O Livro dos Sonhos – primeira parte
Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.
Certa manhã um homem acordou de sonhos conturbados. A sensação apertava seu corpo como quem apalpa laranja em feira. Rolou na cama em desespero. Seu corpo estava normal, apesar de ter acreditado nisso depois de um tanto de tempo. Levantou. Colocou um café, acendeu um cigarro vagabundo e tossiu a tosse de mancha preta no pulmão. Lembrou que os sonhos o acompanhavam de semanas. E que precisava de um grande esforço para pegar na mão da coragem rumo ao leito. Se menos “homem maduro”, teria ligado para a mãe e feito o pedido de um leite morno com uma boa história. Não fez, claro. Por fim, se arrumou para o trabalho para, enfim, entender que era sábado. Não teria a distração das planilhas. Lembrou do sonho.
Primeiro era uma festa adolescente com jovens conectados por um aparelho telefônico. Eles dançavam e os fones ditavam o ritmo. Então um sinal tocava avisando que era hora de postar algo. Qualquer coisa. Postavam e suas faces se transformavam numa alegria rumo ao like. Eis que nuvens de tempestade tomavam a festa e todos experimentavam a água na cara e como se tornavam vulneráveis. Alguém gritava:
– É hora de voltar!
E todos seguiam para um imenso buraco no chão. O homem, curioso, ia sentido ao que parecia o inferno. Ao pular, era. Mas sem chamas ou um diabo. Era a avenida principal. Acordou.
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O sonho inquietava o homem. E os outros também. Um tal de luzes que acendiam a escuridão e revelavam imagens toscas, patéticas. Gritos de bocas costuradas, correntes formando música infantil, a voz da Berenice gritando pelo calo que não se cura, elevadores saltando ao tocar o último andar, elevadores ofertando mais opções abaixo ao tocar o térreo, vinhos incríveis por 11,00, banquetes veganos, cocaína pura, estabilização do dólar e tapetes com chaves de acesso às casas em sua parte debaixo. Lixo reciclável respeitado, relacionamento aberto, sopa no verão. Martelos pregando poesias e poesias formando asfalto. Sangue em groselha e doces de leite saindo de fuzis. Uma bagunça. Uma lástima. Fechava os olhos e vinha um bailarino se desfazendo em pedaços no passo. A cabeça rolava ladeira abaixo e, enquanto a velocidade se tornava maior, maior era o andamento no piano. Abria os olhos, ensaiava molhar a cara e caia de novo para dessa vez se ver numa praia na qual barcos se encontravam para uma guerra e no primeiro a chegar, os soldados que desembarcavam eram moscas que voavam sobre elas mesmas. A seguir, uma força maior e risonha com a porra da raquete elétrica exterminando ambos lados e rindo em gozo. Acordava, coçava a cabeça e caia para estar pelas ruas de Veneza comendo cachorro-quente de Osasco. Acordava. E dormia. Isso ao longo de toda noite. Isso ao longo de vários dias. Sem resolução, sem possibilidades. O cansaço. O cansaço e o corpo gritando como num sonho de dias atrás.
Pela manhã resolveu sair pela rua e tomar o famigerado ar. Buscou qualquer coisa que o distraísse. Parou numa banca e teve algum sopro de alegria ao ver a notícia e se dar conta da liberação do FGTS. Calculou e percebeu que o valor o ajudaria numa dívida. Ficou feliz por resolver um boleto. Olhou os livros e riu de um autor com nome de carne de churrasco. E ficou sério ao ver outro livro de nome “Vou Revelar Seu Sonho”. Comprou o que acreditava ser a resolução de seus problemas. Foi para casa mais satisfeito e dormiu mais tranquilo.
Sonhou com boletos o agradecendo por serem pagos e acordou sentindo o abraço. Recorreu ao livro e teve explicação: beba mais vitaminas de banana e adquira um cobertor vermelho. Estranhou. Voltou ao sonho e dessa vez viu uma multidão abraçando o presidente. Acordou petrificado. Com quase nenhuma locomoção. Em susto, saltou da cama e sentiu alívio:
– Achei que tinha virado uma barata.
Não achou resposta no livro.
Imagem de capa: Grafite de Raúl Ruiz.
Guigo Ribeiro é ator, músico e escritor, autor do livro “O Dia e o Dia Que o Mundo Acabou”, disponível em Edfross.
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