RS bate recorde de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão

Ações de fiscalização promovidas em 2021 expuseram a questão histórica do trabalho infantil em plantações de tabaco

Fiscalização de lavouras em Venâncio Aires. Foto Joana Berwanger/Sul21

por Joana Berwanger

O Rio Grande do Sul registrou um número recorde de pessoas resgatadas em situação de trabalho análogo à escravidão em 2021. Ao todo, 76 trabalhadores foram afastados de condições degradantes de trabalho, incluindo menores de idade e migrantes. As maiores operações aconteceram em Flores da Cunha, onde 25 pessoas foram resgatadas, em Triunfo, com 17, e Venâncio Aires, com mais 13 pessoas. Ainda, a Capital gaúcha também foi alvo de fiscalizações, que encontraram dez trabalhadores em situação análoga à escravidão, assim como as cidades de São Leopoldo (6), Fontoura Xavier (3), Quaraí (1) e Rio Pardo (1). Os trabalhadores atuavam em atividades de cultivo de alho, construção civil, fabricação clandestina de cigarro, produção de fumo, carvoarias e criação de bovinos.

“Esses números são a ponta do iceberg”, explica o procurador do trabalho Lucas Santos Fernandes, que dirige a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) no Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS). O recorde anterior de resgates no RS, 59, ocorreu em 2012. Em 2020, foram apenas cinco, contra os 76 do ano passado. “A grande maioria dos casos não são denunciados, especialmente no RS, onde culturalmente se acredita que não há trabalho escravo. Para a grande maioria das pessoas, trabalho escravo é uma coisa que acontece no Norte, no Nordeste”, completa o procurador.

Mesmo assim, em 2021, o procurador aponta que o número de denúncias recebidas pelo MPT-RS cresceu em 70%. Para Fernandes, esses números estão atrelados à intensificação das fiscalizações, já que, quando é realizado um resgate, a temática recebe maior visibilidade através da mídia, fator que gera uma maior conscientização da população sobre trabalho análogo à escravidão.

Além disso, o procurador aponta a pandemia da covid-19 como outro fator crucial para o aumento do número de pessoas resgatadas. Fernandes diz que, por conta da crise econômica, “mais pessoas entram num grupo de vulnerabilidade, e esse grupo de vulnerabilidade acaba aceitando mais condições indignas de trabalho, ou acabam, por necessidade, acreditando em falsas propostas”.

Essa visão também é compartilhada por Lucilene Pacini, auditora-fiscal do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho do RS, uma das responsáveis por realizar as fiscalizações em propriedades que são denunciadas ao MPT-RS. “Considero que a crise econômica agravada pela pandemia do coronavírus foi um dos principais fatores que contribuíram para o quantitativo de resgatados de 2021”, explica. “Esse número [76] é uma pequena amostra. Assim também nos demais anos, o número de resgatados estava muito longe da realidade do Estado. Ainda se verifica o trabalho degradante em muitas atividades econômicas”, explica a auditora.

Duas famílias foram encontradas em moradias sem condições sanitárias. Nove pessoas foram resgatadas em Venâncio Aires. Foto: MPT-RS/Divulgação

As ações de fiscalização promovidas em 2021 também expuseram um problema adicional e histórico: o trabalho infantil na cultura do tabaco. Esse foi o caso dos irmãos Pedro* (15), Douglas* (12), Victor* (10) e Miguel* (9), que foram resgatados ao lado de seus pais em Venâncio Aires. Ainda que o ano letivo estivesse prestes a começar, os irmãos acordavam todos os dias de manhã não para estudar, mas para ajudar os pais no trabalho durante o processo final da safra do tabaco, em uma propriedade na zona rural do município, de acordo com relatório de fiscalização do MPT, de fevereiro de 2021.

As crianças se sentavam diariamente ao lado de outros três menores de idade, classificavam as folhas da planta e as amarravam em fardos. Ao longo de algumas semanas, essa foi a rotina da família, até que, após o MPT-RS receber uma denúncia, foi realizado em 23 de fevereiro o resgate não só dos quatro irmãos, mas também de seus pais e do outro casal com filho, onde foi constatado que os nove viviam em situação de trabalho análogo à escravidão.

A atuação de crianças em lavouras de fumo faz parte da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) aprovada pelo Governo Federal em 2008, regulamentando uma convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A atividade é proibida para menores de 18 anos, principalmente por conta da exposição a agrotóxicos de alto risco, além da possibilidade de intoxicação por nicotina na falta de uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), alta exposição ao sol e outras situações de perigo.

“Mesmo assim, é comum que a gente veja crianças e adolescentes trabalhando junto a suas famílias [em lavouras de fumo]. E são diversos os motivos. Mas, principalmente, por necessidade”, explica o procurador do trabalho do MPT-RS, Lucas Santos Fernandes.

Aos 29 anos, a técnica em agroecologia, estudante de Geografia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Sandi Xavier, faz parte de uma família que viu e ainda vê grande parte de sua renda vir da cultura do fumo. “Eu lembro nitidamente da época que a gente ia colher fumo pela manhã e já tinha um kitzinho com aqueles remédios para enjôo, simplesmente para amenizar o impacto do contato com o veneno”, recorda Sandi. Sua atuação na lavoura da família, em uma propriedade rural em Cerro Grande do Sul, na região Centro-Oeste do Estado, se deu quando a jovem ainda era adolescente, entre 15 e 17 anos.

