A violência como política: mulheres e neoliberalismo
Priscila von Dietrich, para Desacato.info
Segundo o Atlas da Violência de 2019 [1], houve um crescimento de 30,7% nos homicídios de mulheres no Brasil entre 2007 e 2017. No último ano do período, foram 13 assassinatos por dia. É impossível ignorar a relevância desses dados, e sua análise permite que avancemos na compreensão de como, enquanto sociedade, encaramos o papel das mulheres e como estamos construindo sua cidadania.
O uso da violência é histórico nas sociedades como método de imposição (ou convencimento, para usar um eufemismo) de ideias, formas de organização social e escolhas políticas. A partir do reconhecimento desse fato, é importante compreender como diferentes grupos se posicionam em relação a isso. Aqueles interessados, que se beneficiam da eficiência da violência, a utilizam de forma discriminada, consciente e calculada. Por outro lado, quem percebe em profundidade os reais objetivos e as pessoas mais afetadas por essas políticas, não pode deixar de se posicionar de forma crítica.
O conjunto de ideias imperantes no sistema global de produção, focado no lucro e que prioriza o “bom” funcionamento dos mercados, coloca-se dessa forma desde o seu princípio. Tendo como foco a implementação da produção industrial e a formação de uma sociedade burguesa, o surgimento do capitalismo foi um processo desse tipo: baseado na aplicação da violência como forma de garantir sua efetivação e seu avanço. As políticas estatais se colocavam, assim, ao lado dos grupos dominantes e de acordo com os seus objetivos, disciplinando a classe trabalhadora para o trabalho assalariado e possibilitando a reprodução da força de trabalho aos menores custos possíveis (o que permitia oferecer salários mais baixos, ao nível de subsistência). Práticas coletivas, por exemplo, do trabalho em terras comunais, crenças e rituais de exaltação da natureza e a aplicação de plantas e ervas para cura de doenças, foram totalmente extintas, e a criminalização dessas ideias se deu principalmente pela perseguição às mulheres – que possuíam e aplicavam conhecimentos sobre esses processos – através do que ficou conhecido como “a caça às bruxas”. A fim de destruir a dinâmica antes vigente nas comunidades locais, a ascensão do novo modo de produção exigiu, portanto, a subordinação dos trabalhadores à rotina fabril e das mulheres aos homens, submetidas, a partir daí, exclusivamente à esfera privada do trabalho doméstico, da criação dos filhos e dos cuidados dos mais velhos.[2]
Essa nova formatação social se colocou como regra e passou a ser considerada como normal, e mais ainda: natural. Sua reprodução ocorreu, e continua ocorrendo em âmbito global, submetendo mulheres do mundo inteiro a esse sistema que as explora duplamente: atualmente também através de sua inserção laboral, com salários baixíssimos e instabilidade no emprego; e principalmente, através da sua função de reproduzir e criar novos trabalhadores, pela qual não recebem remuneração alguma.
A ameaça contra mulheres, e a consequência última – sua morte – são evidências de que os objetivos continuam sendo os mesmos e que sua busca ainda opera através do mesmo método: a violência. A crueldade intrínseca em ambos momentos – passado e presente – aplicada às mulheres, nesse sentido, se mostra de diversas formas. A violência doméstica, capaz de garantir a submissão da mulher ao homem no seio da família, se apresenta em níveis alarmantes. E para além das agressões físicas, o desemprego, a precarização do trabalho e a destruição de sistemas de assistência públicos são fundamentais nesse processo de aprofundamento da acumulação de capital.
A globalização e as políticas neoliberais aplicadas no contexto recente são elementos-chave para compreender o argumento principal que se coloca aqui. O aumento da exploração (da terra, do trabalho remunerado e não remunerado), principalmente em países ricos em recursos naturais e mão de obra vasta e barata, não deixam mentir. É condição necessária para o aumento dos lucros que se tenha alta produção de alimentos a preços baixos, a fim de pressionar os salários a níveis cada vez menores. E além disso, é preciso que o trabalho reprodutivo, de limpeza, alimentação e cuidados pessoais permaneça sendo feito a custos baixíssimos. Ou seja, é preciso que as mulheres continuem cumprindo suas atribuições domésticas, seja de forma não remunerada, no espaço privado do lar, ou remunerada, no mercado de trabalho, encontrando espaço em setores específicos considerados “femininos”. Novamente, a feminização desses ramos produtivos se dá por estarem ligados principalmente à economia dos cuidados (como profissionais de saúde, faxineiras, empregadas domésticas, babás, professoras, etc.). Essas ocupações, geralmente, recebem salários menores, são mais instáveis e frequentemente não formalizadas.
