“Se o mundo vai para a ultradireita, não pode haver um futebol de esquerda”. Entrevista de Gustavo Veiga com Ángel Cappa

Diálogo com Angel Cappa, treinador, professor de filosofia e psicopedagogia e militante de ideias. De Madri, o ex treinador de River, Huracán e Banfield analisou a atualidade política e esportiva com seu olhar sempre crítico do capitalismo. Uma voz insurgente entre tantos complacentes que se aproximam das leis do mercado.

Na apresentação do livro escrito por Marcos Roitman, Cappa com Myriam Bregman, referindo-se ao PTS e ao professor Fernando Signorini. Foi em 2023 em um local do Parque Patricios

No olhar de Ángel Cappa sobre o futebol entra muito mais do que o jogo puro, as táticas manuais ou o uso da tecnologia que o penetra tudo. Ex futebolista, treinador, professor de filosofia e psicopedagogia, costuma proteger-se em sua trinchera de ideias. Mas não para ocultar-se nem pedir tregua. Aos 78 anos segue indignado a partir do seu lugar na esquerda. Em tempos de fascismo na ofensiva, de Madri,  sua voz se soma a outras vozes insurgentes. Escreve colunas, faz um programa com seus amigos Fernando Signorini, Rubén Rossi e Mauro Navas e briga com o sistema. Não com o 4-4-2 de alguns treinadores. Se rebela contra o capitalismo, a palavra ou sua família de palavras que mais se repetirá no extenso diálogo de quase uma hora.

 Você publicou “Futebol e Política” com Marcos Roitman em 2022. Uma relação entre dois temas que raramente se estuda na esquerda. Por quê?

 – Primero tem que ver a que chamamos esquerda. Aqui na Espanha, por exemplo, a esquerda institucional não tem nada que ver com a esquerda. A esquerda está dentro do sistema capitalista e aspira a recolher algumas migalhas para repartir um pouco melhor o que todo o mundo quer e que fica com os grandes capitalistas. Na Europa em geral é assim. Na América do Sul eu acredito que também, não sei o que é o que fica da esquerda. Eu entendo como esquerda  aquilo que rejeita o  sistema econômico e de vida, que rechaça o capitalismo, que  protagoniza a democracia real, com a participação em todos os problemas sempre, onde os representantes  simplesmente obedeçam a soberania dos povos, das pessoas. Isso é o que eu chamo de esquerda. Na Argentina a esquerda, que é a equerda trotskista, é a única que mantém, digamos, essa proposta de superar o capitalismo.

Cappa quando dirigia a grande equipe do Huracán. O escutam Toranzo e Pastore aparece atrás, dois atletas fundamentais na campanha de 2009.

– E o futebol como fica dentro da sociedade capitalista? Como você defende a soberania dos sócios e dos torcedores quando seus clubes se transformam em sociedades anônimas?

  – Na Europa são empresas. Cá, na Espanha,  tem quatro que não são: Barcelona, ??Real Madri, Osasuna e o Athletic de Bilbao. O restante sim. Que um clube de futebol seja uma empresa significa que você tem valores empresariais. Quais são os valores empresariais? Eu pensei que no discurso de Trump há uma frase que pode ser transmitida diretamente ao futebol. Diz Trump: “tudo o que defendemos é ganhar”. Seria o futebol que diz: o único que vale a pena é vencer. Então você se apoderou dos valores do futebol. Sempre ganhar foi o primeiro e o principal porque é uma competência. Mas ao mesmo tempo, o como estava estabelecido. Não se poderia ganhar de qualquer maneira. Agora sim, vale qualquer coisa. Ele terminou com a importância do jogo. Passou a ser um negócio. Quando el “Flaco” Menotti disse que a bola pulou do campo para os escritórios, terminou o futebol que amávamos.

En el Real Madrid colaboró con Jorge Valdano a mediados de los años ’90.

-Como se combate esse retrocesso?

– Eu sou muito pesimista nesse sentido. Creio que o futebol não pode ser rejeitado pelo que passa na sociedade. Durante a ascensão de uma sociedade capitalista, e neste momento em que o mundo foi para a ultra-direita, não pode haver um futebol de esquerda. Não pode haver um futebol que seja capaz de te iludir além do resultado. O futebol é o resultado e ponto. Se não ganohou não serve. E o que vence é maravilhoso, mais ou menos quase à altura de Deus. Enquanto vence. Esse é o futebol deste momento.

– Voltando à política e ao futebol, cuja relação a menudo se nega ou se tenta dissimular com pouco sucesso. Qual é a opinião que lhe merece sobre Messi ter dedicado uma camiseta a Milei?

– Eu não sei se Messi mandou a camiseta para o presidente, mas em todo caso, não sei o que significa. A única coisa que me sugere é que Maradona tem um só, dentro do campo e fora também. Isso é o único que eu sugiro, porque quem sabe (Messi) tinha muitas camisetas assinadas, não sabia para quem era. Se sei que Maradona no teria jogado em uma equipe do Mas Canosa (clã cubano terrorista e anticastrista residente na Florida- N.daT.) e, segundo, que Maradona não teria assinado nenhuma camiseta para Milei. Isso é o que eu sei. Isso que eu falo agora me preocupa muito, porque Mas Canosa significa isso, significa o submundo tenebroso de Miami. Além dos fundos construídos, além dos grandes empresários, o futebol já caiu nas mãos de algo sumamente suspeito de ser mafioso.

– Os grandes capitalistas diriam que o futebol é um grande negócio para ser um esporte, não o contrário: um grande esporte para ser um negócio?

– O capitalismo converte tudo em um negócio. Tudo é comprar e vender, absolutamente tudo. Incluindo os sentimentos. Tudo é comprar à venda.

