São Paulo: radiografia de uma privatização velhaca

 

Foto: Sérgio Lima / Poder 360.

Por Daniel Angelim, Daniel Martins, Gonzalo Berrón, Maria Brante Tatiana Ferraz, do Coletivo Vigência.

João Doria foi eleito prefeito de São Paulo com base num discurso privatizante, segundo o qual, empresários seriam capazes de gerir melhor os recursos públicos do que a própria Prefeitura. Agora, lidera as pesquisas para o governo de São Paulo. Mas quais os reais efeitos da sua política de privatização? Foi realmente capaz de “desonerar” os cofres públicos? Quem ganhou e quem perdeu em cada um dos bens e serviços concedidos à iniciativa privada? E quem ganhou com as famosas doações empresariais para a cidade?

Na tentativa de responder a essas perguntas, o coletivo Vigência, com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, realizou uma pesquisa analisando a política de privatizações de ativos, serviços e equipamentos públicos, bem como de recebimento de doações empresariais durante o primeiro (e único) ano de gestão do ex-prefeito. O estudo mapeou as principais propostas de privatização apresentadas pela gestão e as maiores doações recebidas pela Prefeitura para tentar verificar se realmente são, como defendido pelo governo Doria, vantajosas do ponto de vista econômico e social.

A narrativa privatizante de João Doria não é nova. Teve seu apogeu no Brasil no começo da década de 1990, quando tiveram início as privatizações de boa parte das empresas do setor elétrico, petroquímico, siderúrgico, telecomunicações, de mineração e ferroviário. Entre 1991 e 2000, mais de cem empresas estatais de propriedade da União e passaram para as mãos da iniciativa privada. Nos últimos dez anos, quase todos os governos acabaram concedendo a companhias privadas, aeroportos, usinas de geração de energia, estradas etc., apesar de muitas dessas parcerias terem se mostrado ineficazes para alcançar seus objetivos declarados de aumento de eficiência, melhora na prestação de serviço ou barateamento dos preços.

A campanha de Doria à Prefeitura de São Paulo também apoiou-se num discurso que defendia a lógica do mercado como a forma mais eficiente de gestão dos bens e serviços públicos. Além disso, propunha um modelo de relação empresa-Estado que incluía a noção do empresário benfeitor que colabora para a coisa pública não apenas pagando impostos, mas também realizando onerosas doações supostamente desinteressadas: a lógica privada seria boa não apenas como modelo de gestão, mas também pelos benefícios diretos que o bom empresariado poderia canalizar para o Estado.

Eleito em primeiro turno, Doria, ao tomar posse em 2017, apresentou seu programa de privatização como um “programa de desestatização” e, para levar tal política adiante, desenvolveu uma infraestrutura institucional e medidas específicas que montaram uma verdadeira máquina de privatizar dentro da própria Prefeitura.

Entre essas iniciativas, estão a criação de uma secretaria municipal de Desestatização e Parcerias, a elaboração do Plano Municipal de Desestatização (um pacote de concessões de serviços e equipamentos públicos à iniciativa privada, a PL 367/2017) e a Secretaria Especial de Investimento Social (que visa captar doações e investimentos privados para as áreas de educação, saúde e assistência social).

As privatizações em si tiveram início a toque de caixa já em meados de 2017, com projetos de lei encaminhados à Câmara dos Vereadores sem consulta pública prévia a respeito do interesse público de cada iniciativa. A maioria dos projetos foram criticados pela oposição por se basearem em textos classificados como imprecisos, contendo poucas informações sobre como se daria cada um dos processos de privatização e quais seriam as contrapartidas exigidas das empresas etc.

Após analisar a política de desestatização em profundidade, concluímos que, ao contrário do defendido pelo prefeito, as privatizações nem sempre desoneram o município e nem sempre servem ao interesse público. A principal argumentação utilizada por Doria para defender a privatização – a de que os equipamentos dão prejuízo para a Prefeitura – não se sustenta. Vários dos equipamentos e serviços a ser privatizados com prioridade têm balanço anual positivo, tais como os mercadões da região central. Além disso, se somarmos a economia projetada com a privatização dos itens elencados como prioritários na política de privatização da Prefeitura – complexo do Anhembi + SPTuris; 14 mercados e 17 sacolões; 14 parques e praças; sistema de bilhetagem do transporte público; estádio do Pacaembu; 22 cemitérios e um crematório; remoção de pátios e estacionamento; e administração dos terminais de ônibus, chega-se a um total de R$ 541 milhões, cerca de 1% da arrecadação da Prefeitura em 2017.

