Por Moara Crivelente.
Como se tem afirmado, é patente a ilegitimidade da anexação de territórios por meio da força nestes tempos modernos, mas Trump assim escancarou a visão dos Estados Unidos para a Palestina o Saara Ocidental: aliança incondicional a Israel ou dano colateral, moeda de troca num acordo mais amplo com o próprio. Entregando territórios aos ocupantes como se fossem seus imóveis, Trump já não surpreende, mas continua indignando. Mesmo considerando-o quiçá desprezível de tão espúrio, líderes de diversos países e a Organização das Nações Unidas (ONU) se viram obrigados a contrapor o seu pavoneio, afirmando que duas das mais retumbantes ações de Trump não alteram o status daquelas questões penduradas na agenda da ONU há cerca de sete e seis décadas —a da Palestina ao menos desde 1947 e a do Saara Ocidental, de 1963.
Entretanto, após tantos anos de um chamado “status quo” que só serviu para enraizar a colonização à base de sistemáticas violações dos direitos humanos para tentar controlar populações insubmissas, parece que só mesmo as medidas de Trump é que causaram ondas nas tranquilas águas da negligência. As supostas “calma e estabilidade” a que líderes internacionais apelam resplandeciam em suas retóricas, mas custam a opressão de palestinos e saarauís e o silenciamento ou a deslegitimação da sua resistência, enquanto se postergam respostas às justas demandas por libertação nacional. Estados Unidos e União Europeia, paladinos de uma legalidade instrumental —que só pode cumprir os seus projetos ou ser convenientemente relativizada, não se incomodaram em relevar as violações cometidas por seus aliados, contentando-se com apelos por contenção e soluções negociadas que acobertam posições menos nobres.
A delonga da ocupação e colonização da Palestina e do Saara Ocidental é um retumbante tormento no 60º aniversário da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, que abriu um novo capítulo na consolidação do direito à autodeterminação graças às lutas anticoloniais por emancipação nacional. Além disso, ainda que alguns façam malabarismo jurídico para afirmar que a “ocupação beligerante” tem base no direito internacional humanitário e, por isso, não é propriamente ilegal —desde que “temporária”, mas sem prazo estabelecido, e por “necessidade” militar, tampouco definida— é evidente que a ocupação da Palestina por Israel e a do Saara Ocidental pelo Marrocos têm intenção colonial, o que as torna, para estes efeitos, ilegais, além de sempre imorais. Mas Israel e Marrocos tiveram relativa liberdade ou até incentivo, direto ou indireto —por exemplo, através da comercialização de produtos e equipamentos militares com Israel, inclusive os oriundos de colônias na Palestina, e de recursos explorados pelo Marrocos no Saara Ocidental, o que em si é uma violação do mesmo direito internacional humanitário que regula a conduta em conflitos armados. Entretanto, estas não são questões formais ou jurídicas, pelo que a defesa dos direitos de palestinos e saarauís deve se dar mesmo no campo político.
Barganhas coloniais
Com o Marrocos, Trump selou o quarto acerto entre um país árabe e Israel pela “normalização de relações diplomáticas” através dos chamados “Acordos de Abraão” que, é preciso ressaltar, reforçam a tergiversada narrativa religiosa sobre o conflito entre Israel, com seu projeto colonial, expansionista e ofensivo, e os seus vizinhos. A Declaração sobre os acordos não passa de cínica afirmação dos direitos dos povos da região à paz, à tolerância e à segurança, despolitizando como religiosa e identitária uma questão eminentemente geopolítica, instrumental para o imperialismo estadunidense e cuja principal sina é a avassaladora opressão dos palestinos pelo sionismo israelense. Uma tática conhecida e rota.
Na última barganha, adicionando injúria ao insulto, em troca da adesão do Marrocos à charada anti-palestina Trump ofereceu o reconhecimento da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, que quase nenhum país reconhece —certamente não a ONU, que desde 1963 o considera um território não-autônomo pendente de descolonização. Ao menos duas características do método Trump se impõem: o potencial explosivo da sua ação, em total desprezo pela paz que alega promover, embora esteja claro que a sua é uma “paz” da rendição; e a abordagem de transação comercial que o magnata adota em negociações diplomáticas de peso numa região como o Oriente Médio, onde a política imperialista estadunidense é em geral perniciosa.
