A Reforma da Previdência e seus impactos no BNDES: fim da linha para o investimento público?
Por Jonattan Rodriguez Castelli, para Desacato.info.
Há algum tempo um mantra vem sendo repetido incansavelmente por uma parte dos nossos políticos e pelas grandes corporações midiáticas: “sem a reforma da previdência o Brasil irá quebrar”. Argumenta-se que a inevitabilidade da reforma advém da previdência social sofrer de déficits crescentes e ser insustentável no longo prazo. Para enfrentar esse problema foi proposta pelo governo uma reforma previdenciária, a PEC 6/2019, que possui muitos pontos polêmicos em seu texto e com potencial de prejudicar ainda mais a situação precária da classe trabalhadora, caso da adoção de um regime de capitalização (esquecendo o fracasso desse modelo no nosso vizinho chileno) e do fim do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
No dia 13/06/2019, o relator da reforma da Previdência acrescentou mais uma medida problemática: o fim do repasse de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), oriundo do PIS/PASEP, para o orçamento do BNDES. Os recursos do FAT/PIS-PASEP representam uma parcela significativa das fontes desse banco. Em 2018, por exemplo, as fontes do BNDES eram compostas da seguinte maneira: 38,3% do Tesouro Nacional; 36,4% do FAT/PIS-PASEP; 4,8% de captações externas – a partir de operações de emissões de títulos externos (bonds) e de empréstimos; 4,1% de outras fontes governamentais – Fundo da Marinha Mercante (FMM), Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Debêntures BNDESPAR, Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), Letras Financeiras e Fundo Amazônia (FA); e 9,9% do Patrimônio Líquido do próprio BNDES [1]. Portanto, verifica-se que a medida proposta poderá reduzir os recursos do BNDES em mais de 1/3.
Cabe recordar, que além dessa proposta, em dezembro do ano passado o superministro da economia Paulo “Posto Ipiranga” Guedes havia demonstrado o desejo de que o BNDES devolvesse R$ 100 bilhões ao Tesouro Nacional ainda em 2019 [2]. Logo, não é de agora a demanda do governo pela redução de recursos do banco brasileiro de desenvolvimento.
A drástica redução de recursos do BNDES, por seu turno, é um ataque a qualquer projeto de desenvolvimento socioeconômico que se queira estabelecer para o Brasil. O BNDES, desde sua criação em 1952 no segundo governo de Getúlio Vargas, tem ocupado um papel destacado no financiamento de longo prazo no país (tanto público quanto privado), fundamental para fomentar o desenvolvimento, em áreas como infraestrutura e ciência e tecnologia, por exemplo. Historicamente a indústria brasileira, que vem sofrendo atualmente de um forte processo de redução da sua participação no PIB nacional, se beneficiou desses recursos para se financiar.
Podemos dividir a atuação do BNDES em três grandes períodos. O primeiro desde 1952 até o princípio dos anos 1980, fase da industrialização via substituição de importações, onde ele segue uma lógica desenvolvimentista, ou seja, um projeto de desenvolvimento de caráter nacionalista, marcado pela intervenção do estado e do fomento à industrialização. Em seguida, uma fase liberal que se estende do início dos anos 1980 ao final dos anos 1990, onde o BNDES passa a exercer uma função de coordenador e implementador das políticas de desestatização, isto é, da privatização de muitas empresas estatais. E do início dos anos 2000 até 2014, quando o BNDES reassume seu lugar como principal financiador de investimentos de longo prazo.
Primeiramente no segundo governo de FHC, financiando, principalmente, projetos de ciência, tecnologia e inovação ligados a alguns setores específicos, caso do petróleo, a partir da criação dos Fundos Setoriais. E em seguida, nos governos petistas, nos quais se coloca como pauta de suas políticas públicas enfrentar a especialização regressiva (desindustrialização) através da retomada de políticas industriais. Nesse período houve participação do BNDES na concepção, operacionalização e financiamento nos seguintes planos: PITCE (Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior) em 2003; PDP (Plano de Desenvolvimento Produtivo) em 2008; PSI (Programa de Sustentação do Investimento) em 2009 e PBM. Além disso, o BNDES atua desde 2007 com linhas de financiamento para o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Consequentemente, nos anos 2000 ocorreu uma retomada do volume de recursos desembolsados pelo banco, alcançado o patamar atingido durante meados dos anos 1970, no período do II PND [3].
Essa atuação ativa do BNDES como financiador de investimentos de longo prazo, alinha-se à concepção de “Estado Empreendedor”, elaborado pela economista Mariana Mazzucato [4]. O estado agiria como empreendedor à medida em que atuasse em áreas e atividades nas quais o setor privado não participe. Entretanto, indo além da mera oferta de bens públicos ou da correção de falhas de mercado. A ação empreendedora do Estado implicaria em atuar como um guia para novos investimentos, desbravando novas áreas e, a partir do investimento público, criando oportunidades para que o setor privado possa participar também. Geralmente, tratam-se de investimentos com tempo de maturação mais longo ou de grande incerteza, como os realizados em pesquisa e desenvolvimento na área de ciência básica.
Um exemplo de um Estado empreendedor em ação é o caso dos investimentos maciços do governo estadunidense a fim de impulsionar o desenvolvimento da internet e da indústria de semicondutores e da nanotecnologia, iniciados ainda nas décadas de 1940 e 1950. Eles não ocorreram simplesmente como forma de corrigir algum tipo de falha de mercado ou para suprir a demanda do setor privado, que queria investir, mas não tinha recursos. Esses investimentos foram motivados pela percepção que o governo tinha desses setores, considerados estratégicos, e que ainda não haviam sido sondados pelo setor privado.
