Por Gabriel Brito e Raphael Sanz.*
Já estamos no segundo mês de 2017 e o quadro de depressão geral continua a dominar todo o cenário brasileiro. Com a eclosão da crise carcerária e as mais de 100 mortes causadas em diferentes massacres, dentro de um processo de reordenamento econômico que atinge até o crime organizado, veem-se contornos de barbárie total. Diante de tamanho desalento, entrevistamos o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes.
“Há um destroçamento das relações de trabalho assalariado de tal modo que temos no Brasil hoje um desemprego real maior que 12 milhões de pessoas. A situação brasileira é tão trágica que até na informalidade está tendo desemprego. A informalidade tende a se expandir nas crises, mas dada sua profundidade começa a retroceder, pois já estamos vendo diminuição do chamado ‘trabalho autônomo’. Temos também uma massa de terceirizados que são burlados cotidianamente por este sistema. O ‘empreendedorismo’ é um mito atingido por muito poucos – a grande maioria só perde o pouco que conseguiu criar com seu FGTS – e tudo isso tende a se tornar ‘coisa do passado’”, analisou.
Antunes prevê fortes tensões sociais no país, motivadas por “questões literalmente vitais”, nas quais se incluem as reformas do sistema previdenciário e da legislação trabalhista. Uma guerra de classes aberta, como definiu, que visa “destruir tudo o que a classe trabalhadora construiu no século 20”. Afirma que o velho modelo petista de conciliação de classes está no “cemitério político” e aposta que uma nova esquerda deve ser reinventada tomando como norte a defesa da vida, ou seja, das questões vitais que elencou, e colocar os embates extrainstitucionais acima de todas as prioridades.
“Há uma certa ilusão institucional parlamentar de esquerda no Brasil. Os partidos à esquerda do PT têm mostrado dificuldades em perceber que o eixo da luta social e política é extraparlamentar. Não é antiparlamentar, não se trata de negar o parlamento, mas de não depender dele e de fazer dele a prioridade da ação dos partidos de esquerda. Estes parecem ter dificuldades de perceber que não devem lutar no ringue do capital. A institucionalidade é um espaço do capital e não deveria ser a nossa prioridade. A prioridade das esquerdas deve estar canalizada para a luta extrainstitucional, a luta social, para a luta política das maiorias, fora do espaço da institucionalidade onde tudo parece mudar para nada efetivamente se transformar”, explicou o autor de Adeus ao Trabalho.
Apesar de tudo, aposta que o governo Temer, dada a sua “ilegitimidade congênita, será devastado pela Lava Jato” e entrará para a “lata de lixo da história” como um governo terceirizado. Um dos maiores estudiosos contemporâneos do mundo do trabalho, ele vê com otimismo um futuro esgotamento da chamada “ofensiva conservadora”. No entanto, não deixa de reiterar que não há qualquer possibilidade de reverter o processo de retirada de direitos sob a égide do lulopetismo, o qual já considera enterrado no “cemitério político”.
“A chamada Nova República acabou! E ela começou com o Sarney. É tão grotesca essa nova república que começou com um velhaco que expressava a velha república. Imagina se esse parlamento sem credibilidade e legitimidade for indicar um presidente que vá suceder o Temer? As eleições gerais são um imperativo social e político inadiável. E, de preferência, que ocorram em paralelo a um processo extrainstitucional de fortes rebeliões populares em todo o Brasil”, sintetizou.
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Que análise você do momento político brasileiro, marcado por um 2016 que viu uma trinca, mesmo incompleta, praticamente inédita: queda da presidente da República, do presidente da Câmara e do presidente do Senado – neste caso revertida no STF?
Ricardo Antunes: 2016 é um ano que talvez não devesse ter existido. Seu cenário é desastroso no plano internacional, bastaria sinalizar a vitória do Trump nos Estados Unidos e uma ofensiva muito forte da extrema-direita em escala mundial. Um período que nos permite lembrar aquela conceitualização do Florestan Fernandes de contrarrevolução preventiva, adicionando, ainda, sua amplitude global.