Mas mesmo sendo mais aguda a atuação do cessante, há certa continuidade na política externa dos EUA —de Democratas a Republicanos a Democratas— e o presidente eleito Joe Biden pode não querer contrariar aliados rescindindo as barganhas de Trump. Barack Obama, de quem Biden foi vice, declarava-se o melhor amigo que Israel já teve —sua gestão chegou a listar as resoluções que vetou no Conselho de Segurança da ONU e alardear o aumento do financiamento militar a Israel. Os EUA também têm elogiado a postura do Marrocos, que retirou de cima da mesa a possibilidade de independência dizendo oferecer uma “autonomia especial” ao Saara Ocidental.
Além de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, cumprindo promessa antiga dos Estados Unidos e contrariando os termos do já defunto “processo de paz”, Trump apresentou em forma de ultimato seu plano por um Estado da Palestina amputado e subjugado para garantir, de pronto, a anexação de porções do território por Israel, enquanto a ocupação e a colonização israelense cobram cada vez mais caro ao povo palestino. No Saara Ocidental, a dias do aniversário de um mês desde o fim do cessar-fogo entre a Frente Polisario e o Marrocos, que durou três décadas sem qualquer avanço diplomático, Trump não só proclama unilateralmente, como de praxe, a capitulação dos saarauís —o que não ocorrerá, garante a Polisario— como ainda o faz em forma de transação com o reino marroquino. Assim, o Marrocos do rei Mohamed VI se somou aos movimentos iniciados por Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Sudão, que também cederam, nos últimos meses, oficializando relações com Israel em troca de acordos com os EUA.
Regionalmente, o pivô causa estrago. Tendo sempre tomado parte na luta do povo palestino como uma comum, os membros da Liga Árabe defendiam desde 2002 uma solução para a septuagenária “questão da Palestina” —assim denominada no âmbito da ONU a consequência da colonização do território pelo movimento sionista— que condicionava a normalização de relações com Israel ao fim da ocupação israelense do restante da Palestina, pelo estabelecimento do segundo dos dois estados propostos pela resolução 181 de 1947 da ONU. Esta é / era a chamada Iniciativa Árabe de Paz. Com os quatro rompimentos do compromisso em pleno xeque da colonização, não surpreende que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a liderança do Estado da Palestina falem em traição.
Este é também um conceito que permeia a história do Saara Ocidental, onde a Frente Polisario, para evitar um “vazio jurídico”, proclamou a República Árabe Saarauí Democrática (RASD) logo do abandono do território pela potência colonial administradora, a Espanha, que o entregou aos vizinhos Marrocos e Mauritânia, em 1975. Neste movimento de ocupação consolidado pelo Marrocos, a que a Frente Polisario resistiu em 16 anos de combate, o país árabe que apoia decisivamente os saarauís, por princípio inarredável e compromisso histórico com o direito dos povos à autodeterminação, é a Argélia. Ao menos oficialmente, em geral, os demais abstêm-se ou apoiam o Marrocos.
Note-se que o Saara Ocidental, segundo opinião de 1975 do Tribunal Internacional de Justiça, não tinha laços de soberania com o Marrocos quando ocupado pela Espanha nem era “terra de ninguém”. Portanto, a Frente Polisario é um movimento de libertação nacional, reconhecido pela ONU como o representante legítimo do povo saarauí. Retomando a luta armada em 14 de novembro, em resposta à violação do cessar-fogo pelo Marrocos no dia anterior, os saarauís garantem que não lutam pelo retorno à situação anterior, em que esperam desde 1963, e por mais três décadas desde a adoção de um plano de acordo de 1991, pela implementação do referendo de autodeterminação. Lutam pela libertação nacional. “Por toda a pátria ou o martírio”, afirmam soldados e voluntários e voluntárias saarauís que, garantindo preferir a solução política em prol de uma paz justa que nunca chegou, retornam do exterior para dar o seu contributo.
O que a atual encruzilhada na Palestina e no Saara Ocidental demonstra é que além da libertação de dois povos que lutam há décadas pela libertação nacional, ocupantes e aliados colocam em jogo o significado próprio dos princípios em que se assenta a Organização das Nações Unidas, especialmente desde as vitórias dos movimentos de descolonização. O direito à autodeterminação dos povos está em xeque e certamente não seriam os Estados Unidos de Trump nem o de Biden que resgatariam ou farão valer seu potencial emancipatório. Nos 60 anos do compromisso anticolonial assumido pela ONU, este capítulo da história não pode seguir sem conclusão.
Moara Crivelente é cientista política e diretora do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).