Nesses casos o governo sistematicamente criou esses novos mercados, não apenas os corrigiu. Mais tarde, quando esses investimentos já estavam amadurecidos, o setor privado entrou na jogada, aperfeiçoando-os a objetivos comerciais, como é o caso da Apple. Dessa maneira, o que Mazzucato destaca em sua obra é que antes de haver uma contraposição entre setor público e privado, há uma complementaridade.
O desafio que emergiria desse tipo de medida é que muitas vezes o setor privado se utilizaria dos frutos desses investimentos públicos, sem, no entanto, remunerar devidamente o Estado por isso. O livro destaca, por exemplo, que a Apple envia boa parte de sua receita para regiões alhures aos EUA, inclusive paraísos fiscais, ao invés de devolver parte de suas receitas pelo governo através do pagamento de tributos. Seria o caso de uma típica socialização dos custos e perdas, mas privatização dos ganhos. Um problema que o BNDES também enfrenta.
Um exemplo dessa situação aqui no Brasil, é o caso das lojas Havan. Em reportagem do site Extra Classe, publicada em fevereiro do ano passado, revela-se que Luciano Hang, dono das lojas Havan, realizou, entre abril de 2005 e outubro de 2014, 50 empréstimos junto ao BNDES para financiar a expansão de seu empreendimento, atingindo um total de R$ 20,6 milhões. Resultando na abertura de 100 lojas em 13 estados do Brasil. Contudo, além de negar ter se utilizado de recursos públicos para a expansão de suas lojas, Luciano Hang foi condenado em 2003 por sonegação de contribuições previdenciárias. Entre 1992 e 1999, o empresário sonegou mais de R$ 10 milhões [5]. Essa situação traz à tona a típica hipocrisia de nossa elite que ao mesmo tempo que se utiliza do Estado para crescer financeiramente, acusa-o de corrupto e ineficiente, quando ela própria é uma sonegadora costumaz.
Por fim, pode-se argumentar que por um lado o repasse dos recursos do FAT/PIS-PASEP poderão reduzir o déficit da previdência. De fato, isso é verdadeiro, dado que o PIS-PASEP é uma das fontes de recursos para a seguridade social. Contudo, há outras maneiras de se fazer isso, sem inviabilizar o investimento, tanto público quanto privado. Dentre essas alternativas está a realização de uma reforma tributária progressiva, prevista pela Constituição desde 1988 e nunca posta em prática, que teria como efeito tanto elevar a arrecadação pública quanto reduzir desigualdades provocadas por nosso sistema tributário injusto que recai mais intensamente sobre a população de baixa renda e a classe média [6].
Além de uma reforma tributária se pode sugerir tanto a redução das desonerações fiscais quanto a cobrança de dívidas previdenciárias. No tocante às desonerações fiscais, de acordo com o “2º Orçamento de Subsídios da União: Relatório do Governo Federal” [7], publicado em maio de 2018 pela Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria (Sefel) – do Ministério da Fazenda – em 2017 o total de benesses, somente do governo federal (União), alcançou um montante de R$ 354,7 bilhões.
Desses, R$ 84,3 bilhões eram benefícios financeiros e creditícios e R$ 270,4 bilhões eram referentes a gastos tributários. Sendo que os últimos eram compostos da seguinte forma: 22% Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); 21% Receita previdenciária; 17% Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF); 16% de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ); 9% IPI interno; 4 % PIS/PASEP; 4% CSLL; 7% outros tributos e contribuições. Desses valores 51% se referem a recursos da seguridade social e previdenciário – Receita previdenciária, Cofins, CSLL e PIS/PASEP. Portanto, há uma quantia relevante de recursos que deveriam financiar a seguridade social, e a previdência, que estão sendo desonerados, um montante de R$ 137,9 bilhões [8]. Sem contar que o valor devido por empresas privadas e públicas à previdência chega a R$ 476,7 bilhões [9].
Desse modo, há outros caminhos para reduzir o rombo previdenciário sem impossibilitar que o BNDES cumpra seu papel precípuo, qual seja, fomentar o desenvolvimento socioeconômico nacional a partir do financiamento de investimentos de longo prazo.
[1]https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/relacoes-com-investidores/fontes-de-recursos
[2]https://exame.abril.com.br/economia/paulo-guedes-quer-r100-bilhoes-do-bndes-ja-em-2019/
[3] REDIVO, ANDRÉ DA SILVA ; CARIO, SILVIO ANTONIO FERRAZ . O BNDES e os ciclos de política industrial: uma análise de sua atuação entre 1990 e 2016. In: II Encontro Nacional de Economia Industrial e Inovação, 2017, Rio de Janeiro. Blucher Engineering Proceedings. São Paulo: Editora Blucher, 2017. p. 1129.
[4] MAZZUCATO, M. O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.
[5] https://www.extraclasse.org.br/economia/2018/02/havan-expandiu-atividades-com-dinheiro-publico/
[8] LETTIERI, M. Por que não se fala de benesses fiscais quando o assunto é ajuste econômico. Le Monde Diplomatique, maio de 2019. pp. 5-6.
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Jonattan Rodriguez Castelli é economista, com mestrado e doutorado em economia pela UFRGS, e faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.
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