Retrospectiva: Saúde sem democracia?

Saúde é democracia, é luta

Por Douglas Kovaleski, para Desacato.info.

Saúde é democracia, é um dos lemas mais marcantes do movimento social que cria o SUS, o Movimento de Reforma Sanitária (MRS). Lema proferido por Sérgio Arouca em discurso, no ano de 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde. O clima dessa fala era de abertura política e queda do regime militar, impossível imaginar que mais de 30 anos depois a sociedade brasileira viveria tamanho retrocesso. O MRS, ou seus remanescentes, ainda lutam pelo cumprimento da Constituição. Mas, nos dias de hoje, lutar pelo o que a Constituição já assegura é ser um militante radical de esquerda. Tempos difíceis, onde a democracia se esvanece e com ela as condições de vida da classe trabalhadora.

Há que se considerar que esse retrocesso democrático por que passa a sociedade brasileira não é fato isolado e encontra suas raízes no contexto internacional. Pois uma crise econômica se prolonga há mais de uma década e “justifica”, com a ajuda dos meios de comunicação, a precarizar o trabalho, reduzir salários e aumentar a miséria. O medo, sustentado pelo terrorismo alardeado, fratura a convivência humana e restringe o livre pensar e agir, ou até mesmo a circulação pelas cidades. Sem contar a destruição do planeta que caminha, a passos largos, rumo à inabitabilidade. A realidade está tão distorcida, que para muitos parece normal destruir seu próprio lar em nome da acumulação de riquezas materiais.

É mundial essa tendência de evitar o convívio com o diferente, pois ele precisa ser impiedosamente destruído, violentamente dizimado. E o principal, sem chance de defesa. A escuta passou a ser proibitiva, o convívio com o diferente, pesado. Imagina falar em democracia se nem o convívio é valorizado?

As mulheres são cada vez mais alvo de violência no Brasil e no mundo. As redes de comunicação, autorizadas pelo conceito de pós-verdade, mentem e invadem a vida privada das pessoas. A cultura do consumo nutrida pelo estímulo aos nossos instintos mais primitivos perverte os avanços do conhecimento humano e joga a grande multidão na latrina do desamparo. Vidas que propositadamente não fazem mais sentido. Resta viver aqui e agora, sem projeto, sem devir, como se estivéssemos todos em um campo de concentração. A multidão reduz-se a um amontoado de indivíduos solitários e separados respondendo a estímulos. Os experimentos de Skiner são reproduzidos em perspectiva global, agora com humanos.

Temos o caldo perfeito para o fim da democracia: uma multidão alienada e em guerra consigo mesma, numa realidade de extrema concentração de riquezas, temperada por um messianismo religioso que nega qualquer forma de racionalidade.

É momento de fortalecer vínculos, olhar o coletivo, conviver com o diferente e, acima de tudo, preparar para a luta. Primeiro para a luta dentro dos parâmetros democráticos, da mobilização social, das greves e da conscientização política. Luta por saúde, educação, segurança pública, lazer e condições de vida plena. Afinal nunca a humanidade teve tantas riquezas disponíveis. Processo que se dá sobre tudo por meio da democracia em sua radicalidade. Condição que permite avanços concretos na vida dos trabalhadores. Entretanto, a luta pela sobrevivência e pela dignidade humana em seu limite, deve ser cogitada e precisamos estar preparados para ela, pois nesse caso, estaremos em um número bem maior. Vantagem numérica essa que só se consolida se mantivermos claros os papéis de quem é quem. Quem é trabalhador e quem é burguesia.

O momento é decisivo e definitivo no Brasil. Temos ainda a possibilidade de lutar dentro dos parâmetros democráticos, evitando que o que resta de direitos trabalhistas e sociais sejam tomados de assalto pela burguesia. A reforma da previdência caminha para sua aprovação, a cobrança de mensalidades nas universidades e Institutos Federais seguem o mesmo caminho. Continuando nesse caminho não teremos mais nada a perder….

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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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