Qual é o seu valor?
Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
Roberto e Inaiê não conseguiam dormir, foram até a cozinha, estavam pensando sobre a situação de Perséfone, sobre o que poderiam fazer para ajudar. Enquanto pensavam, resolveram falar um pouco sobre alguns pensadores que poderiam ser relacionados com o contexto em que estavam vivendo. Inaiê ficou impressionada com a forma que Roberto apresentou uma pensadora francesa do século XX, ele começou dizendo:
– Na história dos viajantes, o despertar do pensamento aparece como um sonho, muitas vezes sacudido pela violência e a truculência que o humano é capaz de fazer com seu semelhante. Em determinados momentos, os viajantes têm lapsos de clareza sobre o caminhar, alguns são movidos pelo entusiasmo em querer mais do que é dado e revelam seu descontentamento diante do que é apresentado. Entre os viajantes com esse perfil, encontramos uma jovem francesa, Simone Weil (1909-1943), que descreveu, no seu tempo, um pouco sobre a barbárie do humano, ousada, perguntou o que poderia ser feito diante do que estava posto, se deveríamos fazer um inventário do que conduz o humano a sua ruína e mostrar as armadilhas que convertem as pessoas em escravas de suas próprias criações. O inventário proposto pela filósofa Simone Weil é uma tarefa muito difícil de ser executada, pois as criações que levam ao cárcere dos humanos poderiam ser apresentadas em uma lista infindável, trata-se de uma tarefa muito ousada. No entanto, é possível propor um começo, isto é, fazer a pergunta sobre como são construídos os nossos grilhões.
Inaiê – Roberto, partindo desse raciocínio, penso que o primeiro passo para fortificar a prisão e a tortura não está meramente na prisão, na sua parte material ou até mesmo no ato, mas sim, na crença que ela representa um valor justo, do contrário, quem fosse submetido poderia ser libertado ou ao menos causaria um sentimento comum de injustiça, o que impediria os atos futuros de tal natureza. Por isso, os grilhões começam com algo pequeno, como uma ideia, que passa ser compartilhada, até se tornar uma força motriz, dando material para os juízos e julgamentos. Desse modo, o que é apenas uma construção humana ou convencional passa ser percebido como natural ou normal, pensando em um exemplo, podemos citar a questão da violência, muitas vezes os atos violentos não são considerados dessa forma por receberem o status de normalidade.
Roberto: Você está certa nesse ponto, podemos falar que entre as ideias com grande força e potencial para a violência é o conceito de valor, que corresponde a uma percepção sobre quanto vale, se é útil ou não, pode indicar uma condição numérica sobre a importância, por exemplo, o trabalho de um profissional vale tanto, já o de outro vale um pouco menos. Nesse caso, temos uma atribuição de valor que determinará o status social de alguém.
Inaiê- Então, poderíamos conjecturar que o valor corresponde, independente sobre o assunto que falamos, economia, cultura, política, ética, a uma criação humana e não deveria ser uma forma de aprisionamento. Entretanto, infelizmente, essa ideia pode gerar uma forma de pensar que afasta as pessoas da humanidade ou de sua consciência sobre o seu ser. Nesse sentido, poderíamos destacar que o trabalho recebe um valor, pode ser caracterizado como um meio para execução de algo que tem um preço. Dessa forma, ele se torna uma mercadoria. Existem trabalhos mais valorizados que outros, valores são medidos. Então, surge a questão: qual é o seu preço? Se você tem um preço igual a uma mercadoria o seu valor poderia ser diminuído, desconsiderado. Logo, o valor de alguém está sujeito a mudanças. Isso não seria transformar as pessoas em coisas, objetos? Qual diferença de tratamento?
Roberto – Você está certa, essa forma de agir chamamos de reificação ou coisificação, reduzimos o humano e as relações em meras mercadorias. Seguindo nessa linha de pensamento, podemos fazer outra pergunta interessante: qual o motivo de você trabalhar?
Inaiê – A resposta mais rápida é ganhar dinheiro para sobreviver ou ter algo na vida, certo?
Roberto – Não sei, mas dessa forma o trabalho de fato não importa, o que é definido como útil depende de um valor que representa para um grupo de pessoas, para a sociedade, o resultado dessa medida é pago em dinheiro, o que leva a outra indagação: onde está o valor do dinheiro? Na criação e atribuição de valor dada pelos humanos. Diante disso, dado que o trabalho é convertido em uma mercadoria, quem trabalha não se converte também? Do mesmo modo, o humano perde a sua dignidade e passa ser uma coisa capaz de desenvolver labor e poderá ser substituído por outro, por uma máquina, pode ser dispensado.
Inaiê – Roberto, isso parece ser interessante e triste!!! Seguindo na mesma linha de raciocínio, poderíamos falar que na sociedade moderna, as pessoas se descobrem como consumidoras, o valor delas não está na dignidade humana, mas no seu potencial de consumo, o que leva a necessidade em buscar por dinheiro, sem ele não terás as coisas básicas, batalhas épicas serão travadas pelo capital e será que as batalhas pela humanidade ainda serão importantes?
