“Se nada der certo”: vestir a máscara daquilo que nunca viveu é muito simples

Por Jéssica Moreira.

As fotos de uma festa realizada na Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH), Rio Grande do Sul, bombaram na internet esta semana. Com a temática “Se nada der certo…”, os estudantes do 3º ano do ensino médio utilizaram fantasias que simbolizavam o não êxito na vida profissional.

O problema é que as fantasias eram de trabalhadoras domésticas, vendedores ambulantes, atendente de supermercado, churrasqueiro e houve até aqueles que se fantasiaram de pessoas em situação de rua. Todas estas profissões exercidas, principalmente, por nós, na periferia, ou por pessoas muito próximas da gente, e, não, essas profissões por aqui não são sinônimo de fracasso, mas sim de resiliência e até mesmo criatividade frente a um Estado completamente desigual.

Campo Limpo (SP)| Créditos: gSe?/DiCampana

Campo Limpo_SP2016| Foto: gSe?/DiCampana

Eu fui criada pela minha mãe, dona Luzia Moreira, que foi doméstica por toda a vida, e meu pai, seu Sebastião André, que por muito tempo fez leitura de água e gás, percorrendo toda a cidade de São Paulo na sola dos pés. Minha avó materna, Evarista Gonçalves, era cozinheira e passadeira. Morreu há mais de 35 anos, quando atravessava a rua para levar a roupa pronta para a patroa. Minha mãe, aos 52, descobriu uma série de problemas ligados a reumatismo por conta do trabalho pesado que exerceu durante toda sua vida. Meu pai faleceu há três anos sem direito a uma aposentadoria. O motorista que atropelou minha avó nunca pagou um centavo de indenização à família, que ficou orfã.

As histórias acima ilustram um pedaço do que é a periferia e quanto as profissões que serviram de chacota para alguns estudantes, são as mesmas que são fonte de renda para diversas famílias como a minha. Se vestir com a máscara daquilo que você nunca viveu é muito simples, mas viver os desafios diários que essas profissões impõem e, ainda assim, não são reconhecidas, isso é para poucos.

Mesmo depois de trabalhar por anos em algumas casas de família, nenhuma delas ofereceu auxílio de saúde à minha mãe, que é um dos exemplos entre outras tantas mulheres nas periferias que encontrou na profissão de doméstica a possibilidade de sustentar suas famílias.

Atrás disso, há a história de uma mulher que foi praticamente obrigada a deixar os estudos ainda na infância para ajudar a criar os quatro irmãos mais novos que haviam ficado orfãos. Ou seja, não houve um “se nada der certo”, porque antes não restou nem escolha.

Para além da questão pessoal de minha mãe, o trabalho informal por aqui não é uma opção, é uma necessidade. Alguns vão dizer que isso acontece por falta de qualificação profissional, mas isso é, na verdade, resultado da histórica desigualdade de classe e raça que marcou a construção do nosso país.

Após a abolição da escravidão, em 1888, negros e negras foram excluídos da formação de um mercado livre no Brasil. Segundo Petrônio Domingues, em “Uma História não Contada – negro, racismo e branqueamento em São Paulo na pós – abolição”, a legislação que regeu a formação do mercado livre no Brasil foi altamente discriminatória, com leis e decretos que excluíam a população negra do mercado de trabalho, seja na lavoura, nos cargos públicos, militares ou até mesmo religiosos. Imigrantes europeus entraram no país a partir do discurso de que não havia mão-de-obra com o fim da escravidão, quando na verdade os “ex-escravos” eram aptos para realizar quaisquer atividade e o grande objetivo dos que comandavam a nação era o de branquear as próximas gerações. Havia uma série de políticas de incentivo para a entrada de imigrantes, enquanto os negros continuavam a ser expulsos.

Foram criados estereótipos e mitos ligados ao homem e mulher negra, tarjando-os de indisciplinados e não aptos a realizarem tais atividades, negativizando, inclusive, as identidades do povo negro, como, por exemplo, o caráter festivo. Toda a potência do negro(a) era visto como um problema, com o objetivo de nos inferiorizar.

Diante desse histórico, é possível compreender que a exclusão dos negros e pobres do mercado de trabalho não aconteceu só porque “nada deu certo”, mas sim porque houve um projeto de país que nos excluiu socialmente das atividades econômicas.

Essa dívida histórica do Estado com a população negra e pobre também está, hoje, ligada ao acesso a direitos básicos, como Educação. Eu sou filha de uma geração que quebrou o ciclo e conseguiu ingressar na universidade. Políticas de acesso, como as cotas sociais e raciais, assim como programas como o Prouni foram fundamentais para que isso acontecesse.

O acesso ao Ensino Superior, no entanto, ainda não é unanimidade entre nós e quando atravessamos a “ponte para o conhecimento”, essa diáspora vem cheia de dificuldades na própria permanência.

A escola pública básica é deficiente em nos oferecer conteúdo, fazendo-nos ficar anos luz atrás de outros colegas, mesmo quando já estamos dentro da universidade. As longas distâncias, em uma cidade tão grande e com transporte público tão falho, também pode ser motivo de desistência, sem contar os altos custos com alimentação e materiais de apoio.

Isso tudo para dizer que não é por acaso que muitos de nós está no mercado informal. Antes disso, há muitos percursos a serem percorridos. E, para finalizar, é importante dizer que essas profissões que serviram como riso para estudantes ( que claramente desconhecem a história brasileira), para nós, aqui, é motivo de orgulho.

Leia mais: “Na universidade, sou uma das cinco mulheres negras em uma sala de 85 alunos brancos”

Convido vocês a pegarem um dia de trem em São Paulo e observar como um vendedor ambulante cria as mais diversas estratégias de marketing para escoar sua mercadoria. Sugiro ir em qualquer calçadão de qualquer quebrada paulistana e observar quantos empreendedores  e empreendedoras lideram carrinhos de cachorro-quente, de bolo recheado, pastel ou batatas fritas. E, se nada der certo por aqui, eu até posso dar uma aulinha de História pra vocês!

Jéssica Moreira é jornalista, cofundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia e moradora de Perus, zona noroeste de São Paulo.

Fonte: Nós, mulheres da periferia

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