Por Pedro Marin, Revista Opera.
Banco aceita transação. Penhor agrícola concedido”. No dia 12 de novembro de 1889, há 135 anos, esta mensagem aparentemente banal partia do Rio de Janeiro para São Paulo. Seu emissário era Francisco Glicério, que dentro de um ano seria ministro da Agricultura, e seu destinatário o fazendeiro Campos Sales, que uma década depois se tornaria o 4º presidente do Brasil. Viajando incólume por telégrafo, o telegrama não tratava, no entanto, de transação bancária alguma: tratava de uma transação política, a mais importante do País desde que as naus e caravelas de Cabral atingiram a costa do Brasil. Decifrada por Sales na chegada, a mensagem dizia fundamentalmente que o Exército havia concordado com a realização de seu primeiro golpe na história brasileira. Três dias depois, o Brasil deixava para trás a monarquia e abraçava a República.
Quem revela o episódio é o historiador Rodrigo Goyena Soares em seu recém-lançado “Entre oligarquias – as origens da república brasileira (1870–1920)” (FGV, 2024). Cientista político pelo Institut d’Études Politiques de Paris (SciencesPo) e pós-doutor em História pela USP, onde leciona, Goyena descreve com minúcia, em quase 300 páginas, o longo processo que tornou a proclamação possível, além dos efeitos que a República teria na formação social brasileira. Apesar do causo do telegrama, o serviço de historiador-criptógrafo é melhor revelado em outro ponto: é que Rodrigo é adepto de um tipo de historiografia cada vez mais escassa, que decifra as movimentações econômicas de uma determinada época para extrair delas as intenções reais – proferidas e secretas – dos atores. No caso da proclamação, identifica na Guerra do Paraguai o ponto de partida para um conflito de interesses entre as elites fluminenses, que abandonavam o café e se financeirizavam, e as paulistas, que se tornavam mestras do eixo produtivo nacional. Num Império em crise, incapaz de promover a industrialização e aferrado à escravidão, as contradições chegariam aos quartéis, que às espadadas encerrariam a monarquia tanto quanto abriam caminho para seu próprio poder.
A Revista Opera conversou com o professor nesta semana em que, 135 anos após a proclamação, anistias para intentonas golpistas e reivindicações de redução das jornadas de trabalho são pautas nacionais, dando razão à sua afirmação de que as vestes do povo mudaram muito desde o 15 de novembro de 1889, mas nem tanto as intenções das classes dominantes. A entrevista segue.
O título do seu livro, “Entre oligarquias”, já denuncia que se trata de um livro sobre o nascimento de uma República em meio a um fracionamento ou uma crise entre as classes dominantes. Quem eram essas frações que estavam disputando no final do século 19 pelo nascimento da República, pela morte do Império, ou até uma manutenção do Império?
Há forças mais protagonistas do que outras nesse processo. Poderíamos incluir os republicanos do Rio de Janeiro, ou os de Minas Gerais, ou os do Rio Grande do Sul e da Bahia – não são poucas as figuras envolvidas, é claro, na proclamação da República. Mas algumas tiveram mais peso do que outras, porque algumas tinham uma materialidade, ora econômica, ora política, mais expressiva. E se nós formos buscar a força protagonista, aí sim São Paulo sai à frente, por um lado, e os militares, por outro.
Do ponto de vista dos militares, não podemos perder de vista que eles foram os veteranos da Guerra do Paraguai. Claro que não todos; a participação militar na proclamação se dividiu entre aqueles que então eram veteranos da Guerra do Paraguai, o alto-oficialato – Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Benjamin Constant –, e, por outro lado, a geração do pós-guerra, e esses são os jovens alferes-alunos da Escola Militar da Praia Vermelha. A “mocidade militar”, como era chamada então.
Há diferenças, sem dúvidas, entre esses dois grupos, e a principal é a incorporação do positivismo de uma forma muito mais aguerrida na mocidade militar do que nos veteranos da guerra – embora alguns veteranos também fossem positivistas, como o próprio Benjamin Constant. Mas os militares são, no fim do Império, uma força política singular, com imensa materialidade e ressonância, porque são justamente aqueles que se projetavam como as figuras que haviam defendido o Brasil do Paraguai, que haviam salvado, portanto, o Estado de uma invasão estrangeira; e a partir daí começaram a se arrolar uma responsabilidade pelos destinos nacionais. “Se nós temos o dever de defender a Pátria, também temos o direito de pontuar os projetos para o Brasil” – a partir daí eles começam a mobilizar um tipo de retórica muito pautada em um binarismo qualificado pelo “nós” contra “eles”; “nós”, militares e povo, contra “eles”, os assim chamados “casacas”, que eram os bacharéis em Direito e, no fundo, era somente um termo para a classe dirigente imperial. E nesses binarismos também figuraram as imagens de um “nós” como um povo indivisível na sua unidade, pautada pelos militares, em relação a um resto corrupto. Ou seja: não haveria classes sociais, porque a classe classifica, mas sim uma verdade única do povo brasileiro. Soa muito familiar, não é? Se nós pensarmos na história recente do País [risos]. Da mesma forma, para eles não há partidos políticos, porque os partidos partem, fracionam o País; mas sim a verdade única da Nação brasileira – e essa Nação só poderia ser interpretada pelos militares.
