Ela disse olhando bem no fundo dos olhos do menino: “você quer brincar no porão, pode brincar, mas nunca, em hipótese alguma, mexa no baú”. Ele concordou com um solene balançar de cabeça, colocou a chave no bolso e saiu de mansinho pelo sítio, em passos respeitosos.
Foi colher e comer caqui. Era uma espécie de ritual, antes de eventos importantes. Subia na árvore, apanhava uma fruta e se deixava ficar ali, pensando na vida. Alguns pensamentos eram recorrentes: Clara, a menina mais linda da escola, o carrinho de rolimã que ele construiu com as próprias mãos, mas não sabia onde andar porque ali não havia morros, os doces de banana que sua mãe fazia nos dias de chuva, as histórias que seu pai contava deitado na rede, nas noites estreladas.
Outras lembranças eram mais factuais: a bronca da professora de matemática na segunda-feira, a perna dos comandos em ação comida pelo cachorro na terça e a foto tirada no dia anterior, com pompas e roupas sociais, no apertado estúdio do seu Cláudio, fotógrafo e dono do único cinema da cidade. Pensou nessas coisas e se deu conta de que mastigava o último pedaço do caqui. “Comi e não percebi”, resmungou.
Ficava um tempo na árvore e depois corria pelo terreno imenso e se jogava na grama para ver as nuvens. Batia-lhe uma tristeza quando as nuvens não apareciam. Sempre gostou de ficar deitado no chão, bem esticado e de barriga para cima, para ver o céu azul se confundir com o verde da grama. As linhas se encontravam no horizonte, lá longe, lá onde é outra cidade, talvez outro país, lá no fim da terra. Ficou assim por um tempo e decidiu ir ao porão. Ele já o visitara outras vezes, mas sempre acompanhado do pai ou da mãe. Era hora de desvendar sozinho aquele território.
Tinha ouvido muitas histórias sobre o lugar, sobre os fantasmas que faziam os guarda-chuvas dançarem em dias de tempestade, sobre o lobo feroz, habitante daquelas terras há mais de mil anos, que uivava sem parar para anunciar algum perigo, jamais revelado. Havia também os morcegos, as teias de aranha imensas, os pregos envenenados e uma centena de outros perigos que ele não lembrava.
Abriu a porta com delicadeza, para não acordar o lobo, os morcegos, as aranhas e os fantasmas.Estava escuro e úmido, como devem ser todos os porões do mundo. Viu um guarda-chuva aberto e aquilo lhe deu um calafrio que subiu pela espinha. No chão e nas estantes, muitas caixas, ferramentas de todos os tipos, pneus, algumas roupas, bonecas muito velhas, duas bicicletas com dois bancos cada, coisa jamais vista por ele e que lhe causou impressão. Viu também uma máquina de cortar grama e um objeto retangular bem grande, de madeira, com botões metálicos na frente e ele supôs que aquilo poderia, quem sabe, ter sido um rádio ou alguma coisa parecida.
Foi desvendando o ambiente, na ponta dos pés, com medo de pisar em algum prego traiçoeiro ou cair em alguma arapuca escondida. De repente, iluminado por uma frestinha de luz que passava pelas velhas madeiras do porão, ele viu o baú. Tinha se comprometido a não mexer naquilo, tinha dado a sua palavra e, palavra, para ele, era algo sagrado. Não mentir, não desrespeitar pai e mãe, não fazer falsos juramentos. “Mas eu não jurei, não prometi, para ser bem sincero, nem disse nada”, ele pensou, justificando o que já havia decidido fazer.
Deu dois passos largos e tocou o baú. Não era grande, como poderia imaginar, mas parecia ser muito pesado. Tentou abrir a tampa e não conseguiu. Um fio de borracha o envolvia, deixando-o semi-aberto. Com toda a força, esticou aquele fio, mas o negócio era resistente, decidido, teimoso mesmo, assim como todos os adultos que ele conhecia, sem exceção.
Venceu a luta com a ajuda de uma tesoura de grama. Nada fácil porque a tesoura era pesada e estava úmida. “Seria este fio”, ele pensou, “a barreira pela qual os monstros imaginários e reais sairiam em peregrinação pelo mundo, todos de uma vez?” Ouviu, ou pensou ter ouvido, bem ao longe, o uivo de um lobo, e isso lhe acelerou ainda mais o coração, como uma descarga de adrenalina. O medo se espalhou por todo o corpo, porém a curiosidade não lhe deixou vacilar.
Teve uma tremenda decepção ao abrir o baú. Encontrou apenas cartas, cartões e telegramas. Apenas inofensivas folhas de papel, sem poderes especiais, sem nada que justificasse a cautela e os avisos de sua mãe. Leu rapidamente uma delas: “Tenham fé em Deus, pensem que tudo tem uma razão e aceitem nossos mais profundos pêsames”. Leu outra e a mensagem era mais ou menos a mesma. Uma chatice.
Quando ia fechar, sentindo-se tolo e derrotado, viu no cantinho, quase esmagada por todos aqueles papeis, bem no ângulo esquerdo do baú, uma foto. Era a foto de sua família. Estavam lá seu pai, sua mãe, suas duas irmãs e ele. Era a foto que haviam tirado no dia anterior. Ele não entendeu como a foto poderia estar assim, velha, gasta pelo tempo e jogada dentro daquele baú,naquele velho porão. Aquilo era realmente inquietante, embora não tenha pensado nisso.
Sem aviso, a porta do porão se abriu. Seu pai, tão mais magro, e sua irmã, tão mais alta, entraram sem pedir licença, sem nenhum medo dos morcegos, das teias de aranha imensas, dos pregos envenenados ou do lobo furioso, entraram como se conhecessem aquele lugar há tempo.
Acenderam a luz. O porão, que estranho, ficou parecido com uma sala. Foi a menina quem falou:
– Um garoto da minha escola disse que mamãe é louca, que ela vê fantasmas aqui em casa.
– Sua mãe passou por uma fase muito difícil e por isso ela foi internada, para ficar curada e voltar para a nossa casa.
– Mas fantasmas existem, papai?
– Claro que não.
– Como foi que o Antônio morreu?
– Já lhe disse várias vezes. Você sabe.
– Diga outra vez, por favor.
– Ele estava sozinho em casa, pegou a chave do porão, foi até lá e morreu.
– Como ele morreu?
– Querida, você sabe como foi. Não é fácil falar sobre isso, apesar de já fazer alguns anos. Morreu porque cortou o fio da máquina de aparar grama. Ele levou um choque.
O menino ouviu aquela história e como se estivesse se afogando, quase sem ar, soltou um grito de desespero e implorou para a irmã e o pai pararem a brincadeira, porque aquilo não tinha graça, aquilo não se podia fazer com uma criança. Mas o homem e a menina não o ouviam. O menino saiu correndo. Lá fora, porém, não tinha mais o sítio, não tinha mais o pé de caqui, nem mais o céu que se confundia com a terra. Não tinha mais nada e então, finalmente, ele entendeu que estava morto.
Fernando Evangelista é jornalista e mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira
Imagem: blogdebunker.blogspot.com