Na tarde fria do dia 19 de julho, a empregada doméstica Marlene Sabino Calixta, de 39 anos, recorreu ao pronto-socorro municipal 21 de junho, na Avenida João Paulo I, no bairro da Freguesia do Ó, para tratar uma forte crise de asma. Os corredores estavam empilhados de gente. Cinco pacientes aguardavam atendimento deitados no chão. Marlene levou duas horas para ser recebida pelo médico e, se não fosse sua exigência, ele não teria nem examinado o pulmão. A consulta levou exatos três minutos, e Marlene saiu só com a receita do antibiótico nas mãos.
No mesmo mês de julho, a produtora Sofia Marques, 28 anos, levou a filha de 1 ano e 11 meses para o Hospital São Camilo por determinação da pediatra, que diagnosticou um quadro de insuficiência respiratória. Apesar de ter plano de saúde, que lhe garantia o atendimento e a internação da criança, a produtora esperou três dias na emergência para transferir a filha para UTI, onde a criança ficou mais três dias, em contato com pacientes com quadros mais graves, embora tenha tido alta no segundo dia. O motivo? Não havia vagas na pediatria infantil em nenhum hospital privado da zona Oeste de São Paulo, segundo o São Camilo, devido à alta incidência de doenças respiratórias no inverno.
O atendimento precário do sistema de saúde paulistano fica ainda mais evidente no inverno, quando a poluição atinge os índices mais altos. Na região metropolitana de São Paulo, são 47 mil indústrias e cerca de 100 mil estabelecimentos comerciais. Na última década, a população da capital paulista cresceu 12%, enquanto que a frota de veículos teve aumento de 65%, chegando a 7 milhões em março do ano passado – ou seja, um carro para cada 1,5 pessoas. Essa avalanche de carros nas ruas está causando congestionamentos diários de mais de cem quilômetros nos horários de pico. Os carros emitem gases poluentes que podem causar doenças respiratórias, de rinite, sinusite à pneumonia.
O médico Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da USP e pesquisador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental, diz que apesar de haver um maior controle na última década sobre a emissão de gases dos veículos, com o aprimoramento da tecnologia e o uso de novos combustíveis, hoje, os paulistanos estão mais expostos aos poluentes, porque permanecem mais tempo nos engarrafamentos. “Se uma pessoa passa duas horas ingerindo partículas poluidoras em um congestionamento, isso equivale a fumar ao menos um cigarro por dia”, explica.
No ano passado, foram quatro mil mortes em São Paulo decorrentes dos malefícios da poluição. “Já sabemos que a relação entre poluição e danos à saúde é direta e proporcional. No Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor), as internações por problemas cardíacos aumentam 4% quando o ambiente tem maior concentração de poluentes”, diz o médico epidemiologista Luiz Alberto Amador.
Outro fenômeno que aumentou o volume de atendimentos na saúde é o envelhecimento da população. Na última década, o número de paulistanos com mais de 60 anos cresceu em mais de 35%, chegando a mais de 1,3 milhão. No inverno e em dias de baixa umidade relativa do ar, cresce ainda mais a quantidade de idosos e crianças que procuram os hospitais e consultórios. Os dois grupos etários são mais suscetíveis aos efeitos das mudanças climáticas e da poluição, principalmente se já têm propensão às doenças respiratórias e cardiovasculares.
Dos atendimentos de emergência, 77% são por doença respiratória
Um estudo publicado em 2011, pela pesquisadora Silvia Letícia de Santiago, da Unifesp, provou essa relação entre os poluentes emitidos pela frota automotiva e uma maior incidência de casos de doenças respiratórias nos paulistanos de diversas faixas etárias.
“Durante três anos, estudamos 177 mil casos. Cruzamos os dados das consultas no serviço de emergência do Hospital São Paulo com os índices de poluição da CETESB. Do total, 77,5% foram atendimentos por doenças respiratórias“, diz Silvia.
