A regra implícita que a Rússia violou na Crimeia é que não se usa a força a não ser que isso seja autorizado pelos EUA e seus aliados
Por Marcelo Justo.
A crise na Crimeia gerou um aparente consenso sobre o novo momento histórico internacional que vivemos: a segunda Guerra Fria. No Ocidente, diplomatas, políticos e jornalistas coincidem em que a era de cooperação entre Rússia e Estados Unidos no marco de um “mundo multipolar”, visível com os atentados das torres gêmeas e a “guerra contra o terrorismo”, é coisa do passado. A pergunta é se este consenso reflete uma nova realidade ou é a simples posição por “default” que o Ocidente adota em relação a Rússia.
O mundo bipolar da Guerra Fria tinha como pano de fundo um irredutível enfrentamento ideológico entre Estados Unidos e Rússia com repercussões em distintas partes do planeta (América Latina, África, Oriente Médio, Ásia) e a ameaça do holocausto nuclear, fatores ausentes hoje. A Carta Maior analisou o tema com o diretor em Moscou do estadunidense Fundo Carnegie para a Paz Internacional (Carnegie Endowment for International Peace), o russo Dmitri Trenin.
Fala-se da crise atual como algo nos marcos de uma segunda guerra fria. É simples manchete de jornal ou uma realidade concreta?
Depende de como se defina a guerra fria. Se você a define como o que ocorreu entre os anos 40 e os 90 é altamente improvável que haja uma repetição daquele esquema bipolar. Mas se você a pensa como uma expressão do equilíbrio entre competição e cooperação que rege as relações internacionais, sim, é possível falar de uma nova guerra fria. Neste momento, temos um claro predomínio da competição e da rivalidade internacional sobre a cooperação.
De que tipo de rivalidade estamos falando?
A zona de conflito hoje é a Ucrânia, o leste europeu, o Cáucaso. Em termos mais amplos, que estamos vendo é uma tentativa da Rússia de revisar o consenso internacional que se seguiu ao fim da União Soviética com um claro desafio dos Estados Unidos em nível global. A Ucrânia é muito importante para a Rússia e, na visão do mundo de Vladimir Putin, faz parte da civilização russa, eslava e cristã moderna. Putin repetiu isso em várias ocasiões: a Rússia e a Ucrânia são um só povo. Isso se opõe por completo à visão que os Estados Unidos e a Europa tem em relação às fronteiras.
Por que se considera que a Crimeia é a ruptura da ordem mundial pós-queda do Muro de Berlim e, em troca, a invasão do Iraque não?
A Rússia objetou a invasão do Iraque e a política internacional para a Síria e conseguiu armar uma alternativa à política estadunidense a respeito do regime de Assad, mas a grande regra implícita que a Rússia violou na Crimeia é que não se usa a força a não ser que isso seja autorizado pelos Estados Unidos e seus aliados. Em outras palavras, é possível usar a força, e isso tem ocorrido na África e em outras partes do planeta, mas para isso é preciso ter a benção dos Estados Unidos. Este é o consenso pós-União Soviética que a Rússia está desafiando. A Ucrânia não é importante para os Estados unidos. O que é importante é o papel estadunidense no mundo.
Como vê a posição da União Europeia nesta crise?
A crise endureceu a posição oficial e a dos meios de comunicação em relação a Rússia. No leste europeu, a Rússia é outra vez o adversário histórico e, na Europa em geral, é descrita como uma potência do século 19. Por outro lado, não parece haver muito entusiasmo em se avançar no caminho das sanções econômicas porque os europeus estão preocupados com o nível de dependência energética e não querem comprometer suas exportações para a Rússia em meio à crise econômica da União Europeia.
Mas a OTAN, a aliança militar entre Estados Unidos e Europa, endureceu sua posição.
A OTAN parece ter redescoberto sua velha missão histórica que era neutralizar a influência russa. O secretário geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, que em 2009 empreendeu uma audaciosa abertura em direção a Moscou, agora fala dos assuntos pendentes que a organização tem em relação a sua ampliação para o leste, algo que incluiria a Geórgia, Moldávia e Ucrânia. É possível que, na próxima cúpula da OTAN, se decida um movimento militar mais ao leste, para a Polônia, Romênia e os países bálticos.
Quanto vai durar este novo cenário internacional?
Estamos muito no início deste novo tipo de guerra fria. Minha impressão é que vai durar anos, mas não sei como, quando e onde vai terminar. Tudo dependerá de como se resolva a questão da Ucrânia e de como se redefina o posicionamento da Rússia em nível doméstico, regional e mundial, e o papel protagônico internacional dos Estados Unidos.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Fonte: Carta Maior.