Nesse sentido, portanto, eles têm força política tendo em vista o retorno da Guerra do Paraguai, mas igualmente têm força política porque pelo menos um segmento dos militares – que seria na verdade uma espécie de Partido Fardado, o segmento mais politizado da caserna – tem um projeto de Estado muito claro, também. E é um projeto de Estado calcado na industrialização do País como uma via para tornar o Brasil menos vulnerável num cenário internacional da era dos imperialismos. E o Brasil efetivamente é alvo, porque tinha fronteiras abertas e disputadas com a França e a Inglaterra. Então a via industrial seria, no fundo, a via da projeção do Estado brasileiro a uma posição mais alvissareira, mais lisonjeira, na ordem internacional. É como se dissessem: “a única forma de reduzir a dependência que caracteriza a inserção internacional do Brasil é a via industrial”. E aí o modelo dos Estados Unidos falou altíssimo, evidentemente, porque os Estados Unidos do pós-Guerra de Secessão entabula um processo de franca industrialização – a ponto de passarem, inclusive, a produção manufatureira alemã e britânica às vésperas da Primeira Guerra Mundial; é fenomenal. Então esse seria o modelo a ser seguido.
Por outro lado – aí a força da grana que “ergue e constrói coisas belas” –, estava São Paulo. A força paulista é a materialidade sobretudo econômica. Porque estamos tratando de um tempo em que o eixo produtivo nacional está, de fato, se deslocando para São Paulo. O café não é mais do Vale do Paraíba fluminense, mas sim do Oeste Paulista. E assim, progressiva mas asseguradamente, o principal da produção cafeeira do País – o que é determinante para a organização econômica do Brasil naquele então – está indo para São Paulo. O que significa que, a partir do momento em que os cafezais paulistas se constituíram em partido, com o Partido Republicano Paulista (PRP), desenvolveram também um projeto de República, e um projeto aberta e totalmente conflitante com o projeto militar. O projeto paulista é agrário-exportador, um projeto muito semelhante àquele que já existia – descontada a escravidão, talvez, e em termos; porque houve a imigração mas, na prática, a mentalidade desses cafeicultores era senhorial. De qualquer forma, é um projeto de organização política eventualmente diferente, porque houve a introdução do federalismo, mas um projeto, do ponto de vista da organização da economia política brasileira, muito semelhante ao projeto do baronato do Vale do Paraíba fluminense em meados do século 19.
Então as principais forças pró-república são essas, mas são forças incoerentes do ponto de vista dos seus projetos. Não à toa, a partir do momento em que o problema comum, a monarquia, sai do mapa, essas forças entraram em rota de colisão. Não em uma disputa direta, mas ainda assim essas são as principais contradições do início da era republicana, e não à toa a década de 1890 foi um caos do ponto de vista da estabilidade: há crise econômica, crise política, guerra civil. O Brasil é um caos nesse momento.
E ainda há uma terceira força de contradição na proclamação que é muito relevante; uma força que não é pró-república, mas que acirra os ânimos das forças republicanas. Esses são os bancos do Rio de Janeiro. O setor financeiro-bancário do País nas vésperas da República é do Rio de Janeiro, da Corte. E o problema essencial para a cafeicultura paulista é que o setor financeiro do país, o carioca, não atende à voracidade por capitais para o café paulista. A lavoura paulista exige muito mais do setor financeiro brasileiro do que efetivamente esse setor dá. Portanto, há uma clara tensão entre o capital produtivo agrário paulista, por um lado, e o capital financeiro, bancário, carioca, nesse momento da véspera da Proclamação da República. É um ponto de transformação estrutural do País que, nesse momento, se acelera, com todas essas forças muito inclementes quanto à continuidade da monarquia.
De uma maneira ou de outra, o que está acontecendo no Brasil nesse momento é aquilo que o Giovanni Arrighi, no livro “O longo século XX”, enxerga no mundo do ponto de vista das transições hegemônicas. O que ele diz, basicamente, sobre o que se passa de uma hegemonia a outra – da Inglaterra para os EUA, ou dos EUA para a China, agora – é que o grande padrão, em todas essas transições, é basicamente o fato de que a potência “sainte”, por assim dizer, se financeiriza, enquanto a hegemonia entrante tende a congraçar o principal eixo produtivo global. Ou seja, a partir do momento em que se dá em escala global essa mesma contradição entre capital financeiro e capital produtivo, via de regra há uma transição na ordem hegemônica – exatamente o que está acontecendo agora entre Estados Unidos e China.
Se nós internalizarmos esse padrão interpretativo para o Brasil da passagem do século 19 para o 20, é exatamente o que está acontecendo: a potência “sainte” aqui é o Rio de Janeiro, e a potência entrante é São Paulo; o eixo produtivo está se deslocando para São Paulo enquanto a economia fluminense se financeirizou. E a passos agigantados: o tamanho do capital bancário, especialmente carioca, em comparação ao capital produtivo fluminense, é totalmente desproporcional: muito mais dinheiro nas finanças e nos bancos do que na produção fluminense.
Você mencionou a Guerra do Paraguai, tratando especialmente dos militares. Mas ela também tem um papel econômico, não? Qual é o papel econômico dela nesse fracionamento entre os fluminenses e os paulistas? E, por outro lado, aí sim tratando do Exército, que elemento da Guerra do Paraguai foi central? Porque alguns autores têm uma abordagem mais culturalista, digamos: vão apontar o espírito de corpo daqueles que retornam do Paraguai. Outros, mais realistas, vão falar do engrandecimento tanto político quanto militar, em termos de tropas, do Exército. Como você vê isso?
O primeiro ponto é importantíssimo, porque a Guerra do Paraguai acelera a financeirização do Rio de Janeiro, e por uma razão muito simples: o custo da guerra foi colossal. Estamos falando de um padrão de endividamento do Estado brasileiro completamente fora de todos os precedentes anteriores. É claro que antes da guerra o Brasil emitia dívida pública; sobretudo pela via interna e pontualmente pela via externa. Mas a Guerra do Paraguai muda completamente esse cenário: ela é financiada, em um momento do conflito, sobretudo por meio do aumento da dívida interna, mas no pós-guerra, já com o gabinete do Visconde do Rio Branco, já começa a entrar a dívida externa – no fundo para rolar a própria dívida pública como um todo, muito agigantada com a Guerra do Paraguai.