Nos anos 2010 a 2013, com manifestações muito importantes no cenário mundial, vivenciamos a era das rebeliões. Começou com a rebelião na Tunísia e chegou ao Occupy Wall Street, as rebeliões da juventude na Espanha, as manifestações populares na Grécia, entre outras. Essas revoltas nos seus diversos países traziam um avanço na dinâmica das lutas e marcaram a chamada era das rebeliões. A partir daí, do fim marcado por suas derrotas, entramos em um período de contrarrevolução aberta e crescente.
Um momento importante neste cenário de rebeliões foram as manifestações no Brasil, de junho de 2013 até o final da Copa do Mundo de 2014. Lamentavelmente, as rebeliões de junho não tiveram desdobramentos políticos radicais, mas ao contrário; as direitas conseguiram de certo modo canalizar o descontentamento de um setor conservador de classe média contra a tragédia que marcava aquele momento do governo Dilma.
Após as eleições de 2014, as medidas tomadas pelo governo já no início de 2015, em especial a direção do ajuste fiscal, selaram este período que chegou ao tenebroso ano de 2016. Um ano em que um governo legalmente eleito foi deposto. Independentemente da análise crítica que possamos fazer do governo Dilma (e minha análise é muito crítica), não paira dúvida de que ela sofreu um golpe de tipo parlamentar e institucional e sua queda foi arquitetada pelo presidente da Câmara – que só foi cassado depois, ou seja, só perdeu seu mandato depois de ter comandado com mão de ferro o processo de impeachment.
No presente momento, vemos o agravamento de uma crise profunda que teve, talvez, seu ponto culminante no plano institucional. No final de ano vimos o Senado entrar em choque com o Poder Judiciário, enquanto o governo Temer não conseguia fugir da sua crise de origem, um governo verdadeiramente terceirizado e formado pelo pior da oligarquia brasileira das últimas décadas. Que foi imposto para eliminar de vez a política lulista da conciliação.
O resultado é a situação atual do governo Temer, que na mesma proporção da sua ilegitimidade e perda completa de apoio – mais de 63% manifestaram em pesquisas de opinião pública a desaprovação ao governo –, vem desencadeando uma série de contrarreformas, na economia e na legislação social protetora do trabalho, que nos aproxima a uma regressão profunda, uma espécie de retorno à escravidão do trabalho no Brasil, ainda que uma escravidão moderna.
Este pacote da reforma trabalhista, por exemplo, junto com a proposta de destroçamento da previdência, acaba mostrando que o governo tenta superar a crise da sua completa falta de legitimidade na medida em que se agarra no colo das classes dominantes para fazer tudo o que essas classes não estavam conseguindo fazer na intensidade que queriam. Por isso o caracterizo como um governo terceirizado. Se os governos Lula e Dilma fizeram muitas concessões às classes dominantes, o que agora está evidente, elas, em um contexto de crise, querem ainda mais. Agora chegou a hora da devastação, em que todos os desejos desta classe devem ser atendidos.
E a hora da devastação impõe um governo terceirizado. Terceirizado para destroçar tudo o que foi conquistado nos últimos 60 ou 70 anos no campo das relações sociais de trabalho, das leis trabalhistas, dos avanços sindicais, e assim por diante; 2016 marcou o coroamento deste processo.
O trágico é que há uma crise econômica, social, política e institucional. E a simultaneidade desses quatro elementos críticos acaba fazendo com que um elemento retroalimente o outro, e sua consequência mais brutal é uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras desempregados. O IBGE fala em 12 milhões, 11,8% da População Economicamente Ativa, mas esses, sabemos, são dados inferiores aos dados reais. Se olharmos para o desemprego por desalento dá mais de 5%, se olharmos ainda o subemprego temos mais uma outra parcela imensa.