– É impossível que o futebol sul-americano deixe de ser uma fábrica de futebol europeu?

– É que seu papel é o de abastecer os melhores jogadores ao poder econômico futebolístico. Esse é o papel que você tem. Vamos à Argentina. Nossos campeonatos não têm nenhuma identidade, os jogadores vão embora cada vez mais jovens. Eles não respeitam o processo de formação. Vão imediatamente. Qual é a diferença? Que você olha os clubes europeus, os maiores, e estão cheios dos melhores jogadores do mundo a partir de ley Bosman. E nós, pelo contrário, quando trazemos um jogador europeu tem  treinta e tantos anos, está de volta. Essa é a nossa função dentro do futebol, dentro do movimento futbolístico internacional. Abastecermos de jogadores jovens ao poder econômico. Antes de Ley Bosman, na maior parte dos campeonatos entre Europa e América do Sul ganhavam os sul-americanos. A partir daí,  fomos desmantelados, não apenas os europeus ganham. Ganhammos caminhando, humilhando-te. É impossível concorrer.

– Você não acha que os futbolistas também chegaram a uma espécie de quase escravidão, porque esses rapazes que vão para a Europa, eles chegaram com 16, 17 ou 18 anos, mesmo antes, e depois de serem sujetos, se não se consolidarem, a andar girando de clube em clube?

– A situação econômica na Argentina é agora dramática. Então, salvo alguns jogadores que poderiam, mais ou menos, viver de maneira folgada, o restante quer ir embora. Em outra época, e não digo quando eu jogava no Olimpo, mas muito depois, a ambição era jogar no River, no Boca, no Independiente. Hoje a ambição é ir embora. Conseguiram meter isso na cabeça do jogador de futebol, de esquecer o jogo.  Uma vez um garoto que era de um clube de bairro aqui em Madri, onde participava de um palestra que eu dei , disse que o jogador de futebol não queria ser o mais jogador de futebol. Queria ser Cristiano Ronaldo. Mas não por como joga. Mas pelo que tem. Pelo dinheiro que você tem, pelo avião próprio, por tudo o que ostenta. Isso quer ser.

– Qual é a responsabilidade da atribuição aos meios de comunicação na construção dessa subjetividade?

– Os meios de comunicação relacionados ao futebol são um mecanismo de idiotização muito forte. Por exemplo, promovem a venda da camiseta de Cristiano Ronaldo ou de Messi, sabendo que não é a camiseta de Cristiano Ronaldo ou de Messi. A qualquer camiseta lhe colocam ese nome. E as pessoas vão comprar uma e fazer fila para conseguir. Quando veio Mbappé, o Real Madri tinha uma de não sei quantas quadras para comprar a camiseta que não é a camiseta de Mbappé. É algo tremendo. E os meios de comunicação também ocultam a verdade.

– ¿Por quê?

– Porque há uma pergunta que para mim parece importante nas sociedades anônimas esportivas. Porque nos meios que estão implicados nisso, o inversor é tratado como se fosse um benfeitor? Que vem a olhar, que tem dinheiro suficiente e que vai apoiar um clube. Não é isso. Se um inversor coloca um dólar, é para levar quatro. De nenhuma maneira você vem ajudar o clube. Porque se não houver redução desse benefício, coloca o dinheiro em outro lado. Vienen a tirar o que é teu.

– Os treinadores não têm sua cota de responsabilidade quando alimentam uma espécie de burocracia futebolística para integrar grupos de trabalho com dezenas de colaboradores, com vários auxiliares de campo, auxiliares de vídeo, operadores de drones, guarda-costas? Essas funções não estão sobrevaloradas?

– Eu me pergunto: por que quase todas as equipes do mundo fazem a mesma saída da meta? São todos iguais, colocam os dois centrais abertos, o goleiro com a bola. O arqueiro é o Beckenbauer das equipes atuais, então ninguém pensa fazer em outra coisa? Não dá para acreditar! Os goles em contra que foram engolidos e seguem engolindo por isso, ou se não, termina o goleiro tirando a bola para qualquer lado. Então ninguém diz a esses 15 ou 20 caras que tem, olhem, vamos fazer outra coisa para sair do arco? Eu viu vídeos de treinadores de arqueiros em um vagão abandonado na ferrovia, que eles subiam o goleiro no trem e eram atirados daí. É uma barbaridade.

– O que deveria mudar no futebol mesmo com a dificuldade de modificar as regras em algum momento do capitalismo?

Uma frase que me ocorreu é que não há um melhor futuro para o futebol que voltar ao passado. Ao nosso futebol, porque temos um passado riquíssimo. Eu tenho lido muito, porque me interessou sempre o nosso futebol. Eu li Nolo Ferreira, Pedernera, Peucelle, todos os que escreveram algo, que deixaram algo… entrevistas, eu li tudo. Tem que voltar a isso, a esse conceito. Não voltar a jogar como nos anos 30, porque algum idiota pode dizer: este quer jogar como nos anos 30. Não, não. Voltr aos conceitos do nosso futebol. Voltar para o que significa o futebol.

– E da sociedade que o contém na Argentina, o que acontece com a situação que vive o país ?

Estamos sendo saqueados por um governo que eu qualifico de ditadura civil. Quando o presidente tem impunidade para dizer “esquerdistas filhos de puta”, tremam, estamos na presença de uma ditadura civil. Quando o presidente diz, o que resolve o Congresso me importa três caralhos, o veto e já está, seguimos em presença de uma ditadura civil. De uma ditadura que para mim tem dois pilares fundamentais, que são a mentira e a repressão. Bom, como se combate isso? Se combate como sempre tem combatido o povo, com a luta.

Tradução e revisão do texto em português: Redação do Portal Desacato.

Gustavo Veiga é jornalista argentino.

 

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