No caos de São Paulo, o trânsito também é responsável pela elevação do estresse e do sedentarismo. Passar muito tempo dentro de um carro, um ônibus ou um metrô significa ter menos tempo para fazer exercícios físicos e lazer, o que torna o cotidiano do paulistano ainda mais cansativo. “As dificuldades de vida em São Paulo aumentam os transtornos mentais, como depressão, ansiedade, pânico, além de um maior uso de álcool e outras drogas”, diz o médico Paulo Rossi da Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Rossi afirma que as populações mais pobres estão ainda mais sujeitas às doenças mentais decorrentes das preocupações cotidianas. Um levantamento feito pela médica psiquiatra Laura Andrade do Hospital das Clínicas de São Paulo, divulgado em março deste ano, afirma que três em cada dez paulistanos sofrem de algum tipo de transtorno mental. Outro fenômeno contemporâneo apontado por Rossi em centros urbanos é a fadiga crônica, um forte cansaço que pode perdurar por seis meses. Para este tipo de diagnóstico e tratamento, ele diz que os serviços públicos ainda têm pouco a oferecer.
O trânsito não só adoece, mas também mata os moradores da capital. Em uma década, o número de motos passou de três milhões para mais de 11 milhões. Apenas no ano passado, a mortalidade de motociclistas envolvidos em acidentes de trânsito na capital paulista cresceu em 7% em relação a 2010, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). E não seria para menos: a quantidade de viagens diárias de motos na cidade pode chegar a 25 milhões.
Saúde é o problema que mais aflige os paulistanos
Os problemas causados pela insalubridade da metrópole tornam-se ainda maiores pela precariedade do atendimento em saúde na mais rica e populosa capital do país, com seus 11 milhões de habitantes (20 milhões na grande São Paulo). Falta de leitos em hospitais, espera longa para consultas e exames, carência de médicos, equipamentos fora de ordem, diagnósticos imprecisos, enfim, são muitos os problemas que afligem os paulistanos que precisam de atendimento em saúde.
Às vésperas das eleições municipais, os paulistanos elegeram a saúde como o mais importante problema a ser enfrentado pelo próximo prefeito, segundo pesquisa do Datafolha publicada em 7 de julho. A saúde levou 26% dos votos, ultrapassando até a segurança, uma das maiores preocupações dos paulistanos nas últimas décadas.
Para paulistanos como Marlene, que sempre dependeram do atendimento público em saúde, o caos nos hospitais não chega ser novidade. O que aflige é a falta de evolução do quadro: “Nos últimos anos, nada mudou nos atendimentos. Aliás, estão cada vez piores”, diz ela, relembrando o sofrimento vivido no ano passado. Em janeiro de 2011, conta, chegou ao posto de saúde, a UBS – Unidade Básica de Saúde – da Vila Ipojuca, com queixas de dores nas pernas. Esperou uma hora e meia para ser atendida por um clínico que a encaminhou para um especialista. Em março, ela foi atendida por um cirurgião vascular na AMA (Assistência Médica Ambulatorial) de Santa Cecília, no centro da cidade, que indicou uma cirurgia e pediu uma série de exames pré-operatórios. Foram cerca de três meses para fazer os exames previamente marcados. Com os resultados na mão, em agosto do mesmo ano, ela foi encaminhada à AMA da Vila Maria, na zona norte, para ser operada. Ao chegar lá, ouviu do cirurgião que ali não havia vagas e recebeu dele um papel de encaminhamento para a AMA de Guarulhos, município vizinho a São Paulo. “Mesmo sendo longe, ele me garantiu que eu seria operada. Corri para lá”, diz Marlene. Em Guarulhos, o pessoal do atendimento afirmou que não estavam mais aceitando solicitações da prefeitura paulistana e que ela deveria retornar à AMA de Santa Cecília. Depois de nove meses de périplo, Marlene voltou. E foi a gota d’água. “Eles me disseram que meus exames não eram mais válidos, porque se passaram muitos meses e que eu deveria começar tudo de novo. Fiquei com tanta raiva, que desisti”.
Na capital paulista, hoje existem 440 Unidades Básicas de Saúde, responsáveis por consultas, vacinas e 119 AMAs, além de 16 AMAs Especialidades e 18 hospitais para os casos mais complexos. De acordo com a prefeitura, o número de consultas nestes locais subiu de 3,7 milhões, em 2007, para 10,2 milhões, no ano passado. A princípio, as AMAs foram criadas para desafogar o fluxo nos pronto-socorros e hospitais. Mas como a qualidade de atendimento é ruim, com longas filas de espera, sem conseguir resolver problemas primários, os pacientes continuam recorrendo aos sistemas de emergência. Para agravar ainda mais a situação, três hospitais prometidos durante a campanha do prefeito Gilberto Kassab até agora não saíram do papel e a prefeitura não quis assinar convênios com o governo federal para implantar outros modelos de atendimento, como o Hora Certa, que busca reduzir o tempo de espera dos pacientes.