Por que isso é importantíssimo? Porque alguém, internamente, comprou os títulos da dívida pública. Alguém comprou esse volume muito expressivo de dívida. E foi sobretudo o Banco do Brasil quem comprou. E isso é uma oportunidade de negócios para a cafeicultura do Rio de Janeiro: ou seja, o investimento no Estado, na dívida pública, se revelou a eles um investimento mais seguro, mais rentável, do que continuar aplicando os lucros nos cafezais. A própria produtividade do café fluminense cai, porque há um esgotamento do solo. Então as melhores oportunidades de negócio estão no setor financeiro, e acontece, progressivamente, essa comutação do barão do café do Rio de Janeiro para o barão do banco. O que, justamente, intensificou essa contradição da qual nós tratávamos, entre o capital financeiro fluminense e o capital produtivo paulista.
As famílias quatrocentonas paulistas fizeram uma aposta completamente diferente. A aposta deles era para dentro do cafezal; a dos cafeicultores do Rio de Janeiro para fora, fugir do cafezal. Inclusive porque estamos falando do pós-Guerra do Paraguai, quando a agenda emancipacionista começa a ser tocada de fato: vem à tona a Lei do Ventre Livre. Ou seja, para a turma cafeeira do Vale do Paraíba fluminense, fica claro que em algum momento a escravidão vai acabar também, o que do ponto de vista deles é um desastre. E se isso acontecesse, o café já não seria mais um bom negócio. Não é o que acontece em São Paulo, onde as famílias mais abastadas, ligadas à produção cafeeira, insistem no café. Inclusive, com um segmento do Partido Republicano Paulista (PRP) desde cedo procurando convencer os demais cafeicultores a fazer uma transição para a mão de obra livre. Esses são figuras centrais do PRP, sobretudo de Campinas: Campos Salles, Prudente de Morais, futuros presidentes da República; eles procuram convencer o restante dos cafeicultores paulistas de que São Paulo não pode perder a hora da história. E isso significa fazer a transição já, trazer imigrantes já, porque a escravidão vai acabar e a aposta deles é no café.
E aí, é claro, um reivindica do outro aquilo que o outro não pode dar. Em bom português: São Paulo pede mais dinheiro, o Rio de Janeiro não dá; e quando oferece, é a taxas ou a condições não exatamente favoráveis à expansão da fronteira agrícola paulista. E um grande ressentimento de São Paulo em relação ao governo central é que, nessas últimas décadas do Império, a província de São Paulo paga o desenvolvimento paulista de seu próprio bolso: as ferrovias, a Hospedaria dos Imigrantes, as subvenções para trazer os imigrantes italianos, tudo isso com dinheiro paulista. Pouco dinheiro vem do setor bancário do Rio de Janeiro, é insuficiente. E, para piorar ainda mais, o Rio de Janeiro extrai de São Paulo muito mais do que aplica, do que reinveste em São Paulo. Então a solução para eles é a República, e a República federativa, evidentemente [risos].
Não à toa, as principais reivindicações de São Paulo na constituinte republicana, de 1890 até 1891, foram:
Em primeiro lugar, que os impostos de exportação – portanto o Porto de Santos – ficassem com os Estados, e não com a União. Então São Paulo controla aquilo que sai do Porto de Santos, uma garantia orçamentária para São Paulo: uma reivindicação inegociável.
Segunda reivindicação: que os Estados pudessem contrair empréstimos internacionais sem passar pelo crivo da União, sem autorização da União. O que é fantástico para São Paulo: podem pular os bancos da antiga Corte, do Distrito Federal, e chegar ao capital estrangeiro sem maiores dificuldades.
Então sim, a Guerra do Paraguai acirra essa contradição.
Do ponto de vista militar, é muito curioso, porque a historiografia nos últimos anos, realmente, como você assinala, se pautou muito mais por uma análise corporativa das Forças Armadas do que por uma análise da politização das Forças Armadas. Isso tem a ver, é claro, com todas as influências da antropologia e da sociologia, a partir da década de 1980, na própria historiografia; o que se procurou fazer muitas vezes foi uma antropologia da caserna, entender os quartéis como uma instituição total. E o que fez sentido, então, foi a corporação, o espírito de corpo, em primeiríssimo lugar: ou seja, se há um problema, é aquilo que remete ao que é fundante para as Forças Armadas, o espírito de corpo; se há problema é porque o espírito de corpo foi posto em xeque.
Mas o problema é muito maior do que isso. É claro que o espírito de corpo conta, e muito, para as Forças Armadas, mas especialmente nesses momentos críticos de virada política no País, os militares via de regra saíram dos quartéis. Se politizaram, e tinham projeto. Qual é o grande problema historiográfico aqui? É que muitas vezes esse projeto não é encontrado como se fosse uma apostila divulgada aos quatro ventos. E é óbvio que não acontece dessa forma. Um tipo de leitura historiográfica, talvez reducionista, que diz que se não há fonte primária para afirmar tal coisa, não podemos dizer tal coisa. Perdendo de vista que os atores históricos, a depender do momento e da circunstância, dificilmente revelam em uma fonte primária o que estão projetando. A forma de alcançar essas ambições tem de ser outra. O historiador não pode ser ultrapositivista: “se não existe o papel, eu não posso dizer”. É muito reducionista ler a história dessa forma. Porque, de outra forma, a gente poderia dizer que a proclamação da República ou o golpe de 1964 foram meros acasos, porque não deixaram rastro – é claro que não deixarem rastro, é um golpe! Se é um golpe, vai ser articulado dentro de uma sala, a quatro paredes, tudo trancado, na penumbra. Não vão divulgar o golpe meses ou anos antes.