Tampouco as doações empresariais necessariamente representam economia para o Estado ou vantagens para os cidadãos.

Examinemos, a seguir, alguns dos principais casos analisados na pesquisa.

Mercados – O plano de privatização dos mercados e sacolões proposto pela gestão Doria envolve 14 mercados e 17 sacolões municipais. Atualmente, a gestão desses equipamentos é feita pelas associações de permissionários, que arcam com as despesas de luz, água, limpeza, reformas e segurança. Os 814 permissionários pagam cerca de R$ 1 mil/mês por boxe e alugam estes para cerca de 1.000 comerciantes. Estima-se que esse conjunto de equipamentos gere 5 mil empregos.

A gestão Doria alegava que esses equipamentos eram deficitários e necessitavam urgentemente de reformas estruturais para o seu “bom” funcionamento. O custo dessas melhorias foi estimado pela Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias (SMDP) em R$ 9 milhões, valor que, segundo a Prefeitura, só seria possível de arcar por meio de concessão dos mercados e sacolões à iniciativa privada. Outro argumento utilizado pela Prefeitura é o de que a privatização facilitaria o cumprimento da vocação desses mercados como pólos de turismo gastronômico. A pressão dos permissionários e comerciantes, bem como dos vereadores da bancada de oposição, fez com que a Prefeitura limitasse suas ambições de privatização a apenas três mercados municipais: Mercado Municipal Paulista (Mercadão), Mercado Kinjo Yamato e Mercado de Santo Amaro.

Sabe-se, contudo, que tais mercados estão entre os mais superavitários desse tipo de equipamento (só o Mercado Central gera lucro de R$ 5 milhões ao ano para a Prefeitura). Também nesse caso, o pretexto de privatizar para desonerar os cofres públicos não se sustenta.

Além disso, a legislação aprovada é vaga e não define os termos de concessão de uso dos mercados, o que eleva o risco de aumento do preço das mercadorias e gentrificação desses espaços, que poderão acabar transformados em shoppings e praças de alimentação para a classe média alta e para o turismo global, tal como ocorreu com o Mercado de Pinheiros.

Anhembi – Entre outros equipamentos na lista das privatizações que tampouco tem dado prejuízo à Prefeitura está o Anhembi que, segundo dados publicados pela Prefeitura, fechou o ano de 2016 positivamente. Na verdade, o que o projeto parece facilitar é a especulação imobiliária em uma das áreas mais valorizadas da cidade.

A SPTuris é uma sociedade de economia mista, de capital aberto, cuja maioria das ações (97,6%) está nas mãos da Prefeitura. Dedica-se à locação dos espaços do Complexo do Anhembi e à produção de eventos (majoritariamente do município) e atua como Secretaria de Turismo. Sua privatização será viabilizada com a venda de suas ações na Bovespa por meio de um agente financeiro contratado pelo município. A gestão Doria alega que a empresa vem dando prejuízo aos cofres públicos nos últimos anos (R$ 68 milhões em 2016) e precisa ser vendida.

Olhando atentamente para os números, porém, percebe-se que os argumentos da Prefeitura para a privatização não se sustentam, já que: a) o déficit da SPTuris foi causado pelo próprio município, que diminuiu drasticamente os contratos de realização de eventos em 2016, fazendo com que a arrecadação da empresa despencasse naquele ano; e b) sua privatização não vai desonerar a Prefeitura, já que a folha de pagamento da empresa representa a maior parte de seus gastos (R$ 75 milhões anuais) e, no edital de privatização, o município garante que vai empregar os servidores da SPTuris em outras secretarias.

A venda da empresa, que implicará a venda do Complexo Anhembi, alimenta a especulação imobiliária na região. O Projeto de Intervenção Urbana (PIU) aprovado para a privatização da SPTuris ignora a lei de zoneamento do local do terreno e o Plano Diretor da cidade, permitindo um aumento do potencial construtivo do terreno em 68% (que corresponde a 1,7 milhão de metros quadrados). Além disso, o PIU reduz significativamente o valor da contrapartida que o futuro dono da área terá de pagar ao município para construir acima do limite permitido na região, a chamada outorga onerosa. Na prática, o texto aprovado pelos vereadores em maio diminui em 46% o preço do metro quadrado que será construído a mais pelo empreendedor. Além disso, com a especulação imobiliária, perdem também os habitantes do entorno que moram de aluguel, já que a tendência é de alta dos preços.

