Reverter ‘sequestro’ da canarinho é difícil, mas paixão pela Copa resiste no Brasil, dizem analistas

Após eleições com forte tensão, as atenções no Brasil se voltam à Copa do Mundo. Com a camisa da Seleção Brasileira atrelada à política, há dúvidas sobre o entusiasmo da população com o torneio. A Sputnik Brasil foi às ruas conferir a preparação da torcida e ouviu pesquisadores para discutir a relação entre esporte e política.

Diversos pensadores já tentaram explicar a paixão brasileira pelo futebol. Nelson Rodrigues cunhou o termo “pátria de chuteiras” para sintetizar essa relação com o esporte. José Miguel Wisnik, em “Veneno Remédio”, colocou o futebol na discussão sobre o que é o Brasil. Luiz Antônio Simas, em “Maracanã, quando a cidade era terreiro”, descreveu o estádio como a materialização do sonho e do mito da cordialidade brasileira. Já Hélio Santos usa a excelência da Seleção como prova de que o país pode dar certo se abraçar a diversidade.
A inegável relação do país com o futebol está intrinsecamente ligada à história de sucesso da Seleção Brasileira na Copa do Mundo. As conquistas e o bom desempenho no esporte com times com as caras e as cores do país ajudaram o Brasil a ser conhecido e admirado mundo afora.

Nos últimos anos, porém, a camisa da Seleção Brasileira foi associada a eleitores de direita, mais recentemente com apoiadores do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), que, em outubro, perdeu as eleições presidenciais para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro, enfeitada para a Copa do Mundo de 2022, 10 de novembro de 2022. Foto: Sputnik / Letícia Veríssimo
Para discutir a relação entre política, futebol e comportamento, a Sputnik Brasil conversou com o historiador Luiz Antônio Simas e o sociólogo Ronaldo Helal, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, foi à rua Pereira Nunes, logradouro carioca onde a tradição de pintar o asfalto e pendurar bandeiras do Brasil para a Copa do Mundo nunca sai de moda.

Uso político da seleção e de seus símbolos já ocorreu o Brasil

Helal, que coordena o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme), ressalta que historicamente a Seleção Brasileira esteve atrelada ao projeto de nação no Brasil, mas essa relação entrou em um processo de enfraquecimento a partir da década de 1980 devido a fatores como a globalização e a perda de identificação com o time — cada vez mais composto por jogadores que atuam fora do país. Segundo o pesquisador, com ou sem a polarização política, o distanciamento em relação à Seleção já estava acontecendo.

“Houve também na década de 1970 uma tentativa de se apropriar da imagem da seleção em uma tentativa de propaganda do regime militar — só que não foi tão exitosa […]. De 2013 para cá, principalmente a partir de 2016, com o impeachment [da ex-presidente Dilma Roussef], a camisa da seleção e o símbolo da pátria — a bandeira — começaram a ser usados por grupos conservadores e, mais recentemente, por grupos de extrema-direita”, recorda Helal em entrevista ao podcast Jabuticaba Sem Caroço, da Sputnik Brasil.

Para o pesquisador, a Copa do Mundo pode ser uma oportunidade de reverter esse atrelamento dos símbolos da Seleção Brasileira e do país a grupos de extrema-direita. Helal afirma, no entanto, que isso dependerá de vontade política.
“Acho que vai depender muito da liderança do Lula e do [vice-presidente eleito, Geraldo] Alckmin de pedirem às pessoas para que torçam e vistam a camisa da Seleção. Se isso acontecer, acho que vai haver uma certa diminuição desse sequestro de grupos de extrema-direita, de só eles poderem usar a camisa da Seleção”, diz o pesquisador da UERJ.

Relação de efusão com a Copa pode ter ficado no passado

Questionado sobre a sobrevivência de tradições brasileiras relacionadas à Copa do Mundo, como enfeitar as ruas com as cores do país, o escritor Luiz Antônio Simas demonstra pessimismo e aponta que a paixão pela Seleção Brasileira como era exercida em mundiais anteriores não deve mais retornar.
“Quando a gente, por exemplo, na Copa de 1982, na Copa de 1978, algumas Copas anteriores, você construía sociabilidade em cima do ato de enfeitar a rua. Então era uma tradição da cidade, mas que era uma tradição da cidade inteira. Inclusive, por conta de uma certa disputa — de qual era a rua mais enfeitada. Havia uma efusão ligada à Copa do Mundo que era muito intensa”, ressalta o pesquisador em entrevista ao podcast Jabuticaba Sem Caroço, da Sputnik Brasil.
O escritor ressalta que algumas ruas ainda devem manter a tradição, mas que paixão generalizada já não é a mesma. Entre os fatores para essa situação, Simas aponta o ineditismo de uma Copa do Mundo ser realizada logo após eleições presidenciais acirradas e também o “sequestro” da camisa da Seleção Brasileira pela extrema-direita.
“A própria Seleção Brasileira, ainda que a gente tenha carinho por muito jogadores, hoje é uma Seleção formada basicamente por jogadores que jogam fora do Brasil. Então aquela ligação mais íntima com jogadores que você via todo fim de semana jogando no seu clube não existe. Acho até que teremos movimentação — essa é minha expectativa. E acho até que as eleições esfriaram um pouco o clima do pré-Copa. Vamos ver como vai ser daqui para a frente”, avalia.
A rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro, enfeitada para a Copa do Mundo de 2022, 10 de novembro de 2022. Foto: Sputnik / Letícia Veríssimo
Simas acredita que a recuperação de símbolos como a camisa da Seleção Brasileira precisa ser vista no longo prazo, tendo em vista que o futebol tem uma relação intrínseca com a formação histórica da identidade nacional no Brasil. O pesquisador salienta que a própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estaria preocupada com a associação da camisa da Seleção com a “divisão do país”.
“Acho até que vamos ter tentativas de ressignificar a camisa, mas é um processo que vai ser complicado. Sobretudo porque estamos vivendo um clima pós-eleitoral tenso, manifestações da extrema-direita pedindo intervenção militar usando, mais uma vez, a camisa da Seleção Brasileira. Vai ser difícil a gente conseguir ressignificar. A curto prazo, acho difícil”, afirma.

