Por Rita Galvão.
De forma extremamente dócil aos interesses particulares na região do Norte de Santa Catarina, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negou provimento às apelações que defendiam a legitimidade da demarcação das Terras Indígenas de Piraí, Tarumã, Morro Alto e Pindoty.
Da ementa do julgado, verifica-se que o argumento fático expressado pelo Tribunal para negar os direitos territoriais indígenas foi de que o seu reconhecimento se deu exclusivamente com base no “relato dos próprios indígenas” e, visando fundamentar melhor o tal acórdão da maldade, valeram-se também da pouco consolidada “tese do marco temporal”, equivocadamente estabelecida no julgamento do caso da Terra Raposa Serra do Sol e que ainda não deixou de ser centro do debate político.
A falta de atribuição de legitimidade à fala dos indígenas no julgado visando afastá-los ainda mais de seus direitos não está longe da mesma razão jurídica pela qual se absolviam muitos dos agressores de mulheres em função da pouca legitimidade que os tribunais hegemônicos atribuem às vozes dos subalternos. A negação de peso à palavra dos indígenas no processo demarcatório restaura injustiças históricas e prepara o terreno para que logo sobrevenha algo no “marco” dos outros.
É assim que passamos a pensar o quanto de “indígena” existe neste marco temporal estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal em julgado anterior e que quer se fazer presente em todas as demarcações de terras indígenas atuais.
Se pudéssemos pensar a partir de um mundo que não estivesse “às avessas”, como o qualificou Eduardo Galeano, qual seria um bom marco para se pensar os direitos indígenas? A Conquista da América e os primeiros atos de colonização, as incursões dos bandeirantes sobre o território missioneiro para preação de índios? O aprisionamento de mulheres e crianças para forçar a mão de obra escrava indígena na busca das drogas do sertão na Amazônia? As concessões feitas à Companhia Matte Larangeira, atingindo em cheio o território dos Kaiowá e Guarani? Que tal o momento do estabelecimento de verbas públicas para bugreiros nos municípios catarinenses já nas luzes do século XX? E a retirada das equipes de saúde do território ianomâmi em meio a séries de epidemias determinada pelo então presidente da Funai, Sr. Romero Jucá, como denuncia o Relatório da Comissão Nacional da Verdade?
São muitos os marcos a serem pensados, caso os tribunais, de fato, quisessem fazer este exercício de alteridade, colocando-se no lugar do outro, e pensando onde colocariam o seu “marco”, caso o “marco” fosse deles. Seguramente os tribunais, na deliciosa ilusão criada pelos bancos acadêmicos do curso de Direito em diferenciar “o mundo dos autos” do “mundo da vida” preferem ratificar de forma cordata o discutível marco, colocando-o, de forma paradoxal na Constituição de 1988, momento em que os povos indígenas tiveram pela primeira vez sua voz alçada em nível constitucional.
Rita Galvão, é jurista e contribui com oindigenista.com