Em uma volta hoje pelo centro de São Paulo, pelo Rio de Janeiro, Porto Alegre e pelas grandes capitais do Nordeste, é possível vermos imagens que assemelham o Brasil à Índia. Tendemos para um arruinamento social de profunda dimensão se não houver um processo de revolta e rebelião popular. No Brasil tudo é tardio e acentuado. Aqui a farsa, a tragédia e a comédia se misturam, e o resultado desta trípode nefasta é jogado pra cima da classe trabalhadora. A única classe que não é responsável pela crise é aquela que deve pagar em sua totalidade pelo ônus da crise. Enquanto isso uma junta financeira hegemônica que agrega grandes setores do capital, sob hegemonia das finanças, enfeixa, comanda e impulsiona essa verdadeira contrarrevolução preventiva, que para o mundo do trabalho representa um quadro de devastação total.
É o quadro em que nós nos vemos na virada de 2016 para 2017. Por isso que iniciei dizendo que 2016 era o ano que não deveria ter existido.
Correio da Cidadania: Como avalia todas as tentativas de reorganização da economia brasileira empreendidas, em especial a partir da entrada em cena de Henrique Meirelles?
Ricardo Antunes: Há um ajuste fiscal devastador que poderia se resumir em alguns pontos. Primeiro: o superávit primário tem de ser preservado a qualquer custo para garantir os juros da dívida pública, mesmo que submeta o país a chafurdar no volume morto do pântano, onde estamos hoje, enquanto os bancos continuam ganhando muito dinheiro.
Segundo ponto: há uma queima profunda da atividade produtiva, para haver, em um segundo momento, uma concentração maior de capitais daqueles setores capitalistas que vão incorporar outros mais fragilizados, aumentando um processo de concentração de renda em um cenário de divisão internacional do trabalho em que o Brasil apresenta traços de regressão “neocolonial”.
Digo isto de forma metafórica, mas o país que Lula e Dilma acreditavam como o país do milagre, do agronegócio, das commodities etc., a imaginar que caminhávamos para o paraíso, colapsou. O que temos hoje é uma situação de regressão periférica e com um governo como este do Temer, em que os limites mínimos de exploração do trabalho – e é disto que se trata – estão sendo impostos cruelmente. Adentramos, portanto, numa era de exploração e superexploração ilimitada da classe trabalhadora brasileira.
Já citei algumas vezes em artigos e entrevistas que quando conheci a Índia, em 2014, o primeiro-ministro indiano dizia o seguinte: “a China celebrizou-se pelo made in China; tudo o que se compra no mundo hoje é produzido na China; a Índia deve celebrizar-se pelo make in India, produza na Índia”. Qual é o “discreto charme da burguesia indiana”, para fazer um paralelo com o Buñuel, brilhante cineasta espanhol? O discreto charme da burguesia indiana é que a classe trabalhadora tem um nível de exploração e superexploração do trabalho muito além de todos os limites.
O Brasil da era Temer é, novamente, a Belíndia: uma burguesia com padrão belga e uma classe trabalhadora que caminha de modo célere para o cenário indiano. Um lugar onde a massa marginalizada, precarizada e informal é completa. Mas é importante dizer também que há poucos meses a Índia teve uma greve com 180 milhões de trabalhadores envolvidos. E assim como a China (e o Brasil), é um país imenso e continental. Há resistência.
Correio da Cidadania: O que falar deste quadro para o campo do trabalho, considerando esse “liberou geral” que se tenta emplacar?
Ricardo Antunes: É imperioso que a luta de confrontação social ao governo Temer ganhe mais vitalidade agora, já que neste momento esta luta não gira mais em torno de evitar ou reverter o impeachment, mas combater o governo Temer porque ele está destruindo questões vitais da classe trabalhadora brasileira no pouco que ela conseguiu conquistar nos últimos 60 ou 70 anos. Esse é o tamanho da tragédia em que estamos envolvidos.