Grupo mantém viva a tradição de pintar ruas no Rio

Como apontam os pesquisadores, até recentemente, a Copa do Mundo era um momento de festa, uma espécie de carnaval a cada quatro anos que incluía enfeitar e pintar ruas dos bairros no Brasil — uma memória carregada por muitos brasileiros. Apesar de perder espaço nos últimos anos, essa tradição ainda está presente e viva.
A Sputnik Brasil foi a uma rua em que essa atividade se mantém há décadas através do esforço e da união de vizinhos apaixonados pela Copa do Mundo e pelo próprio ato de ornamentar sua rua em homenagem à Seleção Brasileira — um verde e amarelo que nos últimos anos foi politizado como nunca.
Celso Mendes é um carioca de 44 anos, morador da Vila Isabel, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Há mais de 30 anos, o empresário lidera um grupo de vizinhos para pintar e enfeitar a rua Pereira Nunes de verde e amarelo. Para Mendes, futebol e política não se misturam.
“A nossa tradição vem desde 1982. São 40 anos. Independente da política, ou não, a gente vai manter a tradição”, afirma o organizador trajado com uma camiseta verde e amarela da Galera da Pereira Nunes, grupo responsável pela ornamentação da rua.
“Passou gente aqui gritando o nome de um candidato, gritando de outro. Para a gente é só futebol, é só Copa do Mundo. Em política cada um tem seu voto, vai lá na urna, decide o seu. Para a gente não influenciou em nada”, conta.
O professor Júlio Souza Reis Júnior, de 36 anos, que também faz parte da Galera da Pereira Nunes, lamenta a polarização política, mas ressalta que o foco dos torcedores é a Copa do Mundo.
“A verdade é que, infelizmente, nessas eleições houve uma polarização muito grande entre dois candidatos, mas esse não foi o foco da rua. O foco da rua foi fazer uma grande festa e torcer para o nosso país, que é o Brasil. Independente de questões políticas, o ideal que a gente fez aqui foi para enfeitar a rua em prol do nosso hexacampeonato, que eu espero que aconteça”, afirma sorrindo.
O professor Júlio Souza Reis Júnior na rua Pereira Nunes, no Rio de Janeiro, Brasil, 10 de novembro de 2022. Foto: Sputnik / Solon Neto
A famosa ornamentação garante holofotes e atenção da mídia para a rua, que tem murais de ponta a ponta com homenagens que vão desde jogadores ícones da seleção, como Pelé e Garrincha, a figuras famosas entre fãs de futebol na Internet, como o influencer Casimiro.
Entre os entusiastas da pintura da rua, estão também jovens que pretendem manter a tradição local. É o caso do estudante Bruno Moreira Nobre de Almeida, de 18 anos. “Se eu estou aqui animado para a Copa do Mundo é por conta da ornamentação da rua”, afirma.
O jovem conta que chegou a ter uma discussão sobre política quando divulgou em grupo de faculdade um concurso no qual a Pereira Nunes concorre para ser a rua mais bem enfeitada do Brasil para a Copa do Mundo. Segundo ele, houve questionamentos relacionando a pintura da rua com política.

“Eu falei, olha só, a gente não está apoiando o Brasil politicamente, a gente está contra… a gente não está nem ligando para opinião política, o que importa é unir as pessoas. O que importa é a gente estar juntos e unidos, sabe?”, conta o estudante, que cresceu vendo a rua ser enfeitada em outros mundiais e já está em sua segunda Copa como organizador da ornamentação. “Estou aqui ajudando na Copa desde que eu nasci, praticamente”.

Celso Mendes, o membro mais velho da Galera da Pereira Nunes, conta que, desde 1990, quando era criança, acompanha o esforço para enfeitar rua, e organiza a tradição desde 1994. “Eu vi que esse elo ia se quebrar, de tradição, e comecei a administrar — e administro até hoje”, explica.
Mendes admite que o grupo mantém a tradição de pintar a rua também para vencer concursos, mas que o esforço busca ainda “unir o bairro” e fazer com que “as crianças não percam a essência de brincar na rua”.
“Eu sou apaixonado por isso, deixo de trabalhar dois, três meses, me organizo financeiramente para que a gente possa estar aqui na rua e fazer esse trabalho lindo. O mundo todo vem aqui, vem conhecer nosso trabalho. Tem coisa melhor que o mundo reconhecer seu trabalho? Se o morador já reconhece, já está orgulhoso, imagina o mundo vir aqui reconhecer isso”, conclui.

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