Mas o que se encontra de vestígios da politização das Forças Armadas nessa época é exatamente isso: uma aversão muito grande em relação à organização da economia política do País, com um projeto industrial relativamente sólido – eles falam, “tem que taxar as importações para proteger a indústria nascente”; “tem que facilitar o crédito ao consumo, proteger a classe média urbana” – porque esta seria o coração pulsante do consumo brasileiro e do crescimento econômico –, “tem que fazer poupança interna no Brasil”, etc. Temas clássicos, até hoje, para nossa história econômica. E isso está lá.
Então muito claramente, no pós-Guerra do Paraguai, esses rastros de politização das Forças Armadas aparecem cada vez mais; marcando que as Forças Armadas têm partido, que saíram dos quartéis, foram pras ruas. E inclusive deixando documentos mais explícitos quanto à necessidade de “purificar as instituições” – esse é o discurso. Esse momento, da proclamação da República, é talvez o momento inaugural de uma retórica militar tantas vezes empregada no Brasil no século 20 – que em boa medida é um século militar, nós dificilmente assumimos isso, mas o século 20 é militar. E isso vem da proclamação da República, a retórica da purificação das instituições políticas; é a retórica dos veteranos do Paraguai: tem que intervir para purificar, e tão somente quando as instituições políticas estivessem purificadas poderiam eventualmente ser devolvidas à população brasileira numa lógica mais democrática. É exatamente o discurso do Grupo Sorbonne em 1964, o discurso do Castello Branco, do Geisel, do Golbery. A mesma coisa aconteceu na Revolução de 30, a mesma retórica, com a turma do Getúlio Vargas.
Você dedica um capítulo do livro às revoltas populares nos anos anteriores à proclamação da República; a revolta dos muckers no Sul, a questão religiosa, os movimentos dos quebra-quilos e das rasga-listas, a revolta do vintém e, claro, as revoltas escravas, os quilombos volantes e o movimento abolicionista em geral. As décadas de 1870 e 1880 foram particularmente abundantes em termos de ações populares na política nacional? E porque isso não se refletiu na proclamação? Ou se refletiu?
Esse é um ótimo ponto. Sim, as décadas de 1870 e 1880 são muito quentes do ponto de vista da agitação social; muito mais do que a década de 1860 ou 1850. A década de 1830 sem dúvidas é um caldeirão, após a abdicação de d. Pedro I, porque tudo está ali em disputa. A diferença da década de 1830 com a de 1870 ou de 1880 é que já não se trata mais, aqui, de propor uma alternativa ao Estado brasileiro – os farrapos queriam uma independência no sul do País, por exemplo. Já não se trata mais disso: se trata de lutar dentro do Estado brasileiro. Não é o Estado que está em questão como unidade política soberana; não há uma alternativa ao Estado, que já está consolidado. O que se propõe é uma nova organização socioeconômica – talvez não tão explicitamente quanto o historiador deseja ler em uma fonte primária, mas nas entrelinhas é isso. E não à toa essa quantidade de revoltas se dá nessas duas décadas, o que eu chamo de revolta da cidadania, na medida em que justamente as estruturas econômicas do País estão se transformando imensamente. O processo de financeirização da economia fluminense, a transição do eixo produtivo para São Paulo; são placas tectônicas que andam em choque do ponto de vista da organização econômica do País e, tornando tudo mais grave, com um movimento do governo que é de sustentação da ordem anterior.
Muito especialmente o Visconde do Rio Branco, que foi o chefe do gabinete mais longevo do Império, de 1871 até 1875 – ele é uma espécie de Juscelino Kubitschek do Império, pela quantidade de reformas que projeta. Realiza menos que o JK, mas a projeção era equivalente, 50 anos em cinco mesmo [risos].
Agora, o que ele consegue fazer do ponto de vista das suas reformas, que têm um custo altíssimo, é numa dinâmica de sustentação da ordem pretérita. Ele sustenta fiscal, monetária e também do ponto de vista do crédito sobretudo o Vale do Paraíba fluminense, quando sequer os cafeicultores do Vale acreditam mais nos seus cafezais. A carteira hipotecária do Banco do Brasil atende sobretudo ao Vale do Paraíba fluminense, há isenções tributárias para o café, facilidade de crédito para o Rio de Janeiro. Ou seja: no fundo, o Rio Branco entende que a única via para soerguer o País após a Guerra do Paraguai é investir no que havia sido até então o coração pulsante da economia brasileira, o Rio de Janeiro. Ele insiste nessa lógica, perdendo a hora da História [risos]. Justamente porque suas reformas contribuíram para acelerar ainda mais essa contradição fundamental entre capital produtivo e capital financeiro. Ou seja, ao investir o dinheiro público no Rio de Janeiro quando sequer o Rio de Janeiro acredita no seu potencial cafeeiro, ele está dando um tiro no pé. E esse investimento se dá por meio da dívida pública; e quem compra a dívida pública são os mesmos cafeicultores que recebem um “repasse”, por assim dizer, para um cafezal no qual não acreditam mais. Isso só acelera ainda mais essa dinâmica.
Por que estou dizendo isso? Porque do ponto de vista das reformas que mais tiveram êxito, aquelas nas quais mais se investiu com algum resultado, há uma desigualdade notória, e há uma desigualdade notória porque o principal do orçamento vai para o mesmo lugar de sempre: o lugar da alta elite socioeconômica do País. Enquanto, por outro lado, a população brasileira, notadamente, mas não só, a urbana, carece de tudo. Problema de moradia, de saneamento, de fome, inflacionário, e assim sucessivamente. O que se enxerga é uma elite imperial, uma classe dirigente imperial, que insiste na mesma tônica desigual de sempre. Essa revolta da cidadania, claro que podemos enxergá-la a partir dos diferentes movimentos com causas aparentes ou pontuais: quebra-quilos, revolta da cumbuca, vintém, etc. Todas elas têm causas pontuais, como são via de regra os movimentos sociais ou as revoltas. Mas o fundo estrutural desse movimento é a intensificação das desigualdades sociais brasileiras no pós-Guerra do Paraguai, e sobretudo um poder público que ignora, que dá completamente de ombros a essa cidadania politicamente organizada. Especialmente a revolta da cidadania da década de 1870 é fundamental para as lições de organização de um movimento social na década seguinte, que é o movimento abolicionista. O movimento abolicionista bebe muito do caldeirão da década de 1870.