A expansão da produção em escala global, com a abertura dos países subdesenvolvidos ao capital estrangeiro e empresas multinacionais, traz consigo consequências amplas ao emprego. Exigências em relação à flexibilização dos contratos, destruição de condições de seguridade social (seguro-desemprego, previdência, etc.) e principalmente aos níveis remuneratórios, que são pressionados para baixo cada vez mais. A informalidade, muito prejudicial aos trabalhadores, por não terem garantidos seus direitos básicos e pela ausência de regulação quanto às condições do trabalho, se torna ainda mais frequente.
O Brasil se coloca como caso emblemático nesse contexto. A chamada “reestruturação produtiva” dos anos 1990 enfraqueceu a indústria nacional e impôs, através do aumento da concorrência, regras mais flexíveis de contratação, reduzindo os salários e piorando a vida dos trabalhadores com jornadas mais intensas. O aumento do desemprego também foi considerável nesse período e, apesar de ter sido combatida com a melhora da conjuntura econômica nos anos 2000, piorou rapidamente com o avanço da crise e o ajuste recessivo implementado a partir de 2014. A especialização focada na agricultura, como a soja e outros bens alimentícios, particularmente para a exportação, também está em curso, condizendo com a questão da redução dos custos de vida da classe trabalhadora. Esse processo se dá com o aumento da grande propriedade, retirando o acesso à terra como meio de produção para a subsistência, empurrando as pessoas para fora do meio rural, ou precarizando seu trabalho cada vez mais nos empreendimentos agrícolas.
Uma questão a se colocar nesse ponto, é sobre como isso se efetiva em um contexto onde as mulheres já estão inseridas no mercado de trabalho de forma permanente, uma vez que seus salários não são mais somente complementares no orçamento familiar, mas passaram a ser, muitas vezes, a fonte principal de renda doméstica. Ainda assim, seus salários são comumente mais baixos que os dos homens, mesmo em condições iguais de ocupação e qualificação. A falta de vagas de emprego disponíveis ou o trabalho em condições precárias e de baixa remuneração, tanto para os homens quanto para as próprias mulheres, gera, nesse sentido, uma dupla pressão sobre elas. Isso porque, com a queda e a instabilidade da renda, a qualidade de vida da família é significativamente reduzida, e mesmo que a mulher consiga retornar ao mercado de trabalho, as tarefas domésticas permanecem. Ou seja, independente se a renda familiar cai por conta da falta de emprego para o homem, para a mulher, ou mesmo para os filhos (desemprego jovem), as consequências do desemprego são assumidas amplamente por elas com aumento da carga da segunda jornada (que são as tarefas executadas em casa, após a jornada de trabalho no mercado).
As políticas mais recentes, relativas ao mercado de trabalho, como a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei 13.467 de 2017) e a descontinuidade da política de reajuste do Salário Mínimo acima da inflação, são explícitas nesse sentido. Autorizando, com a força de lei, a precarização do trabalho, através, por exemplo, da terceirização da atividade fim e a contratação de trabalhadores intermitentes, a instabilidade e a insuficiência no emprego se tornam latentes. Ademais, tem-se a retirada de direitos básicos do cidadão, efetivada com a Reforma da Previdência (Emenda Constitucional 103/2019), aprovada há poucos dias. O efeito de empobrecimento geral da população tende a se agravar, atingindo mais intensamente grupos populacionais que já possuem restrições quanto ao acesso ao emprego formal e à qualificação, e se inserem de forma geral com mais vulnerável na economia do país.
Medidas mais amplas de redução de gastos governamentais, como a implementada através da chamada “PEC do Teto” (Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016) atingem a população em diversos âmbitos: educação, saúde, segurança. Apresentada como uma solução para o retorno do crescimento do país, geração de empregos e equilíbrio das contas do governo, após três anos em vigor, ainda não surtiu tais efeitos [3]. Entretanto, já são percebidas suas consequências em relação ao enfraquecimento dos bens e serviços públicos ofertados aos cidadãos, tão necessários às classes mais pobres. A consequente impossibilidade de dar continuidade aos investimentos tanto na educação básica, como nas políticas de inclusão no ensino superior, restringe as oportunidades de qualificação para os trabalhadores. O Sistema Único de Saúde (SUS), que também já está deixando de receber parte do seu financiamento [4], se mostra cada vez mais deteriorado. A importância desse sistema público de saúde é inquestionável, tanto pela quantidade de setores populacionais que dependem dele, quanto pelos avanços conquistados, por exemplo, na redução da taxa de mortalidade infantil, que voltou a aumentar em 2017, após 26 anos em queda.[5]
As mulheres, mães responsabilizadas pela gestação e criação dos filhos, se veem em uma situação temerária nesse cenário. O déficit de vagas em creches e escolas, e a falta de recursos para a construção de novas instituições educacionais, as afetam de forma direta. E como já colocado anteriormente, essas mulheres não podem abrir mão de seus empregos para cuidar exclusivamente dos filhos e do lar. Acabam por repassar essa responsabilidade a outras mulheres, geralmente da família, em quem têm de confiar seus filhos para não perderem a remuneração, ainda que baixa, mas que garante parte do rendimento domiciliar.