Roberto –Pensando no caso de Perséfone, poderíamos trazer o fato que nesse cenário, a medicina aparece como um campo do conhecimento que pode fazer a diferença na dignidade humana, tem o poder de salvar vidas, mas se a medicina passa ter um preço, ela se converte em uma mercadoria, seu valor é de mercado, medicamentos tem importância se forem vendidos, não importa a vida, mas a venda, planos de saúde sobrevivem não pela sua relevância em salvar vidas humanas, mas tão somente por serem viáveis no mercado.
Inaiê – Que sociedade mesquinha criamos!!! Olha só, uma criança não adquiriu nenhum conceito, vai aprender os valores com a sociedade, por isso dizemos que é inocente, mas dessa forma, nem por isso deixa de ser um objeto, uma mercadoria em um mundo de vendedores e consumidores. Quando necessita de tratamento, esse tem um custo, convencionalmente aceito, claro que a cadeia de convenções é gigante, tem proporções globais em um mundo que é global. Diante disso, surge a questão: qual é o valor de uma vida de uma criança? Qual é o valor que você pode pagar por sua vida? Se não tiveres condições de pagar, sabendo que a humanidade dispõe dos recursos, é um humano que desaparece ou apenas um consumidor sem condições? Essa ideia de valores não é uma forma de violência visto que não permite viver quem não tem potencial de consumo? O quê ou a quem devem servir as nossas autoridades, determinadas e eleitas por convenção, devem servir ao mercado ou salvar vidas? Somos capazes de ser solidários?
Roberto percebeu a indignação de Inaiê, tentou acalmar seu ânimo, o que não surtiu muito efeito, Inaiê foi na sua direção e disse:
– Temos que ir dormir, mas o fato é que o grande desafio para o homem contemporâneo é conseguir superar a sua condição de uma mera mercadoria. Por ora, temos que salvar minha sobrinha, que é apenas uma vítima nesse universo.
Os dois foram tentar dormir, a madrugada era silenciosa, contudo os seus espíritos estavam agitados, até que o silêncio foi interrompido, eram três horas da manhã, Deméter gritou desesperada e chamou seus irmãos para socorrer a sua filha, a respiração da menina estava imperceptível, chegaram no hospital, as enfermeiras demostraram grande preocupação, foi levada para uma sala, Roberto e os três irmãos não tiveram a entrada concedida. Deméter aos prantos estava no corredor, a dor de uma mãe, temendo o pior, os irmãos tentavam consolar, sem sucesso. Por volta das seis horas da manhã, o médico chamou Deméter, que estava trêmula, amparada por Roberto e Ulisses, o doutor já vinha acompanhando a situação de Perséfone, ele se apresentou para os irmãos de Deméter e Roberto, dizendo que era Francisco, em seguida falou com calma e cuidado, parecendo uma sentença para Deméter:
Francisco – Eu sinto informar que a situação de sua filha inspira muitos cuidados, a cirurgia que havia falado contigo outro dia, precisa ser o mais breve possível. Ela não poderá sair do hospital, mas infelizmente o sistema de saúde não cobre os custos.
Deméter falou aos prantos para o médico:
– Não tenho como trazer o dinheiro para pagar a cirurgia.
Francisco – Podemos fazer o tratamento inicial, mas o valor dos remédios custará em torno de R$ 10.000, 00.
Deméter abraçou Ulisses e disse:
–E agora? É o fim? Não conseguirei pagar o tratamento de minha filha!!!
Roberto- Calma, Inaiê fique com Deméter, Ulisses você vai até o mercado falar com a proprietária o que está acontecendo.
Roberto e Ulisses saíram. Ulisses estava preocupado, conversou com a dona do supermercado que compreendeu a situação, mas ela precisava que ele ficasse trabalhando, passou três horas quando Roberto apareceu no Hospital, foi conversar com o médico, em seguida o doutor foi em direção de Deméter e comunicou:
Francisco- Vamos começar o tratamento, mas em trinta dias temos que fazer a cirurgia, um de vocês poderá acompanhar e ficar com Perséfone.
Inaiê e Deméter ficaram olhando para Roberto, sem saber como ele tinha conseguido, Inaiê indagou sobre como ele tinha convencido a instituição fazer o tratamento, Roberto respondeu que deixou as coisas que estavam na ferrugem dos esperançosos e a coruja na casa de Deméter e que havia tentado vender o veículo na oficina, os donos conheciam a história e firmaram um contrato, emprestaram o valor necessário e o veículo ficou como garantia. Nesse momento, Deméter emocionada abraçou Roberto, seus olhares se encontraram, não foram mais necessárias palavras, o olhar de Deméter denunciava seu agradecimento e seu afeto por Roberto. Nesse momento, o doutor Francisco chamou Deméter para ficar com a filha, na saída os três combinaram que Deméter ficaria com a filha durante o dia e eles iriam trabalhar e buscar formas para arrecadar o valor necessário para a cirurgia.
Enquanto estavam a caminho do mercado, Inaiê pensou consigo: em um mundo onde as pessoas e as relações são reduzidas a mercadoria, surge uma pequena esperança, que está na solidariedade e na capacidade de se indignar com o sofrimento do outro, nem tudo estaria perdido, os estranhos poderiam encontrar a humanidade.
Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.
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