Então, para resumir, não é à toa que essas décadas foram muito agitadas; porque as estruturas econômicas estão mudando, e muito, e quando essas estruturas mudam, via de regra surgem novos partidos para organizar, representar interesses e fazê-los valer no governo também.
Nos últimos anos temos tido um movimento forte de discussão sobre a relação da estruturação do capital financeiro no Brasil com a escravidão. Em 2023 o Banco do Brasil chegou a pedir perdão pela sua participação no escravismo, e esse ano o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania defendeu que o Banco do Brasil adotasse medidas de reparação. Quando nós falamos dessa relação entre financeirização e escravidão, normalmente pensamos na construção de capital a partir do tráfico ou de bancos financiando e intermediando o tráfico e a compra de escravizados. Mas o seu livro deixa muito claro que não era só isso, que o escravizado era uma espécie de lastro.
Sim, é muito mais do que isso. É claro que o tráfico teve um papel muito singular na montagem do setor bancário brasileiro, porque é muito dinheiro envolvido no tráfico, e quando o tráfico foi definitivamente proibido houve um excedente de capital que precisava ser alocado em algum lugar. Não à toa, a década de 1850 é quando os principais bancos do País surgiram; as coisas estão relacionadas.
Mas é muito mais do que isso: há um processo de financeirização do cativeiro, do escravo. Por diversas vias. A mais evidente é a do lastro, como você diz; a via do colateral, da garantia, de crédito. É totalmente corriqueiro, não apenas para a lavoura cafeeira: inclusive do ponto de vista totalmente privado e pessoal, se fôssemos nós dois brasileiros do século 19, e eu precisasse de dinheiro e você estivesse disposto a me emprestar, você me pediria uma garantia, e a melhor garantia naquela época é, de fato, o escravo. Ou seja, se eu não ressarcir o empréstimo, você executa a dívida, tomando a garantia de empréstimo como ressarcimento: você vai pegar o meu escravo, essa é basicamente a lógica.
Mas tudo se torna ainda mais complexo se nós percebemos que esse papel que qualifica a nossa dívida – que é não-institucional, fora do mundo bancário –, ele pode ser repassado, porque ele serve também como papel moeda. Como assim? Digamos que você me emprestasse para um prazo de um a três anos, porém na metade do caminho você precisasse reaver esse dinheiro, obviamente não será comigo – porque eu só vou te devolver quando acabar o contrato –, mas você pode pegar esse papel e descontá-lo com alguém, ou mesmo com uma instituição bancária, que vai cobrar uma taxa de juros, que na época é chamada de “taxa de desconto da letra”, a letra sendo exatamente esse papel. Ou seja, esse papel foi parar em outro lugar, sem que esse outro lugar tenha perfeita ciência de qual é a garantia desse papel – que é o escravo. Porque depois, se esse papel foi parar em uma casa bancária, e essa casa executa minha dívida, ela executa isso em cima da hipoteca – que, outra vez, pode ser o escravo.
Agora, como a emissão dessas letras era muito volumosa, essas casas bancárias via de regra acumulavam um número consequente de letras e descontavam elas em bloco em um banco maior – o Banco do Brasil, por exemplo. Então isso chegava na carteira comercial do Banco do Brasil, chega lá efetivamente. E mesmo que você me dissesse: “bom, mas uma letra poderia também ser emitida sem lastro em escravos” – sim, poderia ser emitida sem lastro em escravos diretamente. Mas indiretamente bate na escravidão, não tem jeito. E por uma razão muito simples: se você me fez um empréstimo por meio de uma letra sem que ela tenha lastro em escravos… você me fez esse empréstimo porque tem recursos – digamos que você fosse um pequeno produtor de manufaturas de sacaria de juta, por exemplo, no Rio de Janeiro. Essa é sua área, seu ofício; você produz saca de juta para ensacar café – é um bom negócio, tem muito café no Brasil, você apostou nisso. Você faz o seu crédito a partir daí – esse seu crédito, devido à sua inserção na economia, está ligado à escravidão; não tem jeito. Porque a saca é de juta, para o café, e o café evidentemente tem mão de obra cativa. Nós poderíamos derivar ainda mais essas interconexões e, independentemente, isso vai bater no escravo.
O próprio título da dívida pública bate no escravo. Não tem como lastro direto, evidentemente, o escravo, mas indireta ou estruturalmente tem, sim, a escravidão como lastro. Porque a lógica é a seguinte: se é um título da dívida pública, isso significa que alguém está emprestando dinheiro ao Estado. O Estado vai ter de ressarcir anualmente, com juros inclusive, esse título. Como ele faz isso? Com seu orçamento. Como se compõe esse orçamento, naquela época? Sobretudo por intermédio de barreiras alfandegárias, de exportação e importação. Isso significa, então, que isso vai chegar no escravo também: qual é a principal exportação do País? É café, e aí tem escravidão. Então o próprio título bate na escravidão. É totalmente basilar a escravidão. É muito mais do que aquilo que a historiografia, nas últimas décadas, vem insistindo tanto: a escravidão, a revolta, o protagonismo, a agência, o lado cultural e social. Tudo isso conta muito; o escravo é também uma forma de distinção social entre classes. Da mesma forma que hoje a elite paulistana compra um Porsche para se destacar, compravam também muitos escravos para se destacar do resto. É isso também. Mas, do ponto de vista da estruturação econômica do País, a escravidão é igualmente financeira: ela financia o País! Isso que é brutal. O escravo não é só mão de obra, propriedade e mercadoria: é um derivativo financeiro que financia o Estado Imperial. É colossal!
