Por Elaine Tavares.
As terras de Meiembipe, onde hoje cresce Florianópolis, eram originalmente ocupadas pelos Guarani. Quando por aqui chegaram os primeiros europeus, de origem espanhola, o que encontraram foi esse povo tranquilo e passeador. Como traziam enfeites de penas, os invasores os chamaram de Carijós e apesar de terem recebido os estranhos com delicadeza, a recíproca não foi verdadeira. Com o lugar se transformando em ponto de parada para os que iam mais ao sul, em direção à Buenos Aires, os indígenas trataram de mover-se e foram entrando para o interior. Ainda assim, quando em 1651 o bandeirante Francisco Dias Velho enviou seu filho para a região, este travou alguns combates com grupos que insistiam em permanecer nas redondezas, afinal, essa era sua terra. Em 1675 Velho também veio para o lugar e aí começa a história da ocupação definitiva da ilha de Santa Catarina, no povoado chamado de Nossa Senhora do Desterro. Esse povoado quase desapareceu depois que Dias Velho foi feito morto por piratas, mas ainda assim algumas famílias resistiram, sendo que em 1712 aqui viviam 142 famílias de brancos, muitas delas com seus escravos.
Os açorianos chegaram mais tarde, em 1748 e engrossaram a população. A ilha começou a ser ocupada em vários pontos, onde também havia fortes para proteção contra os espanhóis. O que se sabe é que tanto no primeiro período como na época da chegada dos imigrantes, já existiam negros no lugar, a maioria escravos de ganho (eram usados para ganhar dinheiro para seus senhores, trabalhando como sapateiros, artesãos e domésticos), já que as famílias não tinham grandes glebas de terra para cultivar.
Nesses primeiros tempos, conforme conta André Luiz Santos, no importante estudo que realizou sobre a pobreza em Florianópolis (http://labcs.ufsc.br/files/2011/12/Tese-03-PGCN0383-T.pdf), a cidade crescia na beira do mar, próximo à matriz, onde se aglomeravam as famílias brancas proprietárias, os comerciantes, assim como os pobres (marinheiros, degradados, foragidos, etc…). A vila era espaço de todos. Foi só com a chegada dos escravos a partir de 1700 que começou a aparecer a segregação. Como com o passar do tempo alguns desses escravos conseguiam a liberdade, era comum que eles montassem cortiços – ainda próximo ao centro – onde faziam suas moradas, nas famosas casinhas de porta e janela.
Ainda segundo o trabalho de André Luiz Santos, em 1810, na ilha, de cada três habitantes, um era de origem africana. Aqueles que fugiam dos seus “donos” também formavam quilombos e faziam suas casas nos morros que circundavam a vila. Escondidos pelo mato eles formavam família e ainda desciam para trabalhar no porto ou fazer biscates. Com o fim da escravidão, os negros libertos, sem condição de ficar morando nas casas do centro foram ocupando a periferia e o primeiro grande bairro dos negros foi a Toca, atrás do Hospital de Caridade.
Com o crescimento do comércio e os brancos proprietários melhorando de vida, não só os negros, mas todos os pobres foram definitivamente expulsos da região central, os cortiços que ali existiam foram demolidos e os sobrados da elite econômica começaram a ser erguidos. O governo instituiu pesados impostos aos que moravam no centro e aos pobres não houve alternativa a não ser ocupar a periferia. Em 1920, outra lei obrigou todos os habitantes a ter instalações sanitárias nas casas. Sem condições de fazer as obras, os pobres e os negros recém-libertos subiram os morros que contornavam a cidade.
Apesar de segregado nas encostas, o povo negro se fortaleceu como comunidade unificada. Já era assim antes quando criaram, no início da escravidão, a Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos, em 1728. Esse sempre foi o jeito que os negros – escravos e depois libertos – encontraram para se proteger: a união. Mais tarde eles foram os primeiros a organizar times de futebol e as famosas sociedades bailantes, onde se encontravam e conspiravam. Eram concorridos os bailes no Clube 25 de dezembro, por exemplo, no alto da Agronômica, o qual podiam frequentar os brancos, e como ele, outros clubes se formavam e congregavam as comunidades. A vida social e política dos negros sempre foram intensas, e tanto que nos anos 30 a primeira mulher a se eleger para a Assembleia Legislativa foi uma negra de Florianópolis: a professora Antonieta de Barros.