E no plano da economia, a proposta fundamental é: privatizar tudo o que não foi privatizado, financeirizar tudo que se puder e impor a corrosão do trabalho em todos os níveis, plano e dimensões. E são todas imposições da classe dominante sob hegemonia do mundo financeiro. O mundo financeiro não pode prescindir do mundo do trabalho. Não existe só capital fictício. O mundo financeiro é o capital fictício, mas não só isso. É também – e decisivamente – o capital da finança comandando a lógica da produção e da totalidade do mundo negocial.
Dou um exemplo elementar: quando o trabalhador(a) vai comprar nas Casas Bahia, a loja prefere vender não à vista, mas a prestação, porque aí ela surrupia duplamente o salário dos trabalhadores: no preço do produto que já traz embutido seu lucro e também no quanto o comprador e sua família vão pagar de juros embutidos na medida em que o produto é pago à prestação. Isso exemplifica de modo cabal o que é o comando financeiro no mundo produtivo. O uso estimulado e compulsivo do cartão de crédito, ou seja, do dinheiro simbólico, faz com que hoje um contingente enorme da classe trabalhadora brasileira esteja endividada.
E aqui temos um segundo elemento central da conjuntura atual: impor um programa que não tem legitimidade das urnas, mas é um embuste, um verdadeiro estelionato parlamentar e midiático. Por isso estamos presenciando o segundo golpe do governo Temer. Uma espécie de 18 Brumário do pequeno e ardiloso Michel!
Correio da Cidadania: Quais as expectativas para 2017, tanto na economia como no mundo do trabalho e emprego, em meio a uma nova onda de barbárie nos presídios?
Ricardo Antunes: A primeira coisa importante é que o governo Temer, dada a sua ilegitimidade congênita, vai ser devastado pela Lava Jato. É muito difícil, a esta altura, que a Lava Jato seja truncada. Com delações que chegam ao núcleo atual do Palácio do Planalto. E não são apenas os ministros diretos que conduzem politicamente o governo Temer estão envolvidos, não só o alto comando da Câmara, do Senado e uma massa imensa de parlamentares que se encontra envolvida, mas o próprio Temer – esta figura tíbia – aparece em várias delações.
Ele dirigiu o PMDB durante um longo período, inclusive quando estava na vice-presidência. E naturalmente a Lava Jato chegou ao PMDB do Rio de Janeiro com o ex-governador Cabral preso, ao PMDB de Alagoas com o Calheiros; todo o PMDB – este Partido do Pântano Brasileiro – está comprometido. E, por certo, Temer está direta e indiretamente envolvido, segundo o que a imprensa diz.
Temos, assim, na realidade da crise brasileira um processo dúplice: há judicialização da política e politização do judiciário, que se expressa, por exemplo, nesta estranha “incapacidade” de o judiciário chegar até o PSDB. Quem é o Santo? O codinome é atribuído na imprensa escrita e falada ao governador de São Paulo. Onde estão as tantas denúncias contra Aécio Neves? Onde estão os sutis malabarismos feitos por FHC, desde o amplo processo de privatização em seu governo até o pagamento no exterior de empresas que detinham os controles dos free shops de aeroportos durante seu governo. Tudo isso ainda não chegou pra valer no PSDB.
Se o Temer mostra essa fragilidade – pois o segundo partido a ser devastado pela Lava Jato é o PMDB – isso atinge a medula do governo. E abre um 2017 muito incerto, ou seja, é difícil imaginar que esse governo sobreviva até 2018. Ele mesmo disse que nunca pensou na renúncia. Mas se disse é porque está pensando na renúncia.
Correio da Cidadania: Como avalia os erros do governo Dilma e a atuação dos protagonistas palacianos em sua queda? Como essa correlação de forças pode afetar o governo Temer?
