Por Nicole Ayres
“Ele amarra fortemente a mão de uma moça, deixando-a assim, sem alimentá-la; ao lado dela está uma faca enorme, e diante dela uma excelente refeição: se ela quiser alimentar-se, precisa cortar a própria mão; caso contrário, ela morre assim. Antes, ele fode o seu cu. Ele a observa por uma janela.” (SADE, 2013, p. 324)
Assustado?
Essa poderia ser uma cena da saga Jogos Mortais, de James Wan: há tortura, terror psicológico e voyeurismo. No entanto, trata-se de uma das paixões criminosas dos libertinos de Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785.
Nessa obra, quatro libertinos decidem aprisionar oito meninos e oito meninas num castelo isolado na Suíça para a realização das mais diversas práticas lúbricas. Para isso, eles contam com o auxílio de oito “fodedores”, homens vigorosos sempre prontos para o exercício da libidinagem, quatro criadas, sujas e criminosas, e quatro narradoras, igualmente libertinas, que a cada dia narram modalidades de paixões, das simples às assassinas, com o objetivo de inspirar os amigos. Certas paixões, em especial as criminosas e assassinas, são dignas de uma sequência de filmes como Jogos Mortais.
Os libertinos sadianos são personagens de moral flexível, que pregam uma filosofia do mal para a qual importa apenas o seu prazer, nem que este seja derivado da dor alheia. Daí o conceito de sadismo, cunhado pelo psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing no século XIX, que seria uma união da luxúria à crueldade.
Sade e as suas perversões
Em Os 120 dias de Sodoma, obra exemplar do sadismo, são descritas práticas sexuais que vão da masturbação ao assassinato, passando pelo incesto, a pedofilia, a zoofilia, a tortura, etc. Tudo isso excita os libertinos, que tentam justificar suas ações filosoficamente, ao postular que são inspirados pelas “leis da natureza”, e acusar a sociedade de hipócrita e preconceituosa.
No século XVIII, estavam em voga as libertinagens de modos e de espírito, os ideais iluministas e os romances pornográficos. A libertinagem de espírito consistia em reuniões filosóficas em salões onde se defendia o livre pensamento. A libertinagem de modos se dava por meio de orgias organizadas nas chamadas “sociedades do prazer”.
Sade emprega ambas em sua obra: seus libertinos passam da teoria à prática, sucessivamente. Os ideais iluministas de liberdade individual são levados ao extremo e distorcidos por Sade. Seus personagens são capazes de qualquer coisa para obter prazer e para os quais a felicidade só seria conquistada através da comparação com a infelicidade alheia. Os romances pornográficos eram amplamente consumidos na clandestinidade, assim como a obra de Sade. Além disso, utilizavam um vocabulário mais direto, com o uso de palavrões e descrições detalhadas de cenas de sexo, características compartilhadas por Sade.
Jogos Mortais
Dando um grande salto temporal, no século XXI temos a sequência de filmes Jogos Mortais, de James Wan. Nela, o psicopata Jigsaw conduz experiências mortais com suas vítimas, testando sua capacidade de sobrevivência. Ele escolhe pessoas que, a seu ver, não valorizam a vida, como viciados, criminosos etc., e lhes dirige mensagens diretas, colocando-os em situações críticas em que devem se sacrificar para permanecer vivas.
No primeiro filme, dois personagens estão presos por uma corrente e possuem uma serra a seu lado, devendo cortar o pé para poder sair, de maneira similar à cena descrita no trecho inicial, de Sade. A saga cinematográfica é marcada por imagens sangrentas e questões morais, participando do gênero classificado como “torture porn”, a pornografia da tortura.
O que é torture porn?
O termo “torture porn” foi cunhado por David Edelstein em 2006 e descreve o subgênero dos filmes de horror como Jogos Mortais e O Albergue. Também é chamado de “bood porn”, “carnography” e “gorno”. Trata-se de filmes de horror que incluem atos de tortura e enfatizam confinamento, armadilhas e mutilação.
