Segunda Marcha Universitária Nacional: “um fantasma caminha pela Argentina”

Por Emilia Trabucco.

A segunda Marcha Universitária – desde o início da gestão de Javier Milei – convocada para esta quarta-feira, 2 de outubro em todo o país, volta a ser apresentada como uma iniciativa que mobiliza a sociedade argentina em geral, especialmente num contexto de aprofundamento do ajuste.

A crise de orçamento que as universidades nacionais atravessam não só ameaça o seu funcionamento, mas também faz parte de uma estratégia mais ampla que procura comercializar a educação e disciplinar o pensamento crítico. Neste contexto, o papel da universidade pública como espaço de inclusão, produção de conhecimento e justiça social é fundamental para compreender a importância desta nova mobilização.O debate sobre o financiamento das universidades públicas reflete a tensão entre os interesses populares e as políticas de ataque às classes trabalhadoras do atual governo, que anunciou recentemente que vetará a Lei de Financiamento Universitário aprovada pelo Congresso. Esta lei procurou atualizar as rubricas orçamentais das universidades nacionais, garantindo o seu funcionamento e os salários dos professores e não docentes com base na inflação, problema que tem afetado profundamente os trabalhadores em geral.

A oferta salarial de 5,8% que o governo apresentou recentemente aos sindicatos no período que antecedeu a marcha foi rejeitada como insuficiente, especialmente quando comparada com as taxas de pobreza e de inflação, que colocam 85% dos professores e trabalhadores universitários abaixo da linha da pobreza (CONADU, 2024). Neste sentido, a luta universitária confunde-se com outras lutas do setor laboral, que também enfrentam as consequências da flexibilização e da precariedade do trabalho, que se agravarão com a regulamentação da Reforma Trabalhista anunciada por Federico Sturzzenegger, ministro da Desregulamentação e Transformação do Estado.

Isto se soma à decisão do governo de suspender o Fundo Nacional de Incentivo aos Professores (FONID), um componente-chave do salário dos professores, e paralisou as negociações da Parceria Nacional dos Professores.

Além disso, o governo promoveu a declaração da educação como serviço essencial, o que restringiria o direito à greve dos trabalhadores do setor, numa clara violação da Constituição Nacional. Esta medida insere-se numa política de disciplina social que procura limitar a capacidade de protesto e organização dos setores que se opõem ao ajustamento.

Ataque à educação pública

O ataque à educação pública não é um fenômeno isolado. Num contexto global de ofensiva neoliberal e neofascista, a universidade tornou-se um campo de disputa ideológica. De setores próximos ao governo Milei, as universidades são acusadas de serem centros de doutrinação ideológica, narrativa que reforça a ofensiva contra o sistema educacional público e incentiva a sua privatização.

O governo de Javier Milei deixou clara a sua intenção de avançar neste sentido, promovendo um modelo baseado na procura através da implementação de vouchers e créditos educativos. Os filhos da chanceler Diana Mondino, Francisco e Simón Pendas, fazem parte do conselho de administração do Banco Roela, que já opera em universidades privadas (e algumas públicas, através da plataforma de pagamento de pós-graduação) e pretende expandir-se para universidades públicas via tarifas e o negócio de empréstimos estudantis.

Mais do que um negócio atraente, considerando que 80% dos estudantes na Argentina optam por estudar em universidades públicas. Este sistema, que beneficia diretamente bancos e seguradoras, já demonstrou os seus efeitos no Chile, onde o modelo, herdado da ditadura de Augusto Pinochet, endividou maciçamente as famílias e gerou profundas desigualdades.Segunda Marcha Universitária Nacional: “um fantasma assombra a Argentina” - Emilia Trabucco - NODAL

Na Argentina, a proposta de avançar com créditos apresenta um cenário semelhante: a educação se tornaria um negócio lucrativo para poucos, enquanto milhões de estudantes são excluídos porque não podem arcar com as dívidas impostas para acessar a universidade. Tal como no Chile, a retórica oficial justifica esta medida na crise orçamental criada pelo próprio governo, consolidando a educação como um serviço financeiro que subordina o direito de estudar à capacidade de endividar-se.

As ações do governo fazem parte de uma ofensiva mais ampla contra os direitos sociais conquistados nas últimas décadas. O ataque à universidade pública insere-se na agenda neoliberal de ajustamento e reforma do Estado, que visa a mercantilização de todas as áreas da vida e da disciplina social (Socolovsky, 30 de julho de 2024).

Este conflito transcende o aspecto econômico e toca fibras sensíveis da identidade argentina, como os direitos humanos, a justiça social e a defesa da soberania. A universidade pública na Argentina tem sido historicamente um bastião do conhecimento crítico e do desenvolvimento científico-tecnológico. Com um orçamento adequado, as universidades não só garantem uma formação de qualidade, como também são um motor de produção de conhecimento e de avanço científico em áreas cruciais para o país.

Guildas e organizações sociais unem-se à marcha universitária no dia 2 de outubro - Política ArgentinaA marcha de 2 de outubro será a expressão de uma resistência ampla e heterogênea contra o programa de ajuste, empobrecimento e retirada de direitos da sociedade argentina em geral. Tal como aconteceu com a marcha do 23 de abril, que mobilizou milhares de pessoas em todo o país, esta nova convocatória reúne sindicatos, organizações estudantis, feministas, culturais, científicas, de aposentados, movimentos sociais e a comunidade em geral em defesa da universidade pública.

Em conclusão, esta nova marcha não só destaca a defesa da universidade pública, mas também representa uma exigência mais ampla de justiça social num país onde as políticas de ajuste e de corte econômico afetam diretamente as classes trabalhadoras. A rua será mais uma vez palco de uma disputa fundamental pelo futuro do povo argentino.

Emilia Trabucco é psicóloga, Mestre em Segurança. Analista da Agência NODAL e do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE) na Argentina. Diretora da Área Universidade, Gênero e Trabalho do IEC-CONADU.

Tradução: TFG, para Desacato.info.

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