“É como eu sempre digo: fazer no campo o que eu faço no treino” (Richarlison).
Por Flávio Carvalho *
O congelamento da expressão corporal de Richarlison, no exato momento de marcar o gol mais lindo do atual campeonato mundial de futebol, tinha tudo para ganhar a primeira página de todos os principais jornais no globo terrestre. Já ganhou. O que ele jamais imaginou é que se tornaria um Meme viral na Internet, criado por pessoas que se dedicaram a enxergar na extensão do seu braço e perna, uma letra L, de Lula. Criatividade é ver o que a gente quer ver.
Lesionado um mês antes da sua estreia no Qatar, ele, Richarlison, sabe que ocupa uma função mítica daquele Camisa 9 que nos tempos de Vavá e Jairzinho, se chamava “banheirista”. Ficar na banheira era a expressão usada para o jogador que ficava lá, folgado, plantado na pequena área, esperando a bola decidir-se a chegar ao seu pé. Do tempo em que esperar exigia intenso esforço de concentração.
“Posicionamento”, saber ocupar o melhor espaço no campo, dirão os analistas de futebol mais modernos. Aquilo de analisar o jogo não a partir de por onde rola a bola, e sim do “espaço cênico” desenvolvido por cada jogador – principalmente quando a câmera de TV quase esquece dele. O cada vez mais famoso futebol que se ganha mesmo sem a bola no pé. A primazia da exata antecipação.
O Mundial do Qatar tem tudo pra ser notícia mais fora do que dentro do campo. Nem preciso explicar.
A situação da Seleção Brasileira, dominada por um ambiente político bem quente, também.
Daí, num roteiro de cinema, vem um jogador destoante, minimamente comprometido com causas sociais (defensor das vacinas, da ciência e do meio-ambiente, como se isso já fosse algo extraordinário). Ou, pelo menos, não comprometido com o atual governo fascista – no meio de bolsonaristas assumidos como Neymar e Dani Alves. Richarlison brilha dentro do campo, tanto quanto fora do gramado.
O oposto do polêmico Ney, Richarlison, como se fosse pouco, ainda ressalta a cultura do esforço e do saber merecer um passe, valorizando cada treinamento. Outra foto do Brasil 2 x 0 Servia ganhou o mundo enquadrando Neymar quase chorando, sentado no chão, enquanto Richarlison aparenta ser ainda maior do que os seus 1,84 metros: “só faço no jogo o que pratico muito nos treinos; dedico-me a assistir vídeos de jogos passados, principalmente de quando Ronaldo Fenômeno, meu ídolo, vestia a camisa 9; e tento aprender cada vez mais do futebol inglês, jogando ao lado, por exemplo, do capitão Harry Kane, no Tottenham Hotspur F.C.”, é mais ou menos o que tentou nos dizer recentemente.
Está tão famoso que um amigo jornalista espanhol acabou de me escrever perguntando se ele é aquele mesmo jogador brasileiro que declarou-se bissexual numa entrevista recente. Não, amigo. Aquele é outro Richarlyson, e com uma letra diferente no nome. O tema é bom. Mas não exageremos. Cuidado.
Este, o do golaço, de voleio, é aquele que apelidaram de Pombo, que jogou no América mineiro e no Fluminense. Filho de mãe faxineira e de pai pedreiro (homem negro, que de uma só vez lhe presenteou – interessadamente – com dez bolas de futebol). Vende sua chuteira famosa em leilão e doa esse dinheiro para projetos científicos, como o da USP, no combate ao Covid.
É “o mais novo R da seleção”, batizado pela Rede Globo de Televisão.
E, para não dizer-se isento de polêmicas (isento é uma categoria social, no Brasil, lamentavelmente cada vez mais associada à conivência e à covardia, diante de tantas barbaridades nazifascistas), Richarlison também é capaz de falar grandes bobagens. Claro. Como naquela vez que expressou admiração pela foto misógina de Ronaldinho, deixando-se fotografar com cinco bundas de biquíni, empinadas, com cinco anônimas de costas, em pose de estiradas aos seus pés.
Que nos traga mais alegrias, Richarlison, dedicando-se ao que melhor sabe fazer, como já demonstrou.
E que, ao mesmo tempo, continue demonstrando que é perfeitamente compatível ser um craque no campo e ter boas opiniões, senso crítico e respeito às suas origens sociais, de classe, dos tempos de infância em Nova Veneza, vendendo picolés, cafezinhos e trabalhando na roça, para ajudar os seus pais.
Aquele abraço.
* @1flaviocarvalho, @quixotemacunaima, sociólogo e escritor.