Ao longo de todo esse tempo, desde a ocupação a partir do litoral, os negros também foram adentrando pelo estado afora, levados como escravos rurais nas fazendas de gado e de cana-de-açúcar. Depois, libertos, seguiram construindo suas vidas como comunidade, aportando todos os aspectos de sua rica cultura, originária dos diversos países do continente africano, de onde foram sequestrados. Há núcleos negros importantes em cidades como Joinville, Chapecó, Jaguaruna, Lages, Itajaí, São Bento, Campo Alegre, Blumenau, São Francisco do Sul, Três Barras, Criciúma, enfim, em todos os cantos do estado.
Hoje, os negros somam mais de 800 mil almas em Santa Catarina, perfazendo 13% da população e, segundo Osvaldo Vargas, da Coordenadoria da Igualdade Racial do governo estadual, geram perto de 150 milhões de reais por ano em ICMS. “Mas, na realidade, o que a gente vê é que esse dinheiro não chega aos negros. Não temos acesso ao conhecimento sobre onde são investidos esses recursos e porque não existem políticas voltadas à população negra”.
E é por conta da importância que esse segmento da sociedade tem que existe agora essa coordenadoria. Ela surge na esteira de uma lei federal, criada no governo Lula, que obriga os estados a formularem uma política de igualdade racial. No caso de Santa Catarina, o trabalho ainda está muito incipiente. Conforme Osvaldo, que ocupa o cargo de coordenador, ainda é possível notar uma grande resistência entre os membros do governo. “Creio que são dificuldades culturais ou falta de conhecimento. Mas, a gente ainda nota certo desdém por parte de algumas pessoas. Só que isso não impede que a gente avance. Estamos na fase de montagem de comitês dentro das secretarias para depois exigir do governador um projeto de lei que crie o Plano Estadual da Igualdade Racial, que defina claramente as políticas públicas voltadas para os negros. Tudo vai devagar”.
Para Osvaldo Vargas, essa lentidão também é fruto da estrutura bastante incipiente da coordenadoria. Pouca gente e muita demanda. Tanto que, até agora, o trabalho tem sido feito basicamente por ele e só no âmbito do tema “negro”. Existem questões relacionadas aos ciganos e aos indígenas que nem chegaram a aflorar. O caminho é longo. “Nós, negros, vivemos um momento muito bom na conjuntura, temos um marco histórico com um novo deputado negro, Sandro Silva (PPS), assumindo uma cadeira na Assembleia. O primeiro, depois da professora Antonieta de Barros, em 1934. E ele está disposto a travar essa luta pelo Plano de Igualdade Racial, daí que vamos começar com isso e ir avançando”.
Sandro Silva é natural de Joinville e vem de uma sólida militância na cidade onde também já foi vereador e presidente da Câmara. Vindo de uma família humilde, ele encontrou na educação a força para vencer os obstáculos da vida. Nunca foi militante da causa negra, construiu sua carreira política desde a universidade onde atuava como professor de física. Mas, desde que entrou na vida pública percebeu que esta é uma necessidade reprimida e vem atuando em consequência. Hoje, ocupa a cadeira do deputado Altair Guidi que está de licença. Possivelmente o deputado exerça o cargo por apenas 60 dias (assumiu em 12 de junho), mas nesse curto período que estiver representando sua comunidade quer trabalhar para ver respeitadas as demandas do povo negro. Esse pode ser o empurrão que estava faltando para que essa importante comunidade saia da invisibilidade. “Vamos garantir espaço para os movimentos, vamos conversar com o governador e fazer sair do papel esse Plano da Igualdade Racial, incluindo também os índios. Esse será um compromisso para nós”.
78 anos depois que a primeira mulher negra ocupou uma cadeira no legislativo catarinense, Sandro pretende mostrar que a comunidade negra não pode mais permanecer invisível.
Na foto superior: Deputado Sandro Silva.