E se isso é um negócio – e um bom negócio –, é claro que as principais fortunas do País se fizeram a partir daí. Se voltarmos, por exemplo, quatro ou cinco gerações na família direta ou indireta dos donos do Banco Itaú, o que é que a gente vai achar? Traficantes e escravocratas do século 19. É claro que é daí que vem o dinheiro! Se pegarmos as fortunas ou muitas das fortunas industriais do século 20, de onde vem a base dessa grana? Escravidão, também. Ou podemos pensar hoje na Faria Lima: de onde vem o dinheiro dessa turma? Vai bater lá na escravidão, não tem jeito! A escravidão é ainda muito preemente de consequências, para dizer as coisas de forma muito elegante.
O Exército até hoje mobiliza, frequentemente, a ideia de que foi uma organização especialmente abolicionista. Mobiliza por exemplo o fato do Clube Militar ter se oposto à caça de escravizados fugidos, etc. Até que ponto efetivamente o Exército teve um impulso abolicionista, e até que ponto esse abolicionismo não foi – para citar um artigo seu – um “uso político” do Exército com outros fins?
Foi abolicionista, isso é inegável. Inclusive esse foi um ponto de convergência entre os veteranos e a mocidade militar. O abolicionismo foi rapidamente apadrinhado, e foi um fator de coesão nas Forças Armadas. Agora, esse abolicionismo das Forças Armadas não é pautado pela consolidação da cidadania no Brasil, não é a integração do negro na sociedade de classes, não é a proteção social do ex-escravo, não é a reforma agrária. De maneira nenhuma. E eu digo isso porque projetos nesse sentido existiram, foram formulados.
Pelo José do Patrocínio, por exemplo.
Isso, ele, o André Rebouças. O abolicionismo militar não é isso: ele é uma equação política. A lógica é a seguinte: se acabasse a escravidão, forçosamente os rostos na política imperial mudariam. E eles acertam nisso. Porque as últimas eleições legislativas do Império, quando já não havia escravidão, resultam em deputados mais jovens, e que não estavam ligados ao cativeiro. Renovou-se a política mesmo.
Ou seja, os militares fizeram uma associação clara entre a possibilidade de renovar o País a partir da abolição, porque sem a escravidão as forças políticas mudariam. Porque era assim: o Império era o Vale do café, e o Vale era o escravo. Então o reverso também faz sentido: acaba o escravo, acaba o Vale, muda o Império. Essa é a lógica. Portanto há um oportunismo político muito claro para os militares. Para eles, se acaba a escravidão, acaba o café do Vale, acaba o baronato; e a força política que o baronato do Vale tem na organização administrativa vai mudar. Faz sentido, não é? Se pensarmos hoje, por exemplo: se adotássemos uma legislação que inviabilizasse a manutenção dos atuais oligopólios bancários do Brasil – os quatro bancos que controlam o setor bancário do Brasil –, esses grupos oligopolizantes não teriam tanta força financeira, e possivelmente perderiam o impacto político que têm. Essa é a lógica, que a materialidade econômica constitui força política, e que para mudar a força política o ideal é mudar a materialidade econômica; essa é a lógica deles. E eles acertam, isso acontece mesmo: mudando a matriz da mão de obra brasileira, muda a política brasileira também. E a lógica dessa mudança, é claro, é a projeção dos militares na política a partir da abolição.
Quer dizer, não é por acaso que um depois do fim da escravidão nasce a República.
Exatamente. As coisas estão completamente conectadas. Mas sem dúvidas alguma o abolicionismo militar não é um projeto de inclusão social, de maneira nenhuma. Pelo contrário: o alto-oficialato tinha imenso desgosto com a presença de negros e ex-escravos nas Forças Armadas. Para eles isso é uma mácula para a corporação, algo que suja a corporação. O ideal era que o filho do bacharel fosse nosso soldado, o negro não! Então é fundantemente racista a corporação militar brasileira, assim como qualquer brasileiro daquela época muito dificilmente escaparia disso.
Leia também – As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1]
Bom, nós passamos pelas décadas de 1860, 1870, 1880, estamos chegando no momento final do Império: há uma passagem do seu livro que justamente trata disso, de um telegrama que inicia a proclamação… Conte essa história por favor.
É fenomenal, se Hollywood fosse brasileira, já teria virado filme [risos]. Basta dinheiro, porque é a cena perfeita de um filme de suspense sobre a proclamação da República [risos].
O [Francisco] Glicério, que é um perrepista de primeira linha, alguém muito articulado, o diplomata campineiro, por assim dizer – quem fazia as articulações entre o PRP e os militares, o sujeito da sondagem –, às vésperas da proclamação da República ele vai justamente ao Rio de Janeiro para acertar os detalhes do golpe civil-militar do 15 de novembro de 1889. E acertar os detalhes são coisas como: quem vai pegar o telégrafo, quem vai interceptar a estrada de ferro Dom Pedro II, quem vai segurar a estação, bloquear a cidade, o porto, para não ter nenhum tipo de reação monarquista. E dar 48 horas para a família imperial se mandar. São os detalhes do golpe mesmo, é a “minuta” do golpe que ele vai acertar no Rio de Janeiro [risos]. E ele acerta essa “minuta” com os veteranos da Guerra do Paraguai, e o que faz é mandar um telegrama para o Campos Salles, que aguardava muito ansiosamente, em São Paulo, as notícias da Corte.