Dessa forma, os motivos para a tortura vão de ensinar às vítimas uma lição moral (Jogos Mortais), causar sofrimento para satisfação pessoal (O Albergue), usar as vítimas como comida (O Massacre da Serra Elétrica) ou como escravos sexuais para propagar uma comunidade fechada (Viagem Maldita), executar vingança pessoal (Steel Trap), obter vantagem (Turistas) a torturar para propósitos políticos (Torture Room) ou por nenhuma razão clara (Os Estranhos). A crítica desvaloriza esse tipo de filme, classificando seus produtores e público como sádicos, por causa da tortura extrema, física e psicológica; porém, a tortura não é a única característica desse subgênero.
“Torture porn” é um termo usado para uma gama muito grande de filmes, o que pode gerar confusão. Eles são, teoricamente, a combinação de violência com nudez ou violência sexual com atos como estupro ou castração. Porém, supostamente apresentam violência não-sexual, como detalhes sangrentos, cuja estética se aproxima da pornografia. É um gênero popular como a pornografia e foca no corpo, por isso é considerado insignificante (“low-brow”).
No entanto, a própria natureza desses gêneros é mover fronteiras de aceitabilidade. Suas narrativas frequentemente refletem e discutem o papel da violência na cultura, mesmo se eles simultaneamente contribuem para essa cultura. O ciclo “Torture porn” inclui alguns dos mais ricos e desafiadores filmes de horror, que são notáveis por sua exploração de moralidade, interdependência social e testemunho de violência. Esses filmes deveriam ser explorados pela gama de posições teóricas que geram, não apenas focando na tortura.
Então, o que aproxima ambos?
Em Jogos Mortais, assim como em Os 120 dias de Sodoma, os personagens têm seus limites testados contra sua vontade, o que conduz a uma grande questão moral: até onde seríamos capazes de chegar para sobreviver? Os meninos e meninas são obrigados a seguir certas normas impostas pelos libertinos, da mesma forma que as vítimas escolhidas por Jigsaw devem seguir as regras do jogo. Aliás, o próprio conceito de vítima é relativo.
Os personagens inicialmente mostrados como inocentes podem ser corrompidos ao longo da trama: alguns meninos tentam cair nas graças dos libertinos e abusam das mulheres; algumas vítimas de Jigsaw reaparecem como seus discípulos em filmes posteriores.
O objetivo principal de Jigsaw e dos libertinos seria transformar as vítimas em seguidores de suas práticas. Jigsaw não deve ser classificado como sádico: teoricamente, sua meta é que todos consigam sobreviver a suas armadilhas e aprendam a lição, sendo-lhes grato; é o que acontece com Amanda, que se torna sua ajudante.
Porém, Amanda desrespeita as regras de Jigsaw: ao criar as armadilhas, ela não deixa saída para as vítimas, que perecem invariavelmente, o que a caracteriza como sádica.
E o que resta disso tudo?
Assim, a libertinagem sadiana é tão polêmica quanto o gênero “torture porn”. Ambos tratam de temas tabu, são extremos e possuem um público específico. Os leitores de Sade e os espectadores de Jogos Mortais são sexualmente estimulados com a tortura?
Se não se trata apenas disso, o que realmente lhes interessa nessas obras?
O próprio Sade parece nos fornecer uma resposta ao alegar, em Nota sobre romances, que visa tratar da natureza humana, em suas mais variadas facetas. Expor o vício seria tão ou mais importante do que retratar a virtude, pois causa grande comoção no público e o faz refletir. Por meio dessas obras indigestas, podemos, portanto, refletir sobre a natureza humana, nossos valores morais, nossa capacidade de causar o mal e nossos instintos de sobrevivência.
Referências
JONES, Steve. The Lexicon of Offense: The meanings of Torture, Porn, and “Torture Porn”. In: ATWOOD, F. et al. Controversial Images. London: Palgrave, 2013, pp. 186-200.
KRAFFT-EBING, Richard von. Psychopathia Sexualis, contrary sexual instinct: a medico-legal study. London: F. J. Rebman, 1894.
SADE, Marquês de. Nota sobre romances ou a arte de escrever ao gosto do público. In:___. Os crimes de amor. Porto Alegre: L&PM, 2002.
___. Os 120 dias de Sodoma ou a escola da libertinagem. Tradução e notas de Alain François. 3 e. São Paulo: Iluminuras, 2013.
TROUSSON, Raymond. Romance e libertinagem no século XVIII na França. In: NOVAES, Adauto (org.). Libertinos libertários. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 165-182.