Ricardo Antunes: Fui crítico duro do governo Dilma, pois na minha opinião foi um governo indefensável. Mas a forma como o caiu, também na minha opinião, foi um golpe. Ou seja, não me encaixo na tese de que quem acredita que houve golpe é petista. Vejo duas coisas diferentes. Quando se depõe um presidente da República forjando um processo com aparência de legalidade, mas inescrupuloso em sua essência, não pode ser algo positivo para o país. Ainda que o governo do PT, em seu conjunto, tenha sido uma derrota para a classe trabalhadora, pois acreditou na conciliação entre entes sociais e políticos inconciliáveis.
Como pode o Eduardo Cunha, afundado no pântano até o pescoço, ter legitimidade respaldada pelo STF para comandar um processo de impeachment e logo depois ter sido posto fora pelo mesmo tribunal? O fato de ele ter sido posto fora mostra que o próprio processo de impeachment teria que ser revisto, cancelado e refeito. Política, jurídica e eticamente falando, está comprometido. Em outras palavras, se há suspeita de que tem um “bandido” tomando decisões definitivas e fundamentais, comprovada a bandidagem, todas essas medidas devem ser revistas.
Soma-se a isso um parlamento sem a menor legitimidade para escolher, e há uma possibilidade do Temer cair ou renunciar em breve. O próprio STF já devia ter avaliado. Afinal, já que as contas da campanha estão comprometidas, o Temer era a cauda do governo Dilma. Por aí vemos a politização do judiciário.
Há um processo complexo e aparentemente contraditório no Brasil: há uma judicialização da política em que tudo que é decisão política tem de passar pelo judiciário; e há também uma politização do judiciário. O judiciário tem se arvorado em desenhar legalmente o país e esta não é sua função. Já imaginou se o país for desenhado segundo as referências que existem na cabeça do judiciário? Estamos aniquilados. Seria um ornitorrinco: braço de um, cabeça de outro, perna de um terceiro…
Correio da Cidadania: Como imagina que este governo ficará na história?
Ricardo Antunes: O governo de Michel Temer está selado, é questão de tempo, mas seu futuro é estar na lata de lixo da história. Isso pode durar mais tempo do que muitos de nós gostaríamos. Ele não se apercebeu plenamente, mas olhando ao redor vê o rabo de todo mundo queimado pela Lava Jato. E não adianta fazer o que os capitais exigem, para açulá-los, porque os capitais são destrutivos. Feito o “jogo sujo”, destroçados os direitos sociais e do trabalho, privatizado o que ainda resta, o governo terceirizado de Temer será alijado, como Cunha foi ontem, o PT anteontem e Renan Calheiros será amanhã.
Contratado para fazer o jogo mais vil, que é desmontar tudo o que a classe trabalhadora criou no século 20, é imprevisível a forma como ele vai sair, apenas sabemos que ele é sério candidato à lata de lixo da história.
Porém, é sempre bom lembrar: o Temer é uma criação do lulismo, é um tíbio que não tinha nenhuma influência nacional e foi laçado pelo Lula para ser o vice da Dilma. Mais uma das tragédias do lulismo e sua política de conciliação de classes, do admirável mundo novo em que capital, trabalho, direita, esquerda, centro estariam todos irmanados, em um projeto maravilhoso em que o Brasil chegaria a ser a quarta economia mundial. A política de conciliação de classes finalmente encontrou seu cemitério político.
Correio da Cidadania: Quais saídas poderiam ser tentadas, para além da radicalização das políticas neoliberais? Que desafios estão colocados?
Ricardo Antunes: Se pegarmos a Reforma da Previdência, precisa ter 65 anos de idade e 49 anos ininterruptos de previdência. Portanto, você tem de começar a trabalhar com 16 anos e não pode ficar um dia desempregado para se aposentar com 65. Mas como o cotidiano hoje é o do desemprego, podemos dizer que não haverá mais o sistema de previdência pública no Brasil. Aqueles que conseguirem irão buscar uma previdência privada e os pobres estão aniquilados. Tem cidades no país que a idade média de vida está em torno de 66 anos. E como se não bastasse, o governo Temer está deslanchando a destruição bombástica da legislação trabalhista, ao ampliar o prazo de tempo de contrato temporário que poderá passar de três para seis meses ou mais.