Anos depois, o cenário segue sendo uma realidade para diversas famílias em diferentes regiões do RS, como foi o caso do resgate ocorrido na zona rural de Venâncio Aires, em fevereiro de 2021. Uma das maiores empresas fumageiras do país, a CTA – Continental Tobaccos Alliance, estabeleceu um contrato de integração com Luiz*, que ficou responsável por cultivar um total de 150 mil pés de fumo. De acordo com o relatório de fiscalização, por conta da falta de recursos financeiros para contratar outros trabalhadores, o proprietário se viu obrigado a incluir as crianças e os adolescentes na produção do tabaco.

“Os menores cumpriam papel indispensável no reforço de mão de obra na atividade, por fatores sociais e culturais (alegados pelo produtor rural), mas principalmente por fatores econômicos”, aponta o documento. “Não havia meios de contratar outros trabalhadores, então a mão de obra, sem custo, provinha dos menores, que, em ano de pandemia, estavam em casa em turno integral”.

As ações de fiscalização promovidas em 2021 também expuseram um problema adicional e histórico: o trabalho infantil na cultura do tabaco. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A CTA, que estabeleceu o contrato de integração com Luiz*, realizava visitas periódicas à propriedade, onde um orientador era responsável por acompanhar o processo de produção do fumo. De acordo com Lucilene Pacini, auditora-fiscal do trabalho que fez parte da equipe de fiscalização da ação, “os menores diziam que o orientador já os tinha visto trabalhando e não tinha feito nada. Quando era perguntado, ele dizia ‘nunca vi’. É a história da cegueira deliberada”.

Apesar de Luiz* ser o produtor, a fiscalização também responsabilizou a CTA pelo caso dos nove trabalhadores de Venâncio Aires, “em razão das graves violações aos direitos humanos da sua força de trabalho, da horizontalidade dos direitos fundamentais que devem pautar também as relações entre os particulares, e pela não atuação diligente para que essas graves violações mencionadas não ocorressem em sua cadeia produtiva”, segundo o relatório.

Através de uma nota enviada ao Sul21, a CTA informou que foi realizada a assinatura de um termo de compromisso com o MPT em agosto de 2021. Além disso, afirma que “comprovou aos fiscais do Ministério da Economia, através de documentos, sua conduta diligente e responsável nas práticas empresariais”. Ainda, segundo a empresa, as ações educativas estabelecidas com o MPT “estão focadas no incremento da conscientização contínua dos produtores integrados e colaboradores, bem como alinhadas às melhores práticas empresariais no setor agrícola sobre a proibição do trabalho infantil, a melhoria das práticas laborais de saúde e segurança na propriedade e a promoção do trabalho digno”. Considerando seu papel como protagonista na cadeia produtiva, a empresa ainda acredita ser fundamental “contribuir continuamente para o avanço e a melhoria das práticas agrícolas e laborais que envolvem a empresa e as famílias produtoras, bem como primar para que todas as ações respeitem e sejam embasadas na legislação vigente aplicável”.

Apesar do alto volume de produção do fumo e da ampla movimentação econômica, o cultivo de tabaco é pouco lucrativo para os produtores rurais. De acordo com a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), a safra de 2020/2021, produzida por mais de 137 mil famílias da Região Sul do país, foi de cerca de 630 mil toneladas de fumo, gerando uma movimentação de mais de R$ 6 bilhões.

De acordo com a Afubra, estima-se que cerca de 98% dos produtores de tabaco se concentram nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Esses números da Região Sul do Brasil contribuem para colocar o país como o segundo maior produtor de tabaco no mundo. Ainda, de acordo com o Grupo Amanhã, que promove o ranking regional das maiores 500 empresas do Brasil, a CTA – Continental Tobaccos Alliance estava em 191º lugar Região Sul em 2020.

Pequenos trabalhadores rurais têm no cultivo do fumo sua principal ou única fonte de renda. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Uma pesquisa publicada pela Fiocruz em 2016 constatou que o cultivo de fumo é produzido, em sua maioria, por pequenos trabalhadores rurais, que o tem como principal, ou a única fonte de renda. Ao final do processo, ainda cabe à fumageira definir o valor daquele produto. De acordo com a Afubra, o quilo do tabaco variou de R$ 0,75 a R$ 12,59 na última safra.

“No final da safra, o produtor vai lá, entrega o fumo, assim como ele prometeu e a indústria define o valor”, explica Lucilene Pacini, auditora-fiscal do trabalho. “Esse valor que o produtor recebe é um valor que paga o produto, mas mal paga a mão de obra dele, da família dele, e de outras pessoas que estejam trabalhando. Não dá um retorno financeiro elevado”. Essa seria uma das razões apontadas por Lucilene pelas quais tantas crianças acabam trabalhando em lavouras de fumo ajudando suas famílias, como foi o caso do resgate em Venâncio Aires.