O telegrama dizia assim: “Banco aceita transação. Penhor agrícola concedido”. É um telegrama completamente insuspeito para a época. Há quase uma censura dos telegramas nesse tempo, porque há um temor imenso de um golpe republicano. O último gabinete do Império, que é o do Ouro Preto, com razão temia isso. Então o censor, quando leu o telegrama, o que pensou foi: “é mais um paulista pedindo dinheiro para o Rio de Janeiro”. É próprio do que vínhamos falando aqui. E o Rio de Janeiro teria dado; “penhor agrícola concedido”; penhor agrícola é a hipoteca. Agora, a beleza da coisa, o lado hollywoodiano desse telegrama, está na decodificação dele, que estava cifrado. “Banco” era Exército; “transação” era revolução; e “penhor agrícola” era o 14º regimento de cavalaria, estacionado em São Paulo. Então o que o Campos Salles leu em São Paulo, provavelmente sorrindo, foi: “Exército aceita revolução. Despache a tropa para cá”. É fabuloso: como uma fonte primária insuspeita, um telegrama totalmente corriqueiro – como esse havia outros dez milhões. E uma fonte tão corriqueira pode revelar tão bem uma contradição de muito maior fôlego, de décadas. Uma contradição que é essa: a reestruturação da economia do País, o eixo produtivo indo para São Paulo e o Rio de Janeiro financeirizado.
No seu livro, em vários trechos, há a presença dos Estados Unidos, normalmente como uma inspiração para os republicanos – o que, claro, não é algo novo na historiografia. E aparece também uma influência norte-americana muito forte no início da República, uma política de aproximação ativa do Brasil com os EUA. Mas em que medida uma República no Brasil interessava aos EUA? E até que ponto poderíamos falar de contatos não após a República, mas sim antes? Porque há na época produções como a de Eduardo Prado – que era um monarquista que não economizava tinta – sustentando a proclamação da República como o começo do intervencionismo americano.
É, mas é isso mesmo. Há um interesse dos Estados Unidos por uma República no Brasil, e há intervenção, inclusive. Eles despacham embarcações para sustentar o governo Floriano Peixoto, por exemplo, contra os revoltosos da Armada. E nesse caso não se trata exatamente de sustentar o Floriano Peixoto o que interessa aos EUA; é sustentar quem está por trás do Floriano Peixoto, que é o café de São Paulo, o PRP. O Floriano Peixoto precisou dos paulistas para bancar a guerra civil daquele momento. Há um claríssimo interesse dos EUA na República brasileira proclamada nos termos do PRP; isso convém plenamente para o projeto dos EUA para o Hemisfério americano naquele então, que é justamente transformar o hemisfério como um todo em um mercado consumidor para indústrias dos EUA após a Guerra de Secessão.
Se vencesse o projeto militar no Brasil, eventualmente seria um problema para os EUA, porque se trataria de uma concorrência. Mas se vence o projeto perrepista, é uma complementariedade: “manda café pra cá que eu mando manufatura para aí”. Estou resumindo, claro, mas é o que estava disposto no tratado comercial bilateral Blaine-Mendonça, entre o Brasil e os EUA, assinado justamente logo após a proclamação da República. Não é à toa que os Estados Unidos reconheceram muito rapidamente a República no Brasil. Porque entenderam, é claro, que São Paulo sairia à frente.
O próprio Salvador de Mendonça, que assina esse tratado comercial com James Blaine, então secretário de Estado dos EUA, havia sido diplomata do Império nos EUA. E o que estava fazendo, no fundo, era uma espécie de paradiplomacia republicana; alta traição à monarquia [risos]. Porque o que ele faz, desde a década de 1880, é mostrar aos Estados Unidos quão profícua seria uma República no Brasil. Está pedindo apoio, pedindo intervenção, no fundo é isso. A intervenção dos EUA não é explícita, como foi em tantos países da América Central, no século 20, ou o que foi no próprio Brasil em 1964, mas está lá, sem dúvida alguma. Ela acaba se explicitando com o apoio militar ao Floriano Peixoto, mas isso acontece apenas quando o Departamento de Estado dos EUA tem perfeita clareza de que o Floriano Peixoto teve de se entender com o PRP, inclusive entregando a presidência ao PRP – o que aconteceu, Prudente de Morais assume a presidência seguinte, em 1894.
Mas no fundo eles participam do golpe de 1889. Não à moda de 1964, mas estão lá; este é o projeto norte-americano à época, o do pan-americanismo.
Há quem veja, não só neste período, em que isso é chave, mas de fato em toda a história brasileira, uma luta entre duas concepções de organização política do país: o federalismo contra o centralismo. Em que medida você vê isso nesse processo, tanto da proclamação, ou anterior à proclamação, e depois, no desenvolvimento da República? Porque, no fim, isso vai dar no Getúlio queimando as bandeiras dos Estados…
Isso conta, e conta muito, sem dúvida alguma. O projeto federalista no Brasil existiu desde a Confederação do Equador, logo após a nossa primeira Constituição imperial. Foi tolhido, em benefício do centro.
Isso é um problema, não só do ponto de vista orçamentário: para as classes economicamente dominantes de outras regiões, o centro é um problema na medida em que ele faz a política econômica, a política administrativa, a jurisdicional. Mas, do ponto de vista econômico, o centro tem a prerrogativa da política econômica, portanto cambial, monetária e fiscal. Ou seja, o centro tem o poder redistributivo, organiza como o orçamento será distribuído e em proveito de quem. E aí evidentemente as tensões nacionais existem, existiram no século 19 e no 20, muito marcadamente com o Nordeste se ressentindo com o centro, o Sudeste.
