Retrospectiva: Menos dinheiro para o que já está sucateado

Saúde rumo à privatização: as mudanças no financiamento da Atenção Básica

Por Douglas Kovaleski, para Desacato.info.

A saúde pública no Brasil, representada pelo Sistema Único de Saúde, tem um projeto exemplar de inclusão social, de organização e de gestão em nível mundial. Entretanto, desde o nascimento do SUS, seus defensores sofrem uma tremenda frustração, apesar doa avanços que a população teve e ainda vive em termos de saúde. A frustração decorre da não efetivação do SUS conforme seus preceitos legais. Afinal, o SUS não cumpre a risca, em seus quase 30 anos de existência, sequer seus princípios orientadores mais gerais, como a universalidade (acesso a todos), nem a integralidade (todas as necessidades da pessoa, vista como um todo) e menos ainda a equidade (justiça social) na saúde.

Há quem defenda, com toda a razão, que para o cumprimento do SUS na íntegra, seria necessária uma alteração radical na organização social e econômica do país. O que é verdade, mas a situação que frustra os defensores do SUS, não clama pela revolução social, apenas clama por avanços contínuos rumo a uma saúde melhor com condições concretas de prestação de bons serviços, acesso e inclusão social. Nessa análise, que pergunta fundamentalmente: por que o SUS não se consolida? Ou, por que o SUS não avança mais? Há uma unanimidade entre seus defensores: FALTA DINHEIRO. A carência de financiamento contínuo e em quantidades suficientes é histórica e gritante. Dessa forma, o maior desafio para a consolidação do SUS é seu financiamento que, além de suficiente, deve ter formas indutoras, inclusivas e com orientação política que viabilizem o sistema.

O governo federal resolveu mudar a forma de financiamento da Atenção Básica no Brasil, modelo que deve ser aplicado primeiro à Atenção Básica para em seguida se estender para média e alta complexidade. Se até então a atenção básica era financiada fundamentalmente pelo PAB (Piso da Atenção Básica) fixo e PAB variável, isso agora vai mudar para uma forma de financiamento que leva em conta o número de pessoas cadastradas nas equipes e o desempenho das equipes.

O PAB fixo é um valor que o governo repassa per capita/ano (entre 23 e 28 reais), já o PAB variável é um pequeno adicional que o município recebe de maneira vinculada à adesão a programas como o Saúde da Família, Saúde na Escola, Saúde Bucal, dentre outros.

Com relação ao financiamento pelo número de pessoas cadastradas em cada equipe, essa medida pode gerar recusas no atendimento de pessoas que querem atendimento em outra unidade de saúde, que não aquela mais próxima que ela reside, coisa bastante comum nos dias de hoje. O que também pode comprometer a universalidade do SUS uma vez que os recursos só chegarão a pacientes cadastrados. Para quem conhece do cotidiano da população e do serviço de saúde, sabe como manter esse cadastro atualizado é difícil, pois a população vive processos de grande mobilidade, ocasionadas pelo desemprego,  desastres naturais e pouco acesso à moradia.

O financiamento por desempenho abre as portas para a diferenciação entre as equipes e entre municípios, aumentando o produtivismo, a corrida pelo cumprimento de metas em detrimento do vínculo e da atuação profissional orientada por padrões éticos adquiridos durante o ciclo de formação. O financiamento por desempenho pode ainda promover um caminho oposto ao da equidade, onde as unidades melhores receberão mais recursos, aumentando a diferença entre elas. Até por que os critérios de desempenho não foram claramente colocados pelo Ministério da saúde.

O governo prepara mais um golpe nos direitos sociais, dessa vez no maior bem público da população brasileira, o SUS. A priorização do cadastramento vais dar um diagnóstico acurado para a iniciativa privada, de onde é melhor investir. O financiamento por desempenho vai trazer a lógica do privado para dentro das equipes. Onde a competição e a produtividade imperam, deixando a saúde da população brasileira cada vez pior. Afinal, toda essa lógica vem regada a mais cortes de recursos das áreas sociais. Ou seja, menos dinheiro para o que já está sucateado abrindo as portas para a privatização indireta do setor, com auxílio das Organizações Sociais e empresas privadas.

Imagem de capa: A menina doente, de Edvard Munch. (1886)

Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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