O fraco rendimento foi um dos motivos que levou Sandi Xavier a decidir, aos 17 anos, que não seguiria o caminho do pai, que atuou no cultivo do fumo até morrer de câncer no pulmão, aos 50 anos. “Não queria mais seguir essa lógica de somente reproduzir, sobreviver. Ter que trabalhar praticamente o ano todo envolvido em uma produção que tu não determina o preço e o retorno é muito pouco”, explica.

Para o procurador do trabalho Lucas Santos Fernandes, cabe também às multinacionais, responsáveis por comercializar o fumo destes produtores, contribuírem para um cenário mais favorável para aqueles que cultivam. “Nesse sistema de exploração em cadeia, apenas a multinacional tem condições de zelar pela sustentabilidade do cultivo do tabaco sem a necessidade do uso de mão de obra infantil, ou de condições degradantes do trabalho”, destaca.

Desde 1991, a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) promove o projeto Verde é Vida, em parceria com municípios e escolas da Região Sul do país, a fim de desenvolver a educação socioambiental, a preservação do meio ambiente e a educação rural, mesclando temas sobre a diversificação e a sustentabilidade dentro do ramo da agricultura. Para o tesoureiro da Afubra, Marcilio Drescher, esse projeto está diretamente ligado com a prevenção ao trabalho infantil, uma vez que promove a inserção de alunos em turnos integrais em escolas.

“Tem se investido muito, não só em valores, mas principalmente em valores humanos, para entender esses assuntos da questão do trabalho infantil, porque até há poucas décadas, a gente via que o trabalho infantil fazia parte da sociedade”, explica o tesoureiro. Já o coordenador-geral do projeto Verde é Vida, Adalberto Huve, defende que “sem sombra de dúvidas, [o projeto] tem dado um bom resultado, e isso tudo são atividades que, se tu vai verificar e interagir, lá no final da caminhada, eles acabam direcionando justamente para essa atividade que envolve, porque não, também o combate ao trabalho infantil”.

Hoje, o Vida é Verde trabalha com 647 escolas, em 215 municípios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, o que gera um envolvimento de cerca de 370 mil pessoas, sendo elas alunos, professores, pais e moradores das comunidades. Ainda assim, a Afubra não tem acesso a todos os produtores de fumo, uma vez que cerca de 30% desses trabalhadores não estão associados à organização. Além disso, nem todos os produtores associados à Afubra estão integrados às empresas vinculadas à associação, atuando de maneira independente.

A atividade é proibida para menores de 18 anos, principalmente por conta da exposição a agrotóxicos de alto risco. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Por outro lado, Sandi Xavier defende que há a necessidade de se estabelecer uma maior autonomia entre os produtores de fumo, diversificando a cultura do tabaco e explorando novos cultivos, que também contribuam para o dia-a-dia desses trabalhadores. Para ela, é vital também que políticas públicas sejam direcionadas ao setor trabalhista.

“[A agroecologia] se coloca como a alternativa do ponto de vista que a ecologia é a produção de alimentos saudáveis, é a produção com respeito ao meio ambiente, com respeito social”, explica a técnica. “Tu vai diversificar, tirar a cultura do tabaco, colocar a cultura do milho… A diminuição da dependência também passa por alimentar a ideia de autonomia. De tu produzir o teu próprio alimento, primeiramente para o consumo, para uma menor dependência, e posteriormente para a comercialização”, defende.

A família de Sandi é uma das que já deu início a esse processo de conquista da autonomia e, agora, pode ver resultados em suas lavouras. “Hoje, a minha sobrinha que tem 17 anos não vai para a lavoura de fumo. E ela é filha da minha irmã que ainda planta fumo”, destaca.

Mesmo assim, ainda é fato que, mais de duas décadas depois da aprovação da Lista TIP, em 2008, o trabalho infantil segue sendo uma realidade, como demonstram os resgates de 2021. Um estudo produzido pelo Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (FEPETI-RS) estima que, em 2019, mais de 96 mil crianças entre 5 e 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Estado. Destas, mais de 5 mil atuavam no cultivo de fumo. Para além das lavouras de tabaco, as principais atividades econômicas exercidas eram em restaurantes e na criação de bovinos.

“Para repressão dessa prática criminosa, nós precisamos de mais conscientização da sociedade civil e de denúncia aos órgãos de fiscalização”, defende o procurador do trabalho Lucas Santos Fernandes. Para ele, é necessário que o Estado continue a intensificar as fiscalizações, não permita o sucateamento dos agentes que atuam nesse setor, além da sociedade civil continuar denunciando. “Por prevenção, como é o que se espera, é quem tem o poder econômico, quem está adquirindo aquele produto na ponta, antes de oferecer ao consumidor, que ele zele pela cadeia produtiva. ‘Esse meu produto veio de onde? Essa camiseta que agora vai receber a etiqueta da minha grife foi produzida por quem?’”, finaliza.

Denúncias podem ser feitas através do Sistema IPÊ ou pelo Disque 100, de maneira anônima.

*Algumas pessoas citadas na reportagem tiveram seus nomes alterados para preservar a identidade.

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