Por Rafael Neves.
A Secretaria de Aquicultura e Pesca do governo de Jair Bolsonaro publicou no início do mês uma norma que beneficia quase que exclusivamente um único empresário do setor. Trata-se do pai de Jorge Seif Junior, o titular da secretaria. A medida dobra o número de espécies que podem ser capturadas numa modalidade bastante peculiar de pesca industrial.
Só duas das quase 26 mil embarcações registradas para exercer a atividade no país se enquadram nessa categoria. Uma delas pertence ao armador Jorge Seif, pai do secretário, dono de uma empresa chamada JS Manipulação de Pescados e de uma frota baseada na região de Itajaí, em Santa Catarina.
Seif Junior é presença constante nas lives semanais transmitidas pelo presidente de extrema direita. Ganhou notoriedade ao dizer, em novembro passado, que peixes são animais inteligentes e saberiam fugir das manchas de óleo que infestavam a costa brasileira à época – uma sandice que causou espanto até do outro lado do Atlântico. Há alguns dias, Bolsonaro voltou a elogiar Seif Junior em live: disse que tinha vontade de torná-lo ministro, mas não o faria para evitar dar munição a críticos.
Com a mudança na norma decretada no último dia 4, o Mtanos Seif, maior barco da empresa da família, está autorizado a pescar um número maior de espécies – ou seja, a fazer mais dinheiro a cada saída. A decisão do órgão comandado pelo filho quase dobrou a quantidade de espécies que barcos de cerco, como o do pai, podem pescar nos períodos em que é suspensa a captura da sardinha-verdadeira.
A alteração na regra foi feita após um pedido oficial do pai do secretário protocolado em 2018. Mas, segundo a própria secretaria, ele a buscava desde 2017. Até então, o barco do empresário estava autorizado a capturar 20 espécies. Após duas revisões, o número subiu para 38. Seif é dono de uma das duas embarcações do país que têm a sardinha-verdadeira como espécie-alvo e o bonito-listrado como alvo complementar – justamente as favorecidas com a canetada.
O Mtanos Seif é uma traineira de aço com quase 36 metros de comprimento, motor de 850 cavalos-vapor (quase duas vezes a potência usual de um caminhão rodotrem) e capacidade para carregar até 180 toneladas de pescado e até 17 tripulantes. Está entre os 30 maiores barcos de pesca do país e vale cerca de R$ 15 milhões com os equipamentos incluídos, segundo estimativa de um engenheiro de pesca feita a pedido do Intercept.
Num vídeo publicado no YouTube em setembro de 2013, o secretário apresenta a chegada da embarcação ao porto de Itajaí com 50 toneladas de cavalinha e 130 toneladas de sardinha. “O barco chega a estar rebaixadinho” com “mais um carga de peixe com que papai do céu nos abençoou”, comemora Seif Junior.
A norma que interessa à empresa dos Seif já foi revista duas vezes desde 2019, a partir de um pedido feito pelo empresário pai do secretário ainda durante governo Temer.
Ciente do óbvio conflito de interesses que tinha diante de si, o secretário de Bolsonaro se absteve de assinar a medida, que acabou referendada pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina – a quem a secretaria de Pesca é subordinada. Já a revisão mais recente, feita há um mês, foi assinada por Marcelo Moreira Neves, secretário-adjunto de Seif Junior.
O cuidado do secretário para não ser flagrado beneficiando à família, porém, não resiste a uma análise aprofundada do caso. Dois especialistas com quem conversei estranham as alterações em sequência num assunto tão específico enquanto o setor pesqueiro cobra do governo, sem sucesso, uma reforma ampla da tabela de licenças de pesca, que considera defasada.
O próprio Seif Junior reconheceu que há muitas espécies de peixes e frutos do mar sendo pescadas fora das normas. O governo chegou a abrir uma consulta pública, em setembro passado, para ouvir sugestões de mudança nas regras. Para convidar os interessados a enviarem propostas, o secretário gravou vídeo chamando a norma de “Constituição Federal da pesca”.