Novo ato político acontece no domingo, dia 8 de agosto
Era a metade dos anos 80, a democracia brasileira andava com pernas bambas, a vida saía da escuridão, mas as coisas ainda estavam muito confusas. A luta popular conseguia se fazer às claras, mas persistia o medo, assim como o preconceito. Para quem atuava no movimento de esquerda em Florianópolis havia um lugar onde era possível se encontrar e sentir-se em casa. Era um pequeno barraco de madeira na praia do Campeche, que havia deixado de ser uma cabana de pesca para virar um bar. Ali, nas tardes de domingo, o povo se reunia para conversar, discutir política ou apenas tomar sol. Nas noites de inverno, ao redor da fogueira, o povo também se juntava para dançar e celebrar a vida.
Para quem era da comunidade, o lugar igualmente passou a ser uma espécie de porto seguro. Não havia nada na praia e a cabana de madeira passou a ser uma referência. Como o seu Chico, que cuidava do lugar, era pessoa conhecida no Campeche, de família tradicional, o bar foi virando espaço comunitário também. Ali eram celebrados os aniversários, as festas do bairro, por ali passava a Dona Nicota, a bandeira do divino, a folia de reis, e ali terminava a alegria do carnaval. Localizado ao lado da capela, no coração histórico do Campeche, o Bar do Chico rapidamente se entranhou no cotidiano. Não era só um bar, era lugar do povo campechiano e de boa parte dos militantes populares da cidade. Território liberado para a festa e para a política. Não foram poucas as lutas e ações populares que nasceram das conversas ali naquele trecho de areia.
No início dos anos 90 um filho do Campeche se elegeu vereador. Lázaro Daniel. Não por acaso, filho do seu Chico, o dono do bar tombado agora em 2010. E este foi um vereador que muito incomodou ao poder. Na época, a cidade fervilhava na luta pela moradia e eram constantes as ocupações de área urbana e as mobilizações populares. Lázaro estava metido nesta briga até o pescoço. Sua voz na Câmara de Vereadores estava a serviço do povo em luta e ninguém conseguiu dobrá-lo. Foi aí que começou a perseguição ao Bar do Chico. Aquele era um lugar que subvertia a ordem, que acolhia os “malditos”, que servia de espaço para a organização comunitária. E, não bastasse isso, era do pai do Lázaro. O poder encontrava um ponto por onde atacar o vereador.
Desde aí, a batalha foi grande. Longos anos de discussão na justiça e neste meio tempo, a comunidade foi consolidando o espaço como o seu lugar. O Bar do Chico virou patrimônio cultural, assim como o espectro de Saint Exupéry ou a capela São Sebastião. Já não era só um bar, era parte da alma campechiana. Tanto que a comunidade entrou com um processo de tombamento para o bar. Daí soar muito estranho o argumento do juiz Hélio do Valle Pereira ao dizer que o povo do Campeche não tinha se importado com o processo. Ora, pedir o tombamento como patrimônio histórico imaterial não é se importar?
Nos últimos anos o Campeche tem sido a ponta de lança na luta por um Plano Diretor que não seja predador, que respeite o ambiente, que se faça em harmonia com os recursos naturais. E o Campeche foi além, organizou seu povo e construiu seu próprio plano, o qual apresentou ao poder público. Os governantes se fizeram surdos, inventaram outros planos e o Campeche lutou. Agora, na era Dário, aconteceu o Plano Diretor Participativo e o Campeche de novo se organizou, melhorou seu plano e tem lutado para fazer valer sua palavra. É um bairro que tem tradição de luta, que mantém movimentos articulados e atuantes, que incomoda demais o poder. Por isso era preciso quebrar a espinha desta gente. Nada melhor então do que atacar um velho de mais de 80 anos, que teve a ousadia de colocar no mundo alguém como Lázaro e ainda criar um espaço onde o povo pode se organizar e conspirar.
É por isso que as pessoas que vivem no Campeche e que militam nos movimentos da cidade estão irmanadas na luta pela reconstrução do Bar do Chico. A pequena cabana de madeira foi derrubada numa manhã fria de julho, sem aviso, sem nada. Vieram os homens da Comcap, arrombaram a porta, tiraram as coisas de dentro e destruíram o lugar. Estraçalharam parte da cultura do bairro, pisaram na memória, destroçaram o patrimônio das gentes.
Mas esse crime cultural não ficará sem resposta. Uma delas já foi dada. Num ato público realizado sábado, dia 24 de julho, o velho bar ressurgiu numa obra de arte produzida pelo artesão Paulo Renato Venuto. Um gesto poético, simbólico, que serviu para impulsionar outras ações e idéias. A comunidade quer de volta o mesmo bar, concreto, real. Por isso, no último dia 31 o grupo de mobilização pela reconstrução do Bar do Chico esteve reunido, planejando ações para que o velho espaço comunitário possa ressurgir dos escombros.
Duas frentes de luta foram abertas. Uma delas será na justiça. Como estava em andamento o processo pelo tombamento do lugar, a Associação dos Moradores do Campeche vai dar seguimento ao pleito, exigindo, portanto, a reconstrução. A outra é política e de ação direta do povo. Uma nova manifestação está sendo organizada para o domingo, dia 8 de agosto, às 10h, com partida dos escombros do Bar do Chico. A comunidade mobilizada fará uma caminhada, pela praia, até um empreendimento imobiliário (Essence Life Residence) que está sendo erguido nas dunas do Campeche. Vão protestar contra essa invasão e exigir da justiça o mesmo tratamento que deu ao casebre de madeira que era o Bar do Chico.
O povo do Campeche discutiu e decidiu que se a cidade de Florianópolis é conhecida pela alcunha do “já teve”, por conta de já ter deixado sumir coisas importantes e históricas, como o Miramar, o Expresso, o Grupo Sul, o mesmo não vai se dar ali no bairro. As gentes não aceitam conviver com a idéia de que o bar do Chico não existirá mais. E vão reconstruir. Se quem mandou derrubar o bar achou que iria quebrar a espinha do Campeche, se enganou. Aqui vive uma gente-peixe, mágica, feita de areia, mar e sol. Uma espinha se quebra, outra vem, mais forte, mais viva…