“Não existe integração entre os sistemas. Não adianta disponibilizar remédios na rede pública, construir hospitais, se não conseguimos identificar e tratar doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. E também não adianta descobrir um câncer de mama, se não há como dar continuidade ao tratamento”, afirma Marcos Bosi Ferraz, professor na Escola Paulista de Medicina e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A integração entre os governos federal, estadual e municipal é um dos pilares do Sistema Único de Saúde, o SUS, criado em 1988. Mas sai governo e entra governo e os cidadãos ficam sujeitos aos interesses políticos de cada gestor. ”Deveria haver uma reforma administrativa em todo o SUS. As chefias dos hospitais, dos centros de saúde não deveriam ser cargos de confiança escolhidos por políticos. A seleção deveria ser por mérito e os profissionais deveriam ser avaliados por resultados de atendimentos”, diz o professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp e membro do Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (CEBES), Gastão Wagner.
O Ministério da Saúde assumiu publicamente a ineficiência do SUS ao publicar no dia 1 de março a primeira avaliação do Índice do Desempenho do Sistema de Saúde (IDSUS), concluindo que o país não alcança a média de 7 pontos, considerada ideal. Neste relatório, a média nacional ficou em 5,47. A cidade de São Paulo aparece com 6,21 pontos, na frente de Brasília (5,09) e Rio de Janeiro (4,33).
Apenas 3,7% do PIB vai para a saúde; o ideal seria 7%
É unanimidade entre os especialistas em apontar a falta de recursos como um dos principais cancros do sistema. O orçamento total da saúde no Brasil é de 8,4% do produto interno bruto (PIB). Este seria um índice ideal, se consideramos que a Organização Mundial de Saúde recomenda o mínimo de 7% do PIB. Porém, a questão é quem fica com a maior parte deste dinheiro: cerca de 60% são destinados aos setor privado para atender apenas 46 milhões de conveniados, enquanto que os restantes 40% são para os 190 milhões de brasileiros com direito ao SUS. Ou seja, a fatia estatal representa apenas 3,7% do PIB para a saúde pública. Se compararmos a países que se utilizam deste sistema, a disparidade é ainda maior. No Reino Unido, de onde saiu o modelo que inspirou o brasileiro, o Estado gasta 8,4%. Na Espanha são 8,5%, na Holanda são 8,9% e na Itália, 8,7%.
Na última década, ainda houve uma redução de repasse dos recursos federais para os municípios: de 60% foi para 44%. A ideia seria descentralizar os custos e obrigar Estados e prefeituras a investirem mais. Segundo a prefeitura de São Paulo, os custos em saúde saltaram de R$ 2,46 bilhões, em 2004 para R$ 6,68 bilhões neste ano. Ou seja, houve um aumento de verbas e o município cumpriu a exigência constitucional de destinar 15% de seus gastos para a saúde. Resolveu o problema? Não, porque o gargalo é muito grande. “Mesmo ao destinar 20% do orçamento, em termos de necessidades e ofertas de serviços, essa verba não é suficiente. O problema é crônico: os recursos investidos não geram saúde”, afirma o professor Ferraz. Ele explica que tanto no País, como no município de São Paulo, os gestores da saúde estão acostumados a pensar em curto prazo, apagando incêndios, sem elaborar um planejamento contínuo. Para Ferraz, essa visão de longo prazo começa por uma maior dedicação ao atendimento primário.
“Outro problema é que existe uma demanda alta e uma oferta baixa e desatualizada dos serviços médicos”, aponta Gastão Wagner. Na capital paulista, o número de médicos subiu de 8.606 para 14.400 em 2011, o que representa um aumento de 67,3%. Apesar desse crescimento, a quantidade desses profissionais na saúde pública é quatro vezes menor que no setor privado, segundo o Conselho Federal de Medicina. A falta de incentivos acaba gerando uma alta rotatividade de profissionais nos serviços públicos, principalmente nas AMAs. Quem geralmente aceita baixos salários, condições precárias de trabalho e ausência de equipamentos é o recém-formado, que logo migra para outro emprego. “A prioridade deveria ser investir nos médicos da Saúde da Família, com uma formação contínua e permanente”, diz Wagner.
