Vinha das profundezas de lugar nenhum. Era um ninguém. Balançava a cabeça, resmungando coisas meio sem nexo. Circulava para cá e para lá no movimentado Bulevar da Sabana Grande, centro popular de Caracas. Estava descalço e sujo. Vivia na rua desde que a mulher, sua amada, fora embora. Ele não conseguia suportar a dor. Estar na pequena casa, construída com sacrifício, nas encostas do Ávila, era vivenciar, sem qualquer proteção, aquela ausência malsã.
Conhecera Guadalupe num comício de Chávez, na campanha de 1998. Ela amava o vermelho comandante. Com ele, dizia, vamos ter vida. E ele seguiu aquela certeza, pelas mãos da morena de riso torto e cristalino. Vencida a primeira batalha, Guade meteu-se em tudo o que podia para ajudar a “revolução bolivariana”. Era dessas mulheres viradoras, que queria educação, transporte, moradia, gás, participação. E, ele, acompanhava aquela azáfama febril de construção popular.
Quando veio o golpe de 2002, que tirou Chávez do palácio e do poder, ela se fez multidão. Não estava para namorar. Só a luta renhida para trazer de volta o comandante. Foi uma das primeiras a chegar em Miraflores, punho em riste, defendendo a Constituição. Naqueles dias Salvador chegou a sentir ciúmes do presidente, capaz de despertar tanto amor. Mas, Guade ria muito, dizendo que de seu comandante só queria as melhorias para o povo. Amor, mesmo, era ele, negro fininho, de mãos macias e boca quente. Quando Chávez voltou, carregado pelas gentes, ela tornou à casa, feliz, e eles fizeram amor por dias, numa sofreguidão de felicidades e novas promessas de vida boa.
A Venezuela de Guadalupe era a das comunidades da periferia, a dos morros, das favelas. Era a que se mexia na construção dos postos de saúde, dos centros de atendimento às crianças, aos idosos, nas campanhas de alfabetização. Ela que nunca tivera estudo voltou a frequentar a escola. “Vou ser advogada, quero defender minha gente”, adiantava, segura, enquanto se debruçava por noites e noites sobre os livros.
Um dia, sem quê nem porquê ela saiu cedo. Ia fazer alguma coisa no Chacaíto, uma promessa para Chávez ficar curado da doença que lhe comia. Ele não recorda muito bem. Só lembra que ela fez café, pois o cheiro inundou a pequena cozinha, e lhe deu um beijo molhado. Ele a agarrou pelas ancas e demorou no abraço. Ela riu e serpenteou, escapando. “Só volto de noite”. Da porta da rua ainda gritou: Viva el comandante! E ele lhe atirou um travesseiro. Até hoje ele lembra aquele riso de cristal.
A tarde ia alta quando tocou o celular. Foi tudo muito confuso. Guadalupe estava morta. Atropelada por uma moto. Os dias que seguiram foram de completo estupor. Reconhecer o corpo, arrumar o corpo, enterrar o corpo. A vida perdia todas as cores. Toda a alegria vivida desde aquele comício vermelho estava embaixo da terra. Não haveria mais as tardes de “misiones”, construindo a nova Venezuela. Não haveria mais o corpo quentinho e aquela absurda esperança que saia pelos poros. Salvador foi minguando.
Não mais que um mês depois da morte de Guade, foi-se o comandante. Aquele que trouxera a onda vermelha e popular, que acolhera os pobres, os velhos, as crianças. O homem que enchia o coração de Guade de tanto amor. Tudo parecia um pesadelo sem fim. Nem Guade, nem Chávez. Que fazer, onde ir, quem amar?
Salvador não suportou. E, enquanto todo o país chorava aterrado – ante a morte do comandante – ele saiu do barraco e foi para as ruas. Misturou-se às gentes, na perplexidade e na dor. Nada mais seria como antes. Desistiu da vida. Agora anda ali, feito um risco, magro e sujo. Come se alguém lhe oferece. Senão, vagueia, sem rumo. Vez ou outra para em frente aos grandes cartazes com as fotos de Chávez e chora. Ninguém sabe se é por ele ou por Guade. Talvez seja por tudo.
Na linda Caracas, a revolução bolivariana vai sobrevivendo aos tropeções. Como Salvador.