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Entre a cruz e a espada
Por Evânia Reich, para Desacato.info.
Na semana passada comecei finalmente a ler alguns artigos filosóficos sobre a pandemia causada pelo vírus Covid-19 que assola o mundo inteiro. Escrevo “finalmente” porque não tinha sido fácil fazer outra coisa senão acompanhar a mídia sobre o inimigo comum que assombra o mundo. Há alguns dias venho tentado evitar a sobrecarga de notícias que nos chegam em nossos aparelhinhos eletrônicos e na grande tela da TV. Um gesto para preservar a saúde mental. Não é de maneira nenhuma uma tentativa de ficar alienada sobre o que ocorre no mundo, mas uma tentativa de refletir a respeito da questão sem se deixar influenciar pela tabela dos números divulgados dos contaminados e mortos pelo mundo afora.
Saí, então, tanto quanto possível, da “poeira” incessante de informação, para ler o que os filósofos estão pensando sobre a pandemia, o vírus, as ações deflagradas no mundo e suas consequências. Da leitura destes textos filosóficos, um me chamou a atenção. E com ele chego a conclusão que vivemos em um momento “entre a cruz e a espada”.
Byung-Chul Han, filósofo da Coreia do Sul ligado à universidade de artes de Berlin escreve um artigo intitulado “A emergência viral e o mundo de amanhã”, publicado no livro “Sopa de Wuran”, uma coletânea de ensaios de diversos filósofos do mundo inteiro. Chul Han começa seu artigo escrevendo que enquanto na Ásia, lugares como Hong Kong e Tailândia possuem respectivamente 193 e 108 casos no dia 20 de março, por exemplo, na Europa, países como Alemanha e Espanha neste mesmo dia já contavam com 15.320 mil e 19.980 mil casos. Por que esta disparidade tão grande se a Ásia foi o berço da pandemia? O filósofo se pergunta: “que vantagens oferece o sistema da Ásia que demonstra eficiente para combater a pandemia”? A resposta é um açoite à liberdade. “Estados asiáticos tem uma mentalidade autoritária”. Diz o filósofo sem nenhum rodeio: as pessoas são obedientes, confiam no Estado e não tecem nenhuma crítica a esse autoritarismo imposto. O autoritarismo de países como a China passa pela vigilância constante sobre cada cidadão, sobre seus passos, suas vidas, mesmo naquilo que há de mais particular. E os chineses ainda apostam na vigilância digital. Não existe nenhuma consciência crítica sobre tal vigilância. Chul Han nos informa que a China possui um sistema de crédito social, em que cada escolha ou ação acertada que o cidadão chinês faz lhe gera pontos em um cartão de crédito. Esses pontos podem ser trocados no acesso facilitado a um empréstimo, por exemplo, ou por um visto de viagem. E assim por diante. Infringir uma norma ou cometer um desvio, ainda que banal, faz com que se perca pontos no seu cartão de crédito social. E a população se acostumou a angariar seus pontinhos. Tornou-se uma sociedade obediente sem contestar. Os críticos do sistema, obviamente, estão em débitos no famigerado cartão social.
Chul Han afirma, sem apologia ao sistema, que esta obediência cega e o sistema de vigilância digital salvaram vidas e levaram ao controle da epidemia. A China impôs vários aplicativos de vigilância do covid 19. Cada Chinês sabia em tempo real quantos infectados tinham em seu bairro, na sua rua, no seu trabalho e no perímetro em que se encontrava. Cada teste positivo era lançado no sistema, possibilitando assim que o aplicativo se renovasse a cada instante.
Talvez se meu artigo for lido, alguns dirão: que maravilha de sistema!
Com certeza não foi para isso que o filósofo coreano escreveu seu artigo, e tampouco não é a minha intenção fazer elogios ao sistema chinês. A cruz e a espada que sugere o título deste artigo quer refletir exatamente sobre a posição em que nos encontramos. Nossa liberdade está ameaçada, até mesmo a mais banal, aquela do direito de ir e vir. E essa perda é necessária para que possamos salvar vidas. Em países ocidentais democráticos o isolamento social é quase uma sugestão dos governos, alguns um pouco mais rígidos chegaram a multar as desobediências. Mas ainda assim, nada comparado com o sistema perverso da China. Sistema esse, no entanto, que deu certo no caso do covid 19? Não sabemos se foi o exagero do autoritarismo que facilitou o controle ou se foi, por exemplo, o uso de máscara em larga escala por todos os indivíduos, os únicos aliás que já usavam antes da pandemia. [É só frequentar um aeroporto internacional que veremos a utilização de máscaras somente pelos asiáticos.]
Não sabemos mesmo e nunca saberemos se foi o autoritarismo e a obediência às cegas ou se foi o uso sistemático de máscaras que levou a China e vários países asiáticos ao controle mais rápido da pandemia do que a Europa ou os EUA. Também não sabemos se realmente o sistema de saúde da Europa é tão bom quanto nós “tupiniquins” costumamos acreditar. Na França até máscara nos hospitais já estavam faltando nos primeiros dias da crise.
O fato é que sem saber o que efetivamente ajudou a China no controle da epidemia, ainda assim estamos entre a cruz e a espada. Entre a liberdade e a vida? Não. Liberdade não é algo vazio, como nos ensinou Hegel. Liberdade é algo que tem que ser compartilhado com o outro. E se a minha liberdade de ir e vir prejudica ou pode prejudicar o outro, então é bom que a revisamos. No entanto, aqui não se está falando desta liberdade, está se falando da falta extrema dela. É do autoritarismo de Estado e da vigilância permanente deste sobre seus cidadãos. É este o mal letal.
Zizek, filósofo eslováquio, conhecido pelas suas críticas pertinentes sobre o sistema capitalista, fez neste mesmo livro uma reflexão no seu artigo, dizendo que o vírus pode derrubar o capitalismo com um golpe mortal. Infelizmente acho que não consigo concordar com Zizek. Ao contrário, sigo as reflexões do filósofo asiático, segundo o qual não há revolução com o vírus. O vírus não é capaz de fazer uma revolução. Não somente o capitalismo não será destruído, como ele ainda pode se renovar. Como vem fazendo a cada crise. O que pode acontecer é que não somente teremos um capitalismo ainda mais virulento, como seremos também engolidos por Estados autoritários. Quem duvide que a China não consiga vender seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra a pandemia para o resto das democracias do Ocidente?
O vírus não somente não é capaz de revolução, como ele nos isola, nos individualiza, nos torna mais egoístas. Como repete o filósofo coreano, “o vírus não gera um sentimento coletivo forte. Por isso não podemos deixar a revolução na mão do vírus. Somos nós dotados de razão que temos que repensar e restringir o capitalismo destrutivo”.
Se realmente estamos entre a cruz e a espada, a primeira pode se chamar autoritarismo e a segunda o vírus letal, que os Estados ditos democráticos, mas neoliberais, não conseguem conter. E não conseguem conter por que lhes falta o que lá atrás se tornou o descaso total: a saúde e o bem-estar do povo. Quem brinca com fogo um dia será queimado. Mais um ditadinho popular que nos ensina claramente que a brincadeira de entregar a pasta da saúde para o sistema neoliberal um dia mostraria as suas consequências descaradamente. Talvez o maior autoritarismo já vínhamos enfrentando por esses lados de cá. Sobre o manto de sermos democráticos elegemos governos neoliberais por todos os cantos do planeta, os quais fizeram por nós as escolhas mais autoritárias que podiam ser feitas: roubaram de nós o direito à saúde pública de qualidade. Entre Gregos e Troianos difícil escolher em que lado queremos ficar.
Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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