Há um destroçamento das relações de trabalho assalariado de tal modo que temos no Brasil hoje um desemprego real maior que 12 milhões de pessoas. A situação brasileira é tão trágica que até na informalidade está tendo desemprego. A informalidade tende a se expandir nas crises, mas dada sua profundidade começa a retroceder, pois já estamos vendo diminuição do chamado “trabalho autônomo”. Temos também uma massa de terceirizados que são burlados cotidianamente por este sistema. O “empreendedorismo” é um mito atingido por muito poucos – a grande maioria só perde o pouco que conseguiu criar com seu FGTS – e tudo isso tende a se tornar “coisa do passado”. Quer dizer, no passado recente a informalidade crescia no período de desemprego, exatamente para driblar esta condição. Agora ela também está sofrendo uma retração; há, pasmem, aumento do desemprego até na informalidade!
No campo das lutas sociais, sindicais e políticas de esquerda não são poucos os desafios. Há desde logo um problema quase congênito, que é a dificuldade que os movimentos sociais, os partidos de esquerda e os sindicatos têm. Primeiro, em ter uma posição mais unitária naquilo que é fundamental. Segundo: há uma certa ilusão institucional e parlamentar de esquerda no Brasil.
Mesmo agrupamentos e partidos à esquerda do PT não conseguem calibrar a ação sem ter a eleição e o parlamento como prioridade. A população está exaurida e faz uma análise muito crítica da institucionalidade. Por exemplo, que instituição brasileira se salva hoje? Parlamento? Nota zero! Executivo? Nota zero! Judiciário? Zero! Portanto, a coisa está complicada.
Os partidos à esquerda do PT têm mostrado dificuldades em perceber que o eixo da luta social e política é extraparlamentar. Não é antiparlamentar, não se trata de negar o parlamento, mas de não depender dele e de fazer dele a prioridade da ação dos partidos de esquerda. Estes parecem ter dificuldades de perceber que não devem lutar no ringue do capital. A institucionalidade é um espaço do capital e não deveria ser a nossa prioridade. A prioridade das esquerdas deve estar canalizada para a luta extrainstitucional, a luta social, para a luta política das maiorias, fora do espaço da institucionalidade onde tudo parece mudar para nada efetivamente se transformar.
Por exemplo, movimentos sociais como o MST, o MTST e o Movimento Passe Livre sinalizam que existe uma rebelião das periferias, da população rural empobrecida e explorada, no dia a dia da vida cotidiana. Uma rebelião da classe trabalhadora precarizada, da juventude que trabalha e acreditou num mito de que tinha de estudar e trabalhar para ter bons empregos e, assim, estudou em escolas privadas desprovidas do mínimo, que na verdade são mercados de ensino. Hoje essa juventude não tem emprego e está endividada, pagando as faculdades privadas. Ou seja, não sobrou nada do projeto. Não tem emprego enquanto se imaginava que trabalhando e se qualificando teriam empregos melhores. E agora, como se faz e se redesenha este cenário?
E quais são as saídas? Essas medidas que o governo está tomando tocam em questões vitais. Jornada diária de 12 horas é uma brutalidade. Nossa pesquisa apresentada nos volumes de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil mostra que existem trabalhadores(as) do etanol e da cana de açúcar que não ganham mais por jornada de 8 horas, mas por produção. Com isto, reduzem o tempo de alimentação para o mínimo. Muitos desses trabalhadores que vêm de outras regiões do país e migram sem suas famílias também trabalham nos seus dias de folga para poderem pegar um pouco mais de grana. Com uma década de trabalho nesse ritmo, eles estão destroçados. Eles não vão poder se aposentar, pois morrem.