Sem suporte do Estado para questões de saúde, grupos mais fragilizados, como crianças e idosos, demandarão cuidados dentro da família, e mais uma vez as mulheres assumirão esse papel. A falta de acesso a programas de prevenção e tratamentos de doenças afeta toda a população. Educação sexual e questões especificamente ligadas à saúde da mulher sofrem imensamente com a falta de recursos. Isso se estende desde o fornecimento de anticoncepcionais, até o acompanhamento de pré-natal e programas de cuidados aos idosos. Seguros e planos de saúde privados não são acessíveis a grande parte da população, e quando o são, ainda se mostram insuficientes.
A segurança, da mesma forma, é amplamente prejudicada pelo contexto de recessão e corte dos investimentos públicos. O empobrecimento causado pelas políticas que causam aumento do desemprego, redução salarial e retirada de direitos, leva muitas pessoas às ruas e aos trabalhos informais. A sensação de insegurança passa a imperar em um cenário onde as perspectivas não são boas e é preciso buscar quaisquer meios para garantir o sustento. O aumento da desigualdade tem efeitos claros na segregação das populações pobres em bairros mais afastados, frequentemente com péssimo serviço de transporte público e débil acesso à infraestrutura urbana, como saneamento básico, saúde e educação.
A taxa de homicídios cresceu no Brasil no último ano, assim como a taxa de homicídios femininos. E isso não é contraditório com o nível de violência aplicado através de tantos retrocessos em termos de políticas públicas. É visível o aumento da exploração da classe trabalhadora em muitos âmbitos, trazendo como efeitos o empobrecimento e o crescimento da desigualdade. As tensões sociais são acirradas, e as cobranças sobre as mulheres quanto ao cumprimento de seu papel de gênero crescem como consequência. Entretanto, ao mesmo tempo, é tirado delas toda rede de apoio necessária para compatibilizar o trabalho remunerado com a execução das tarefas domésticas. São destruídas todas as formas de cooperação coletiva, terras para a produção de subsistência nas áreas rurais, equipamentos públicos nas áreas urbanas, individualizando a culpa como falta de capacidade de desempenhar suas responsabilidades. Reconhecendo que tais responsabilidades foram impostas por um tipo de organização social intrinsecamente necessária para o avanço do sistema capitalista, entende-se o porquê de serem reforçadas em um momento de dificuldades ao capital, gerado pela crise e consequente recessão econômica. A naturalização dessas atribuições – criada através da imagem da mulher cuidadora, paciente e submissa – é reforçada na era neoliberal, potencializando a cobrança por todos os agentes sociais: homens, maridos, governantes.
Nesse contexto, é preciso buscar por soluções que, de fato, enxerguem a situação feminina e a considerem para a formulação de políticas públicas. A sociedade e o Estado devem assumir suas responsabilidades conjuntamente em relação à reprodução social. Cuidar da saúde, da educação e da segurança, oferecendo condições plenas ao exercício da cidadania a todos é tarefa coletiva. As mulheres devem ter seus direitos garantidos, enquanto cidadãs, mães e trabalhadoras, e não terem sua vida espoliada, assumindo jornadas dobradas de trabalho devido às decisões egoístas das classes dominantes, que colocam o lucro e o mercado à frente da vida das demais pessoas.
[1] http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
[2] Federici, S. Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
[3] http://desacato.info/o-que-esta-em-jogo-com-os-ajustes-fiscais-no-brasil/
[4] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/583072-pec-teto-dos-gastos-uma-perda-bilionaria-para-o-sus-em-2019
[5] http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTERIDADE_doc3-_L9.pdf
Priscila von Dietrich é graduada em economia pela UFRGS e pós-graduanda em Desenvolvimento Econômico na UNICAMP. Pesquisa questões relacionadas à economia do trabalho e economia feminista.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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