Simultaneamente, a privatização da SPTuris extingue o órgão executor da política de turismo para a cidade (equivalente à Secretaria de Turismo), desarticula o seu corpo técnico (que inclui 360 servidores concursados) e abdica do controle público de uma área de 400 m2 numa zona estratégica da cidade, próxima ao centro e bem servida de infraestrutura, e dos seus espaços de locação, mais conhecidos como Complexo Anhembi (Pavilhão de Exposições, Palácio das Convenções e Sambódromo).

Portanto, na verdade, quem lucra com a privatização da SPTuris não é nem a população nem a Prefeitura de São Paulo, e sim dois grandes grupos de interesses privados: 1. Atores do ramo de gestão de eventos, liderados pela multinacional francesa GL Events, à frente da São Paulo Expo da Rio Centro, e maior interessada na compra da SPTuris; 2. Atores do mercado imobiliário.

Pacaembu – Tampouco a privatização do Pacaembu parece servir ao interesse dos cidadãos. O edital de concessão do estádio à iniciativa privada foi lançado em março de 2018 e prevê a concessão do complexo inteiro, que inclui o centro poliesportivo, por 35 anos. Além da importância simbólica do estádio, o centro poliesportivo oferece várias atividades gratuitas. O complexo é público, inclui uma piscina, um ginásio de esportes, um ginásio de tênis, uma pista de corrida, quadras externas e cobertas e está aberto a todos e todas as paulistanas, que podem ter acesso também às aulas (dança de salão, futsal, ioga, judô, natação, pilates, tênis e vôlei) ministradas no local. Com a venda do complexo, toda esta estrutura seria fechada.

Segundo o texto provisório, o lance mínimo será de R$ 12,4 milhões, mas a Prefeitura prevê ganhar R$ 402 milhões na operação. Outra vez, o principal argumento para a privatização levado à mesa pelo governo Doria foi o do déficit orçamentário: para justificar sua intenção de conceder o Pacaembu à iniciativa privada, a Prefeitura alega que o estádio custa, a cada quatro anos, R$ 40 milhões[1] aos cofres públicos.

Outra possível consequência negativa para a população do entorno relaciona-se à realização de eventos culturais e de entretenimento no estádio do Pacaembu, tais como shows: a possibilidade de promover tais eventos, tal como acontece na Arena Palmeiras ou no Morumbi, é um dos principais chamarizes do local para a iniciativa privada.

Por fim, apesar da lei proposta observar a necessidade de respeitar a atual legislação de tombamento histórico do imóvel prevista pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo), o tombamento do Pacaembu não inclui o chamado “Tobogã”, arquibancada construída depois que o estádio foi finalizado. Nos cinco projetos apresentados após o chamamento feito pela PMSP, quatro projetam a derrubada do “Tobogã”. Foram sugeridos a construção de hotéis e até uma piscina de ondas artificiais.

Bilhete Único – A privatização do sistema de bilhetagem de ônibus é outro exemplo de transação questionável do ponto de vista do interesse público. Hoje, quando um usuário se cadastra no sistema da Prefeitura, é convidado a preencher uma “pesquisa de perfil socioeconômico”, além de fornecer dados básicos, como endereço, idade e sexo. De acordo com a proposta de privatização atual, a empresa que comprar o sistema poderá usar os dados dos usuários para fins comerciais, além de rastrear os deslocamentos e o comportamento dos usuários.

Adicionalmente, não há nenhuma pesquisa que corrobore a alegação da Prefeitura de que esses serviços são insatisfatórios ou de que as privatizações melhorariam a sua qualidade.

Doações – As doações também não cumprem o prometido. Frequentemente são pouco transparentes. Adicionalmente, muitas delas parecem não ter sido pautadas pelas necessidades da cidade e das(os) cidadãs(os) e, às vezes, parecem ter sido de fato guiadas pelos interesses das empresas. O que é ainda mais grave, em alguns casos, as doações subverteram princípios democráticos, permitindo a empresas doadoras ganhar ingerência em definições de diretrizes políticas municipais de seu próprio interesse.