Estas questões literalmente vitais, como previdência, jornada diária de trabalho, descanso semanal, férias e assim por diante tocam o cotidiano da classe trabalhadora. Não é por acaso que o governo Temer já tem índices de impopularidade maiores do que a Dilma quando sofreu o impeachment. A população percebe que esse governo é, portanto, ainda mais nefasto.
Qual é o desafio maior? Temos sindicatos, temos movimentos sociais e partidos. Temos questões vitais. Além disso, a ação de confrontação não pode ser dentro dos marcos da institucionalidade. Este é um jogo perdido. Só é possível ter representação parlamentar se houver uma base social que garanta tal representação. Não adianta ter uma bancada numerosa no parlamento sem força social real, de base e pela base.
O parlamento é uma máquina poderosa e só consegue resistir lá dentro quem tem muito vínculo com as lutas sociais. É por isso que lá está cheio de ex-lutadores sociais. É verdade que há gente boa e lutadora, mas são exceção. Tem muito ex-lutador social que aprende “a boa vida parlamentar”. É preciso criar uma nova geração de lutadores sociais nos movimentos, na periferia, nos sindicatos e nos partidos. Essa nova geração precisa estar nas ruas.
Correio da Cidadania: E como as organizações da sociedade e dos trabalhadores devem lidar com essas questões vitais que estão em jogo em um momento completamente adverso?
Ricardo Antunes: Estamos numa onda de contraofensiva burguesa muito poderosa. Mas não eterna. É uma contrarrevolução preventiva, para dar continuidade a uma terceira fase do longo processo neoliberal. Começou com o neoliberalismo de FHC nos anos 90, sofreu a variante alternativa do social-liberalismo de Lula e Dilma, e agora passará pela megadevastação ultraneoliberal. Mas isso tem fôlego curto.
A população percebeu o golpe dado na Dilma, mas ao mesmo tempo olhava e se perguntava: “mas por que a Dilma ganhou a eleição em 2014 dizendo que não iria destroçar nossos direitos e assim que foi eleita reviu o seguro-desemprego e tudo aquilo que prometeu garantir?” E ainda, na sequência, colocou o Levy lá para controlar o “botim anômalo”, ou seja, o sistema da dívida pública que garante a hegemonia do sistema financeiro que dita a política dos governos?
Vamos retomar uma era de muitas rebeliões sociais – e sem hierarquias. Não tem mais hierarquia. Acabaram as lideranças instituídas pela ordem. Acabou aquela coisa da liderança “eterna”. Ela precisa ser reinventada. A luta social, sindical e política na profunda imbricação entre si precisa se reinventar, fortalecendo suas tendências pela base, fora dos marcos da institucionalidade dominante.
E há um espaço real. A chamada Nova República acabou! E ela começou com o Sarney. É tão grotesca que começou como uma Velha República. Imagina se esse parlamento for indicar um presidente que vá suceder o Temer? As eleições gerais tornam-se um imperativo social e político inadiável. Se o Temer cai, não é possível aceitar que esse parlamento que já perdeu – para lembrar o Marx quando falava do parlamento francês – o mínimo de credibilidade que ainda tinha junto à opinião pública. Perdeu toda a credibilidade, já está no volume morto, no fundo do pântano. Ou seja, não é possível que escolham um “Temer 2” caso o Temer perca o mandato. É vital que, neste caso, tenhamos novas eleições gerais e, de preferência, que elas ocorram em paralelo a um processo de fortes rebeliões populares em todo o Brasil.
Por sua vez, a classe dominante acha que já ganhou o jogo porque o parlamento está no seu colo! Totalmente a seu favor. Também é difícil para a população pobre entender o que está acontecendo no parlamento, porque a mídia diz que a Reforma da Previdência e a Trabalhista são boas. Nenhum órgão da grande mídia mostra quanto do produto interno bruto brasileiro é destinado para pagar os juros da dívida pública. Isto é intocável. E isso é a expressão viva do hegemonismo político, ideológico e valorativo do mundo financeiro.