Além da questão da qualificação, a maior parte dos profissionais costuma se concentrar nos bairros nobres, como Pinheiros, na zona Oeste, onde está a Faculdade de Medicina da USP, e Vila Mariana, na zona Sul, onde se encontra a Escola Paulista de Medicina da Unifesp. A concentração de leitos hospitalares paulistanos também se dá nestas mesmas regiões. De acordo com dados da prefeitura, o distrito da Consolação tem 46,06 leitos hospitalares por 1000 habitantes (o maior índice), enquanto que em 26 distritos, entre eles os periféricos Perus, Parelheiros, Pedreira, Campo Limpo, Raposo Tavares, não há um único leito. Ou seja, a capital paulista cumpre a meta estabelecida pelo Ministério da Saúde de no mínimo 2,5 leitos/habitante, (o índice da capital é 2,6), mas de maneira desigual. Para complicar ainda mais a situação, a lei estadual 1.131 aprovada em dezembro de 2010, prevê que 25% dos leitos do SUS sejam destinados aos clientes dos planos de saúde, congestionando os hospitais da rede pública.
No setor privado, ganância é inimiga da saúde
Nos últimos anos, a esperança de melhor atendimento e maior poder aquisitivo fizeram com que parte da população migrasse do SUS para o setor privado. Porém, os problemas que pareciam afligir apenas os usuários do SUS, passaram também a atormentar os segurados. De 2006 para 2011, o número de beneficiários de planos de saúde no País saltou de 36 milhões para 46 milhões. Segundo a Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANHP), entre 2007 e 2010, o número de pacientes atendidos aumentou em 50% no Brasil. A demanda aumenta e não há infra-estrutura para absorvê-la. “Houve um congestionamento na venda de planos de saúde com a ascensão da classe C e D e os hospitais não conseguiram acompanhar, porque precisam de investimentos”, afirma Dante Montagna, presidente do sindicato dos hospitais privados de São Paulo. O que explicaria a falta de vagas nos hospitais, como aconteceu com a produtora que não conseguiu internação para a filha no inverno paulistano.
Há outra razão para as dificuldades que enfrentam os segurados para obter atendimento rápido e de boa qualidade. Associações médicas e hospitalares reclamam dos honorários e diárias repassadas às instituições e seus profissionais, o que só faz aumentar o índice de descredenciamento de hospitais e médicos dos planos de saúde. O cenário se complicou ainda mais na cidade de São Paulo com o fechamento de 15 hospitais privados nos últimos anos. Grandes hospitais paulistanos como Oswaldo Cruz, Albert Einstein, Samaritano, Sírio Libanês e São Luís estão realizando reformas de ampliação, que, ao menos por enquanto, não são suficientes para atender a crescente demanda. “Leva de dois a três anos para um hospital conseguir construir mais leitos”, diz Montagna. As consultas em clínicas particulares também ficaram difíceis de serem agendadas e a lógica de procurar rápido atendimento nos pronto-socorros prevalece também no setor privado. “Cerca de 80% das chamadas emergências poderiam ser resolvidas nos consultórios”, diz Montagna.
Na avidez de vender planos de saúde mais baratos para as classes C e D, algumas operadoras não respeitaram seus novos clientes e o Ministério da Saúde, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)- o órgão regulador no País, finalmente deu um breque na situação. No dia 10 de julho, a ANS suspendeu as vendas de 268 planos de saúde de 37 operadoras que não cumpriram os prazos de atendimento médico determinado pela norma 259, estabelecida no final do ano passado. Essa resolução federal determina, por exemplo, que os pacientes de consultas básicas como clínica médica, pediatria, ginecologia devem ser atendidos em no máximo sete dias úteis.
Ao deparar com os dados calamitosos da saúde e da degradação urbana, os paulistanos podem se sentir de mãos atadas diante de problemas aparentemente insolúveis. São fenômenos realmente de alta complexidade. Mas vale lembrar que são os cidadãos que escolhem seus mandatários e deles podem exigir uma política urbana que reconheça a interdependência entre a saúde, os transportes e o meio-ambiente. “O que precisamos dos próximos governantes são ações políticas transversais que pensem a saúde como um todo”, diz Saldiva.
Fonte: http://apublica.org/