Por Ingrid Matuoka.
Dos 198 dias letivos de 2017, a rede municipal de ensino do Rio de Janeiro funcionou integralmente em apenas 14. Em outras palavras, nos outros 184 dias do calendário escolar episódios violentos como tiroteios, toque de recolher, assaltos ou operação policial forçaram a interrupção das aulas, prejudicando mais de 165 mil estudantes.
O quadro dialoga com outro ainda mais dramático. O Rio de Janeiro teve, no ano passado, o maior índice de letalidade violenta desde 2010, segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP). Foram 32,5 mortes a cada 100 mil habitantes.
A cidade, agora sob intervenção federal militar, enfrenta também uma crise financeira e política, que afeta sobremaneira as periferias, onde vive cerca de um terço da população carioca, e ameça o acesso a equipamentos públicos de educação, saúde e assistência social, comprometendo o desenvolvimento integralde milhares de crianças e adolescentes.
“Imagine as crianças em sala de aula quando o tiroteio começa. O medo e o pânico se instalam, alunos e professores se jogam no chão, se encolhem num canto, nos corredores, até tudo se acalmar. Às vezes isso acontece na entrada ou saída da escola, e todos correm pela rua ou se protegem atrás dos muros”, narra Julia Ventura, gestora institucional do Aluno Presente, projeto realizado pela Associação Cidade Escola Aprendiz que mapeia a cidade em busca de crianças fora da escola e dá condições para que elas possam acessar e permanecer no ambiente escolar.
A cidade sitiada
“Como falar de meritocracia neste contexto de desigualdade? É no mínimo hipócrita acreditar que estes estudantes terão as mesmas oportunidades educacionais”, critica Julia Ventura, do Aluno Presente
Em outubro de 2017, por exemplo, diversos adolescentes moradores da Rocinha não conseguiram sair de casa para realizar a prova da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), porque a comunidade amanheceu ao som de tiros — e assim permaneceu durante cinco horas.
Nesse dia, pelo menos uma pessoa morreu e três ficaram feridas.“Como falar de meritocracia neste contexto de desigualdade profunda? É no mínimo hipócrita acreditar que estes estudantes terão as mesmas oportunidades educacionais que outros, distantes da realidade das favelas”, critica Julia.
Além da privação ao direito à educação, a vida de crianças e adolescentes estão em jogo. Em 2017, ao menos 12 crianças morreram vítimas de disparos de armas de fogo na região metropolitana do Rio — uma dentro da própria escola.
Maria Eduarda tinha 13 anos e foi morta enquanto bebia água no pátio da Escola Municipal Jornalista Escritor Daniel Piza. No muro do colégio ficaram as 20 marcas de perfuração por bala. Três delas atingiram a aluna, e uma seguramente veio da arma de um policial. Por consequência da tragédia, a escola permaneceu fechada por um mês. Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Educação afirmou que o tema da violência é de responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública.
Raízes da violência
Para Julia Ventura, apesar da violência urbana ser uma questão que aterroriza o Rio de Janeiro há décadas, a recente onda tem a ver com a política de “pacificação”adotada em 2010, para que o País sediasse dois grandes eventos esportivos: a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
“A cidade se tornou alvo de uma política de “pacificação”, que trouxe uma ilusão de segurança circunscrita às regiões mais abastadas e nobres da cidade. Foram 38 UPPs instaladas, todas na Zona Sul, Norte ou Oeste. Isso ocasionou uma forte migração dos grupos armados de narcotraficantes para outras regiões da cidade e também municípios vizinhos”, explica Julia.
Terminada a Olimpíada, em 2016, aos poucos a cidade foi voltando à situação anterior. “Toda esta política foi desmantelada e hoje a cidade vive uma reorganização das facções e grupos milicianos numa disputa pelos territórios da cidade, incluindo a entrada do PCC, facção de SP. Isto intensifica situações de conflitos entre os grupos e entre eles e a polícia”, diz a gestora do Aluno Presente. Soma-se ao cenário de caos, a insistência na política de Guerra às Drogas aliada à falência fiscal do Governo do Estado que financia a Polícia Militar.
