Por Diogo Araujo, para Desacato.info.
Nós da esquerda, a nível do discurso, costumamos nos dar razão muito facilmente. Também temos argumentos tanto fortes, quanto prontos: “Fulano é fascista!” ou “O importante é o social.” Na minha caminhada como estudante de humanas (lá se vão 16 anos), aprendi a fazer uns exercícios que servem pra dosar essa força e a fazer circular. Acredito que isso seja pensar: controlar as intensidades das palavras e levar a sério o princípio de não ter dogmas ou ser autoritário. Ou seja: saber onde se quer chegar, mas sempre fazer o pensamento estar em movimento. Quem se beneficiará disso é a ação.
Diante das duas afirmações citadas, estes exercícios de que falo levam a perguntas do tipo: o fascista é aquele que não reconhece o outro, mas, e eu, devo reconhecer o fascista? A pergunta pode parecer retórica, mas não a vejo assim. O que faço com a representação interior e com o embate diante de alguém que não aceita o diálogo? Eu quero dialogar com ela ou a quero calar?
Ou então: a reiteração da maior importância do social não termina por criar um interdito na abordagem dos exercícios da criação da subjetividade enquanto tarefa individual? É possível criar revolução sem que cada um dos combatentes seja sujeito? No limite, podemos pensar que se se imagina criar um coletivo cujos integrantes não têm conhecimento da própria individualidade (ou subjetividade) talvez o projetado seja algo impossível ou mesmo catastrófico. Quem é essa pessoa que diz: “Pertenço a este conjunto?”
Para Freud (O mal-estar na civilização), a ideologia do amor universal, bastante presente na origem do nosso humanismo e da nossa esquerda (que têm bases cristãs), está equivocada por duas razões. Em primeiro lugar, ao defender que a melhor atitude é a de amar a todos por regra e sem esperar nada em troca, sou injusto com o objeto (cada pessoa), pois não pergunto a ele se quer ser amado. Tiro dele(a) o direito de escolha.
Em segundo lugar, nem todos os seres humanos são dignos de amor. Uma posição “naturalista”, que afirmasse o contrário deste argumento, estaria também justificando uma postura ideológica de piedade, que não quer assumir que cada ser humano pode cometer erros catastróficos. (Veja-se nosso atual presidente, um ser histórico e não um homem inocente.)
As objeções de Freud podem parecer frias e inviabilizadoras de um humanismo, mas defendo aqui que não se trata disso. Trata-se de fazer aqueles exercícios que mencionei no começo desta crônica e ver até onde levam. Desdobrando este argumento freudiano, podemos trazer à discussão algumas forças enormemente autoritárias e geradoras de neurose e inação que estão na raiz daquilo que para nós aqui interessa, ou seja, grande parte dos discursos críticos e humanistas, inclusive (ou principalmente) no Brasil atual. Posso amenizar esta qualificação e dizer forças “inconscientemente latentes”, se isto fizer a nós mesmos enfrentarmos o nosso provincianismo esquerdista de maneira mais honesta.
Uma dessas forças inconscientes é a ideia de que a organicidade social é um fato indiscutível e que deveria ser percebido para se construir melhores formas de coletividade, sendo um defeito não a perceber. Briga-se pelo fortalecimento da ideia de que somos um único corpo, de que nossos gestos interferem na ordem de um todo e que, por isso, devemos ser responsáveis por eles. Isto, porém, é um artifício argumentativo, não uma realidade.
A possibilidade que muitas vezes não queremos ver é a de que este “todo” é uma soma artificial de múltiplas forças dissonantes, diferentes, instáveis, ora recolhidas (não-presentes), neutras, etc. Forças estas que, em boa parte dos momentos, não querem se relacionar umas com as outras e devem poder não querer. Caso contrário, não quererão. O tamanho das cidades e das formas de organização é pra lá de imenso, tornando impossível sustentar ideias de corpo social uniforme.
Também pressupomos constantemente, com a ideia de justiça universal tradicional, que o amor é melhor do que o desamor. Isto pode ser visto também como nociva mistificação. No lugar de amor podem estar infinitas coisas. Dentro desta lógica, porém, um sujeito que recusa uma oferta positiva de comunicação e mostra de solidariedade, em situações tanto sociais quanto aleatórias ou burocráticas, é tachado de alienado. Podemos fazer a crítica de que um sujeito, se for digno deste nome, deve sempre poder optar se quer expressar seus desejos, sua intimidade, ou não. Para serem conscientemente políticos os sujeitos devem escolher.
Na infinita diversidade de possibilidade de composição de subjetividade, inclusive dentro do mesmo sujeito em momentos diferentes, pode-se encontrar ausência de entrega constante ao desempenho do papel de humanista. Também todas as formas de subjetivação podem ser como que cheias de vazios e espaços tensos que simplesmente no momento não podem ser preenchidos.
O papel de solidariedade da esquerda brasileira tem origem cristã e isto quer dizer tudo acima mais uma coisa fundamental: a arte, esta importantíssima forma de educação, fica em segundo plano em relação a ações de redenção social ainda hoje no Brasil atual.
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Continuo na próxima crônica!
Um abraço e até lá.
Diogo Araujo é doutorando em literatura pela UFSC.
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