Não mostram que a sangria nossa é para pagar os juros da dívida pública. No passado eram os juros da dívida externa, agora são os juros altos da dívida interna. É claro que estamos num período difícil e de contrarrevolução, mas este cenário não é eterno, não tem vida longa. Tudo hoje é mais volátil do que ontem. O que parece sólido também derrete. O governo não tem legitimidade, um outro governo eleito pela via indireta também não terá legitimidade e nós vamos entrar em 2018 no meio da turbulência. 2017 e 2018 apresentarão um quadro continuado de terremoto, maremoto, tsunami e furacão, um atrás do outro, econômico, social e político.
Correio da Cidadania: É possível haver em 2017 um clima de “diretas já”, com uma forte onda popular no sentido de se promoverem novas eleições?
Ricardo Antunes: Eu não sei é possível esse clima de diretas já. Temos hoje uma coisa que não tínhamos na época: as direitas raivosas e organizadas. A possibilidade de um movimento amplo e unitário – como o das Diretas Já – talvez seja difícil, pois teremos mais confrontação social aberta entre as classes e seus antagonismos.
Isso porque adentramos numa era de luta de classes aberta e a única certeza que temos é que o tempo lulista de conciliação acabou. Está no cemitério político. Agora, como Florestan falava, é a era da contrarrevolução. Essa é a engenharia política da nossa classe dominante. Vamos entrar em 2017 com esse cenário de confrontação acirrada. As lutas sociais, os movimentos, partidos e sindicatos de esquerda (que não foram partícipes da política de conciliação de classes) têm de retomar a luta e ação pelas questões vitais.
E quais são elas? Desde logo, uma luta incessante pelo direito ao trabalho, pelo salário digno, pela preservação de todos os direitos do trabalho. Por um trabalho com um mínimo de dignidade e não de destruição.
É ou não uma questão vital hoje a luta contra a destruição da natureza? Quando houve, há um ano, a tragédia da Samarco em Mariana-MG, estava sendo votada no parlamento uma flexibilização ainda maior do código ambiental, que controla a atividade das mineradoras. Este é outro ponto absolutamente vital.
Outra questão vital: há um movimento hoje da burguesia rural, do agronegócio e de seu governo terceirizado e de seu parlamento degradado para acabar com as terras indígenas, pelas comunidades indígenas. E é por isso que existe uma luta muito importante das comunidades indígenas pela preservação de suas reservas.
E mais: nós estamos hoje num momento em que a xenofobia, o sexismo e a homofobia estão ressurgindo fortemente. É preciso resgatar uma luta pela igualdade substantiva em todas as dimensões efetivamente humanas, de gênero, de etnia e raça. Ainda temos que discutir as formas de propriedade. A propriedade intelectual não pode estar à mercê das grandes corporações. Não é possível que uma grande corporação venha aqui e se torne dona das propriedades intelectuais indígenas, como muitas vezes ocorre.
Temos aí quatro ou cinco pontos vitais. Por que o MTST é forte? Porque luta por moradia, uma questão vital. O trabalhador(a) sabe que, sem um teto, a condição de vida piora muito, como estamos vendo aos milhares nas ruas de São Paulo. O mesmo do MPL em relação ao transporte, outra questão vital e cada ano mais cara e de difícil acesso. O MST faz o mesmo quando luta pela terra, pelo fim dos transgênicos etc. etc. etc.
Em termos de resistência, a esquerda que foi hegemônica e estava até o ano passado no poder não tem mais nenhuma “autoridade política” para dizer que ainda é a esquerda dominante. Acabou. Tudo tem que ser reconstituído a partir de um caminho fora do relógio e do ponteiro da institucionalidade. É o ponteiro da extrainstitucionalidade que deve dizer para onde nós vamos.
*Gabriel Brito e Raphael Sanz são jornalistas do Correio da Cidadania.
Fonte: Correio da Cidadania
Imagem tomada de: MetalRevista
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