Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“Deveríamos nos preocupar menos com a orientação sexual de Samuel, e mais com o instinto criminoso do seu ou dos seus assassinos”. Alejandro Sanz, cantor espanhol, na declaração mais polêmica da semana espanhola.
O bárbaro assassinato do jovem brasileiro Samuel Luiz (24 anos), na Galícia, caiu como uma bomba de tristeza em toda a comunidade brasileira na Espanha.
Primeiro, porque não estamos acostumados a que uma pessoa da nossa nacionalidade esteja nas principais manchetes dos jornais europeus e de todo o Mundo. Depois, porque nunca esqueceremos que uma morte é uma morte, e um assassinato, um assassinato. E que uma vida a menos é muito mais que uma vida a menos; e não somente um número – agora que no nosso Brasil falar do número de mortes só nos lembra de uma tragédia que poderia ter sido evitada. Pelo contrário, o Genocídio foi negociado também a preço de corrupção.
Mas o mais importante é que a morte de Samuel não consegue se desvencilhar de muitas outras complexidades, por mais que se queira tapar o sol com uma peneira.
Estudando antropologia, aprendi que – quanto mais complexo for o caso – o que não está dito explicitamente pode nos dar mais informação sobre o que aconteceu do que sobre aquilo que aparentemente o sentencia.
Há uma onda conservadora no Mundo que se esforça em separar qualquer tipo de emoção da política, da comunicação, e de uma análise meramente racional (cartesiana) da sociedade. Eu, tentando ser um bom sociólogo, levei muita paulada da academia por tentar reivindicar o importantíssimo papel da psicologia na análise dos fatos sociais.
No bombardeio de informação comunicativa sobre o assassinato de Samuel, uma frase chorada (sim, emocionada!) do pai dele, num apelativo e sensacionalista programa de televisão que eu nunca assisti (e nem pretendo assistir, jamais), chamou-me maior atenção que tudo até agora. Em outras palavras, é o momento que o pai revela que o filho nunca falou sobre a suposta homoafetividade em questão, apelando (Samuel) para uma oportunidade futura – que jamais acontecerá.
Não é mais importante o peso mediático dos movimentos sociais de direitos humanos que exigem o esclarecimento sobre a conotação homofóbica do assassinato, nem – por outro lado – o apressado depoimento do governante de direita (da Galícia, do PP) que desvia categoricamente o SEU comportamento homófobo de não querer nem falar desta possibilidade, quando ela pode existir, de fato.
O mais importante foi o depoimento, muito próximo, do grupo Mães Pela Diversidade, lá do meu Pernambuco, acostumadíssimas (desgraçadamente!) a lidar todos os dias com isso – num Brasil bolsonarista onde a homofobia deitou-se no Palácio do Planalto. E se estende pelas ruas.
O peso da dor da conversa que nunca será realizada entre o pai e o filho será sempre deles, privada. Porém quem negará, publicamente, que é a MESMA dor (sempre respeitando os diversos contextos) de milhões de pessoas no Mundo inteiro, asfixiadas pelo mesmo debate público que insistia em afirmar que a violência no âmbito doméstico era coisa somente privada, de marido e mulher?
Quem condenará milhões de jovens no Mundo inteiro que não deixam de permitir-se sentir a possibilidade que qualquer cruel assassinato seja uma oportunidade de gritarem que não querem terminar suas vidas como a de Samuel? Qual o preço de querer viver?
Quem vai negar a responsabilidade pública, e portanto política, de garantir o “mero direito à vida” como uma afronta à crescente onda de fascismos cada vez assumidos? Quando o Brasil, meu e de Samuel, é o mesmo país recordista de assassinatos de pessoas trans, quem vai deixar de relacionar o incômodo moralista de mãos dadas homoafetivamente caminhado pelas ruas de qualquer cidade, aquela piadinha preconceituosa do colega de trabalho, o discurso do pastor fundamentalista endemoniado, a declaração pública de Bolsonazi e as treze pessoas na Espanha que chutaram o corpo de Samuel (já em coma) afundado numa dolorosa poça de sangue?
Por mais que eu queira, muitas vezes a minha mente não opera separadamente. E na maioria das vezes eu não lamento que isso aconteça.
Naquele final de semana, a Espanha comemorava com passeatas recordistas de público, a aprovação de uma Lei Trans que só existe em uma dezena de países do Mundo (e considerada insuficiente pelos movimentos sociais que trabalharam durante anos por um projeto de lei absolutamente recortado pelo governo espanhol que se diz socialista, mas não é).
Naquela mesma semana, o Governador brasileiro do Rio Grande do Sul teria sido alçado a presidenciável pelo oligopólio da Rede Globo, em substituição a Bolsonazi. Assumiu sua homoafetividade em horário nobre de televisão, o mesmo jovem, branco, rico e bonito governador que se elegeu apoiando e sendo apoiado pelo maior homófobo do país (Bolsonazi, ele mesmo).
Nesta mesma semana, somente no mencionado Estado de Pernambuco, Roberta foi queimada viva e teve os dois braços amputados, Pérola foi morta com um tiro por trás, na nuca, Kalyndra foi encontrada morta dentro de casa, e Fabiana foi assassinada com inúmeras facadas.
Bolsonazi diminuiu drasticamente o financiamento de programas de proteção da vida de pessoas trans, no país que é o recordista mundial de mortes violentas sobre essas pessoas. A cada três dias, em média, uma trans é assassinada. 8 em cada 10 são assassinadas com “requintes de crueldade”, segundo dados subnotificados das próprias polícias. Esses indicadores aumentam numa velocidade de mais de 20%, ano após ano, desde que Bolsonaro diz-se ser Presidente do Brasil.
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Flávio Carvalho é sociólogo, escritor e participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.
@1flaviocarvalho @quixotemacunaima.
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