo anúncio levanta o temor de uma escalada de prisões e repressão que pode provocar uma reação em massa ainda mais forte.
Em seu primeiro discurso à nação, o Chefe das Forças Armadas, Min Aung Hlaing, incitou o povo birmanês (Mianmar antes se chamava Birmânia) a permanecer “unido como um país” e a se concentrar “nos fatos e não nas emoções”. O general golpista, que tendo em conta os resultados eleitorais (7%) tem pouco apoio popular, continua a justificar a revolta militar, que qualificou de “inevitável”, devido à alegada fraude eleitoral nas eleições de novembro passado.
Richard Ehrlich em um artigo no Asia Times afirma que o general Hlaing realizou o golpe para defender os interesses financeiros de sua família e a liderança militar que controla as principais fontes da economia. Centralmente, mantêm sob seu controle os principais fundos de investimento vinculados à mineração de jade e rubi, depósitos em contêineres, imóveis, construção civil e indústria militar, entre outros ramos do país. Por outro lado, devemos deixar claro que todos esses interesses foram apoiados e sustentados pelo governo da Liga Nacional para a Democracia, o partido da deposta Aung San Suu Kyi.
Greve Geral e a luta de classes no Sudeste Asiático
Milhões de pessoas foram às ruas para se manifestar em Mianmar, culminando em uma greve geral em todo o país na segunda-feira. Como pontua Josefina Martínez , à greve se juntaram, além dos setores têxteis, setores de médicos, enfermeiras, setor de educação, transporte e muitos outros, como os bombeiros, que participam da mobilização em Rangum.
A greve operária, que teve grande repercussão em Rangum, praticamente paralisou a antiga capital enquanto dezenas de milhares de pessoas se concentravam no centro histórico. As manifestações foram lideradas principalmente por jovens trabalhadores de todos os setores, incluindo bombeiros e professores uniformizados, pessoal de saúde e até faixas e bandeiras da comunidade LGTBI e de minorias étnicas do país.
Menção honrosa para as colunas de destaque dos jovens sindicatos do setor de confecção, uma rede de oficinas que emprega uma força de trabalho muito jovem e superexplorada, principalmente mulheres, que produzem para as grandes marcas europeias ou norte-americanas como Zara, Primark, H&M e Dell.
Andrew Saks, um ativista sindicalista que vive em Rangum e colabora com o movimento sindical neste setor, em entrevista exclusiva ao La Izquierda Diario nos disse:
“Os trabalhadores do setor têxtil convocaram e lideraram um protesto na manhã de sábado que deu início à onda de protestos em Mianmar que estamos vendo agora. Havia um certo vácuo de liderança, pois o NLD não convocou manifestações de rua, apesar da prisão de seus líderes. O sindicato dos trabalhadores do setor têxtil ocupou esse vácuo e assumiu a liderança, apesar do risco extraordinário de fazer isso agora em Mianmar. A imagem do sindicato dos trabalhadores têxteis movendo centenas de trabalhadores das zonas industriais para o centro de Rangum inspirou e encorajou as massas de Mianmar.”
Teachers in their uniforms of green longyi and white shirt join and doctors in white lab coats have joined marchers to support Myanmar's civil disobedience movement near the Hledan Centre in Yangon. #WhatsHappeningInMyanmar pic.twitter.com/81Cgjzo8jI
— Frontier Myanmar (@FrontierMM) February 8, 2021
Esta reflexão de Sacks é muito interessante como ponto de apoio à superação de uma liderança que sempre negociou com a ditadura e permitiu que seus negócios continuassem e justificou a repressão a minorias étnicas como os rohingya.
A resistência ao golpe em Mianmar despertou simpatia nos movimentos democráticos existentes em todo o Sudeste Asiático. Manifestações de apoio foram organizadas na Tailândia, Coreia do Sul e Indonésia, com a participação de trabalhadores migrantes de Mianmar. Nesse sentido, essa mobilização pode ser a ponta de lança da ascensão da nova classe trabalhadora, que sofre com os altos níveis de exploração e faz com que os governos fiquem extremamente ricos enquanto seus salários são os mais baixos do planeta em toda a região. É essencial que os sindicatos rompam política e ideologicamente com o líder Aung San Suu Kyi e com o NLD.
O tigre do sudeste asiático está se levantando.
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