No que diz respeito ao último ponto, em alguns casos, a doação permite a empresários doadores ganhar acesso a dados estratégicos e exercer influência indevida sobre políticas públicas de seu próprio interesse. A organização Comunitas, por exemplo, em conjunto com a consultoria McKinsey doou R$ 3.727.189,50 em serviços de consultoria à Prefeitura. Uma dessas consultorias, avaliada em R$ 2.836.151 consiste, segundo o termo de doação, em um “diagnóstico dos principais desafios da cidade de São Paulo, tendo como referência as melhores cidades para se viver”. Mas a doação da Comunitas apresenta dois problemas principais: o primeiro é que dá acesso privilegiado a informações estratégicas e a funcionários da Prefeitura que são de interesse de empresas que são clientes ou clientes em potencial da McKinsey. O segundo é que coloca empresários em posição privilegiada para defender seus próprios interesses em assuntos de importância vital para a cidade. No caso desta consultoria, eles têm acesso direto ao prefeito e aos seus secretários e papel importante na definição de metas e diretrizes relacionadas ao seu campo de atuação. Empresários ligados a empresas tais como Cyrela e Gerdau, por exemplo, ajudam a Prefeitura a pensar no Plano Diretor da cidade.

Além disso, apesar de as doações serem defendidas por supostamente trazer benefícios materiais diretos para a Prefeitura, elas têm representado custos para o erário público. A Secretaria da Saúde, por exemplo, anunciou uma parceria com empresas farmacêuticas, que doariam até R$ 35 milhões de reais[2] em medicamentos para ajudar a resolver o problema da falta de acesso da população a remédios. Em troca, contudo, as empresas receberam isenção de impostos equivalente a R$ 66 milhões. Além disso, doaram remédios próximos ao vencimento, que já não poderiam ser comercializados, limitando sua utilidade – as empresas, porém, ganharam ao  economizar no descarte dos medicamentos, que é um processo caro. Segundo reportagem da rádio CBN de junho de 2017, os remédios se acumulavam em várias Unidades Básicas de Saúde (UBSs). O Ministério Público abriu uma investigação sobre o caso. Em novembro, a rádio publicou nova reportagem alegando que, no período entre junho e agosto, até 35% dos remédios doados haviam sido descartados, cinco vezes mais do que no mesmo período do ano anterior, na gestão do prefeito Fernando Haddad.

No que diz respeito à transparência, no início da gestão não havia publicações no Diário Oficial sobre todas as doações recebidas. Em fevereiro de 2017, foi anunciado que informações sobre as doações seriam publicadas no Portal da Transparência da Prefeitura. Os dados disponibilizados, contudo, são genéricos e não incluem a memória de cálculo para se chegar ao valor declarado. Alguns valores listados também são questionáveis. A maior doação registrada, pela Cisco, no valor de R$ 300 milhões, por exemplo, não discrimina os itens recebidos e nem o valor de cada item. Ao ser questionada sobre a memória de cálculo do valor, a Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias respondeu que os equipamentos doados foram utilizados na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016 e que, “por tratar-se de equipamento usado, não há tabela de referência no mercado local”, mas que o valor foi calculado com base no que seria o custo de comprar equipamentos novos.

O que este primeiro ano de gestão do prefeito João Doria parece indicar é que sua orientação privatista — seja como critério de organização da gestão, seja como cessão para a iniciativa privada de áreas, serviços ou bens públicos ou, no caso das doações, como tentativa de mostrar o lado “altruísta” dos agentes do mercado —  não necessariamente resolve os problemas financeiros que o prefeito aponta nem traz os benefícios que promete, assumindo assim um caráter demagógico. Tampouco a democracia é fortalecida por este estilo de gestão. Ao contrário: ela sofre quando interesses privados são favorecidos ante o interesse público, quando a transparência é reduzida e quando a relevância dos mecanismos participativos de controle é diminuída.

Com essa pesquisa, o Vigência pretende contribuir para dar visibilidade a essa relação entre o público e o privado que vê como nociva para a cidade de São Paulo e, ao compilar dados e informações sobre seus reais efeitos, fornecer munição para organizações, movimentos e indivíduos que queiram se contrapor a esse discurso e a essa prática que coloca o privado acima do público. O caráter público da gestão só será ampliado se a sociedade paulistana conseguir colocar um limite claro ao privatismo de políticos como o ex-prefeito João Doria e puder se envolver ativamente na construção de espaços de gestão mais democráticos.

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