O medo cotidiano
Sair de casa, todas as manhãs, é o primeiro desafio para quem vive em áreas conflagradas no Rio de Janeiro. É preciso cuidado nas fronteiras entre facções rivais que, por vezes, impedem a passagem de pessoas e transformam a área em praça de guerra.
O transporte público nas comunidades e periferias do Rio de Janeiro é outro empecilho. “Já encontramos casos de pais que escolhiam quais filhos iam para a escola em cada dia da semana, quando não conseguiam matricular irmãos na mesma escola, porque embora os estudantes tenham direito ao passe livre, seus responsáveis não têm, e acontece de eles serem pequenos demais para irem sozinhos”, conta Julia Ventura.
Quando chegam à escola, os desafios não cessam. “No dia seguinte a um tiroteio, não dá para ter uma aula como se nada tivesse acontecido. Em estado de grande estresse, nem os professores e nem as crianças conseguem prestar atenção, ter foco e um bom desempenho”, diz a pedagoga Shyrlei Rosendo, coordenadora do setor de mobilização do eixo de segurança pública da ONG Redes da Maré. “E não melhora com o tempo. É um crime dizer que as pessoas se acostumam a essa situação.”
“É violento voltar para a aula no dia seguinte a um tiroteio para falar sobre Teorema de Pitágoras”, diz Marcio Gagliato
O estudo Educac?a?o em Alvo – Os Efeitos da Viole?ncia Armada nas Salas de Aula, desenvolvido pelo aplicativo Fogo Cruzado, em parceria com a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV), corrobora a crítica. A análise constatou que “quanto mais próxima é a violência, e quanto mais novo é o indivíduo, maiores são os efeitos perversos da exposição à violência.”
“Existem registros comparativos que relacionam o desempenho das mesmas crianças antes e depois da exposição à violência”, explica o estudo. “Há perdas nos processos cognitivos, como a memória, a capacidade de manter atenção, de planejar, resolver problemas, e maior probabilidade de conflitos na convivência entre os pares”, só para mencionar os efeitos ligados aos processos de ensino-aprendizagem. As marcas deixadas pela constante exposição à violência, no entanto, são muito mais amplas.
Para o psicólogo Marcio Gagliato, que trabalhou com crianças em regiões conflagradas, como Ruanda, Líbia e Faixa de Gaza, a escola não pode ignorar o contexto no qual está inserida. “Seria violento voltar para a aula no dia seguinte a um tiroteio para falar sobre Teorema de Pitágoras, e simplesmente não funciona. E não se trata de dramatizar a situação, mas reconhecer e nomear o que está acontecendo”, diz Marcio.
Segundo Julia Ventura, do Aluno Presente, o direito à educação estará sempre ameaçado enquanto as condições adequadas de aprendizagem não estiverem devidamente garantidas pelo Estado de Direito. “Não podemos nos contentar com nada menos do que a garantia efetiva de todos os direitos humanos fundamentais para os estudantes e suas famílias, bem como a de condições estruturais do serviço educacional, como a qualificação e a valorização dos educadores”, ressalta.
Para o psicólogo Marcio Gagliato, no entanto, criar espaços de acolhimento para os educadores seria o mais aconselhado. “Bombeiros, educadores, psicólogos, assistentes sociais e todos aqueles que respondem a uma crise costumam ter suas necessidades de cuidado negligenciadas, porque são vistos como ‘heróis’, como alguém que tem que ser forte porque outras pessoas precisam deles.”
Logo, instaurar um ambiente de troca e apoio mútuo dentro da escola dá conta de fortalecer os vínculos entre corpo docente, alunos e famílias. “Tudo que é reprimido volta como sintoma e prejudica os relacionamentos, consigo mesmo, com o trabalho e com os outros, até o ponto da exaustão pessoal do educador, além de prejudicar a relação de ensino-aprendizagem com as crianças”, finaliza.