O Campos Salles, quando chega à presidência, em 1898, entende muito bem isso. Inclusive porque ele era defensor de um ultrafederalismo, que de fato veio à tona na Constituição de 1891. E aquele era um federalismo muito mais agressivo que o atual do ponto de vista das competências que os Estados poderiam ter, em relação a empréstimos internacionais sem o crivo da União ou ainda da disposição de uma Força Pública estadual muito consequente: para se ter uma ideia, a Força Pública estadual paulista, às vésperas da Revolução de 30, tem mais ou menos a metade do contingente do Exército nacional. Quer dizer, se der pau, sabe-se lá o que pode acontecer – de fato deu pau, em 1932, e ganhou o Vargas. Ganhou em parte, uma vitória de Pirro, porque logo depois ele tem de promulgar uma Constituição que não gostou muito, a de 1934.
Mas essa tensão existe, e o Campos Salles entende isso. Por isso realiza a política dos governadores, dos Estados, que é o exercício puro do poder coercitivo, em menor medida, e sobretudo do poder distributivo, que se sobrepôs, em última instância, para sedimentar um poder persuasivo. Ou seja, a República como algo negociado entre a União e os Estados. O poder distributivo é fundamental nisso, para que o Campos Salles pudesse arregimentar suas alianças oligárquicas regionais, tem de redistribuir orçamento: se a oligarquia baiana é a favor do Palácio do Catete perrepista, “toma o seu dinheiro para sua ferrovia”; se está dando problema no Piauí, enxuga, fecha a torneira. São Paulo se garante, porque tem o Porto de Santos, mas o Piauí não. Negociando dessa forma, o poder persuasivo, pelo consentimento, se realiza também: as oligarquias regionais entendem que, já que é dessa forma, é melhor seguir o PRP mesmo; é a garantia deles de receber um repasse. Assim se faz um consenso – até, claro, as rupturas da primeira República; as eleições de 1910, de 1922, e, claro, a de 1930, que implode tudo.
A última questão, que talvez seja a mais boba e também a mais importante: o que esse processo da proclamação da República revela do Brasil 135 anos depois? Ou, melhor, o que o Brasil hoje ainda tem daquela Brasil dos 1870, 1880, e da proclamação em si?
Naquela época os brasileiros andavam de bonde, usavam cartola; fraque os mais ricos, os outros usavam camisa portuguesa, chinelo de couro e coisas do gênero. Era diferente na fotografia, mas na essência é muito semelhante. Porque há duas constâncias notórias, da proclamação da República para hoje:
A primeira é que, via de regra, quando se institui um novo regime no Brasil, a promessa sempre foi do novo em detrimento do velho, que deveria ser erradicado. A promessa é começar outra vez e sempre: é um Estado Novo porque a República era velha, e atualmente é uma Nova República porque o regime militar evidentemente estava desgastado também. É exatamente o que acontece na proclamação da República: a promessa do novo como se fosse possível fazer tábula rasa do passado. Isso é um problema – não vou falar pecado original porque não sou católico praticante nem acredito que as coisas estão definidas para sempre –, mas é uma espécie de pecado original: não enxergar a importância do passado. É claro que sou um historiador falando, mas se a cada mudança do regime acharmos que podemos fazer tábula rasa do passado, não incorporamos nossos acertos e nossos equívocos do passado. E aí começamos mal, do zero, outra vez.
O segundo ponto é que essa virada do poder, que é a primeira grande virada do poder na história do País, se fez perfeitamente entre oligarquias. É pelo alto, transado, acomodado, ajustado. A própria abolição foi totalmente transada, negociada e, ao fim e ao cabo, também indenizada pela via bancária. Essa transação de uma oligarquia para a outra caracterizou a Revolução de 30; caracterizou o fim do Estado Novo, em 1945; caracterizou 1964 e 1985, mais uma vez. E é o que veremos, ainda, tantíssimas vezes na história do País. A historiografia hoje é bastante militante no sentido de dar protagonismo aos subalternos. E isso é importante, sem dúvida alguma. Mas tão importante quanto isso é entender porquê eles não foram protagonistas. Porquê o povo não foi protagonista. Ou seja, ao invés de um esforço colossal para enxergar em qualquer episódio micro-histórico o protagonismo do operário ou o que for, talvez o ideal fosse entender porque, na história, ele não foi protagonista. E se queremos dar protagonismo a eles, é fazendo aquilo que o País não fez; realizar um País menos articulado entre oligarquias; trazer o povo realmente à frente, ao protagonismo mesmo. Nós sempre perdemos a hora da história, assim como Rio Branco e tantos outros depois, agora a gente voltou a perder a hora da história.
Nós abrimos a caixa preta da reforma tributária, não foi? O que saiu é melhor do que existia, mas é muito pouco, do ponto de vista do que deveria ser uma legislação tributária nacional realmente preocupada em dar protagonismo à população brasileira. O teto do imposto de renda ficou igual, 27%; as grandes fortunas continuam não sendo taxadas, sobretudo os ganhos de capital não são taxados… O empreendedor normalmente fala que é muito difícil empreender no Brasil; sim, porque você quer o lucro todo, quer pagar o salário mínimo, aí realmente fica muito difícil; quer ficar com os 95% restantes, aí não dá. De repente 60% já estaria bom, não? [risos] Precisa mesmo de 95%? Então nós voltamos a perder a hora da história. O que fazer? Essa é a pergunta leninista que vou deixar de lado [risos].
A ” proclamação da república” , não passa do primeiro golpe de estado, perpetrado pelos militares violentos & corruptos de sempre. O próximo golpe eu não sei que horas vem . Porém está sempre pronto para entrar em cena. Este país desistiu de andar na contra mão do mundo. Agora o objetivo da classe dominante, é a idade média. Com smartphone, cartão de crédito e igrejas evangélicas. O Brasil tem um longuíssimo passado pela frente.