Na queda de Decotelli há racismo de um lado e pedantismo acadêmico do outro.
Por Elissandro Santana, para Desacato.info.
Aquele que seria usado por Bolsonaro como arma para a afirmação ultrapassada do discurso da meritocracia não ficou nem uma semana no cargo, aliás, não chegou nem a tomar posse.
Sem dúvida, dentre as tantas intenções para a nomeação de Decotelli, o Presidente Dadá, opa, Bolsonaro, queria mostrar que uma pessoa negra havia vencido pela tal ideologia bizarra do mérito e não pela política de inclusão, uma de suas lutas ideológicas, mas, em meio à negativa, inclusive, de parcela de seus/suas próprios/as apoiadores/as, reacionários/as, racistas, misóginos, homofóbicos/as explícitos/as na base, abandonou o quase-doutor muito rapidamente e isso me deixa perplexo, mesmo que não devesse.
Por que tanta perplexidade de minha parte? Porque com o ministro anterior, Abraham Weintraub, também houve mentira em relação ao currículo e, mesmo assim, durou bem mais tempo do que Decotelli no cargo. Será que foi, talvez, pelo anterior ser branco e se encaixar nas diretrizes da sociedade do atraso? Damares, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, também já não teria mentiu se apresentando como mestre em direito e em educação e, no entanto, segue forte no Governo Bolsonaro? A minha perplexidade reside exatamente neste ponto, na constatação de que mentirosos que correspondem aos padrões étnico-sociais da elite duram no jogo dos tronos. Tudo isso faz com que percebamos, de uma vez por todas, que nessa sociedade do vazio e da decepção, a carne mais barata do mercado é a carne negra. Isso explica, até certo limite, por que Decotelli foi descartado em menos de uma semana.
A rapidez com que a carne foi comprada e descartada induz-nos a divagações e interrogações sobre as várias faces do nosso racismo que se retroalimenta de nossas colonialidades que teimam em resistir sem que percebamos.
Fraude, mentira e reacionarismos devem ser combatidos, sempre, mas, de ontem para hoje, vi na alegria de alguns, e me refiro a parte da esquerda, uma comemoração com um sabor de deboche mais em relação à queda do pseudo-doutor na Argentina e com suposto pós-doutorado na Alemanha pelo fato do ex-ministro não possuir os títulos do que pela mentira em si.
A mentira também foi fruto de argumentação como rechaço ao então ministro, mas prevaleceu o reproche à ausência de títulos a partir de memes, charges e análises que foram feitas. Nessa preocupação em demasia com a titulação há vestígios coloniais de pedantismo acadêmico, outro mal que também deve ser combatido e me posiciono nesta perspectiva porque em muitas críticas foi possível captar o culto aos títulos, como se a titulação de doutor fosse o requisito mais importante para a condução com eficiência e eficácia do Ministério voltado para os processos de educação no país. Reitero que nas muitas críticas esvaziadas da verdadeira luta que devemos travar, a falta de titulação pareceu ter mais impacto do que a própria mentira na construção do Lattes, como se somente a titulação de doutorado (mesmo que não seja em educação) fosse condição suprema para ser um/a bom/boa ministro/a de educação no Brasil. Se essa fosse o maior de todos os requisitos para o cargo aqui em debate, o primeiro ministro nomeado por Bolsonaro para a educação, Ricardo Vélez Rodríguez, como doutor em filosofia, uma das áreas pilares na construção de qualquer universidade, teria dado certo, até certo ponto, apesar de ter errado 22 vezes em seu currículo Lattes, como apontou o site Nexo. .
Com esta minha linha de análise, não pensem que não valorizo o conhecimento e a ciência. Ao contrário, acredito piamente na importância da formação científica e que este cargo demanda uma formação básica no campo da educação, algo que este ministro demitido ontem não possuía (ainda que fosse professor). Ocorre que a discussão deve ir além da formação de um ministro e não nos esqueçamos de que nós da esquerda precisamos romper com o pensamento colonial de que as lideranças só devem ser assumidas por becados, como se a palavra de maior peso sempre devesse partir deles, pois a revolução vai além de títulos, de diplomas. Há professores da educação básica, por exemplo, que pela empiria profunda na educação de base, dariam excelentes ministros da educação e quase nunca se pensa neles, o que é uma pena, pois estes sim compreendem as realidades e necessidades, assim como há professores da educação superior que ultrapassam os gabinetes da intelectualidade e trazem grandes contribuições para o pensamento educacional brasileiro, mas, quase sempre, historicamente, no país, foram escolhidos teóricos de gabinete, justamente aqueles sem um pé na realidade e que, no máximo, debatem a educação no aquário das teorias.
Esse pedantismo acadêmico me faz lembrar o conto de Rubem Alves, que vale a pena a leitura e que, por isso mesmo, fiz questão de introduzi-lo nos parágrafos abaixo. A narrativa se dá da seguinte forma: Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam… Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto, fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram do-ré-mi-fá, imprimiram diplomas e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para liderar os demais. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamariam por Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os sabiás… Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa, e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito. — Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam estudar, mas cantavam simplesmente… — Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem. E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás…
Este conto, pequeno e simples, aparentemente, é de uma profundidade incomensurável e me induz, incansavelmente, a fazer uma ponte sarcástica com a ideia de que parte da esquerda se aproxima de muitos valores dos quais tenta combater e nem se dá conta, o que é muito triste, pois deveríamos ter consciência de nossas lutas para as mudanças necessárias que este país precisa, mas ainda estamos em devaneios, perdidos em cantos a títulos…
No mais, sinalizo que se precisamos combater o racismo, aquele que se traveste de várias formas na direita e em muitos de nós, também, com a mesma garra, devemos lutar contra o pedantismo acadêmico materializado em muitas mentalidades de setores da esquerda que até hoje acreditam na transformação a partir da academia, esquecendo-se de que a verdadeira revolução deve acontecer, principalmente, nas dialogicidades vivazes empíricas das ruas e das vidas lotadas de sonhos por justiça e por um Brasil melhor para todos/as e não somente para aqueles/as que estão habilitados/as com alvarás e títulos para o domínio dos latifúndios do discurso habilitado.
Enfim, se parte da direita se perde em seus racismos, na esquerda também há problemas que não podem mais ter lugar nesse panóptico desvairado de vigilância e de controle, como se somente os becados máximos pudessem ter voz e liderança!
Elissandro Santana é professor, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.
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