Retrospectiva: Falácia neoliberal no mundo do trabalho

 

Foto: Ulrike Mai / Pixabay
A face escondida das causas do sofrimento no mundo do trabalho

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

Mary é advogada em uma grande empresa de consultoria jurídica. Seu contrato de trabalho é de 8 horas por dia, com férias anuais de 30 dias. Tem um salário muito bom, e uma situação financeira bastante confortável. Acontece que Mary não consegue cumprir seu horário de trabalho e tampouco suas férias. Para manter seu trabalho em dia e sofrer menos com o acumulo de trabalho que lhe acarreta pressão psicológica e uma ansiedade constante, Mary trabalha até 12 horas por dia, leva trabalho aos sábados e domingo para fazer em casa e seguidamente vende suas férias para não sofrer com o acúmulo de trabalho na volta.

Conceição é operária em um frigorífico especializado em cortes e embalo de aves. Seu contrato de trabalho é de 8 horas por dia, com direito à pausa de descansos à cada 1 hora tendo em vista o esforço repetitivo e as condições climáticas das salas do frigorifico. Além disso deveria tirar um mês de férias por ano. Para manter o índice de produtividade exigida pela empresa, as horas de pausa não são respeitadas e, devido ao baixo salário, Conceição vende parte de suas férias anuais. Conceição precisava dessas férias, de um salário mais digno e de pausas constantes na operação dos cortes das aves sob pena de danificar suas mãos e perder a força de seu principal utensílio de trabalho: suas mãos.

Esses dois exemplos, embora fictícios, é a realidade vivida por milhares de trabalhadores no mundo do capitalismo neoliberal. Tanto Mary quanto Conceição sofrem por questões ligadas ao seu trabalho. Um sofrimento que tem levado milhares de trabalhadores às doenças físicas e psíquicas muitas vezes irreversíveis, quando não ao suicídio.

Neste artigo a questão que gostaria de discutir é a de saber até que ponto os indivíduos que vivem no mundo do trabalho precário e que sofrem com esta situação possuem, primeiramente, a consciência de efetivamente estarem vivendo uma situação precária, e em segundo lugar, que a sua precarização, quando esta é reconhecida,  talvez não ocorra pela sua falta de capacidade de se inserir no mundo produtivista do capitalismo tardio, como é seguidamente pronunciada pelo discurso da sociedade, mas é devido a todo um sistema de dominação capitalista neoliberal que arrastou para as margens da sociedade milhares de indivíduos que se encontram em situações senão de miserabilidade, mas de pobreza relativa.

Minha hipótese para desenvolver o tema é a de que os próprios atores do mundo do trabalho naturalizam seus sofrimentos, e não o compreendem como parte de um verdadeiro problema social, político e econômico que perpassa seus próprios esforços para superar tal situação. O sofrimento social está evidentemente no seio das experiências subjetivas, nos danos físicos e psíquicos infligidos por nossas sociedades capitalistas aos menos poderosos, aos mais pobres, aos mais precários e resultam em enormes feridas psíquicas e relacionais.

Há uma identidade social que é produzida pelo sistema liberal que se reforça no neoliberalismo, segundo a qual cada indivíduo é capaz de se fazer sozinho. O trabalho e o sucesso são resultados apenas do esforço individual. Esta é uma falácia que traz consequências desastrosas para a parcela que está no nível mais baixo da pirâmide social. É doloroso suportar o discurso proferido no capitalismo de consumo pós-industrial segundo o qual a determinação individual é suficiente para escolher ser qualquer coisa. A realidade das classes e as limitações cruéis da pobreza, no nível educacional, na entrada para a universidade, nas oportunidades de emprego é mascarada pelo discurso neoliberal de que o sujeito autônomo e racional tudo pode. Esse discurso acaba fazendo com que as vítimas do sistema se culpabilizem por seus próprios fracassos.

O indivíduo que se encontra em uma baixa escala social e que é estigmatizado por supostamente não ter conseguido se inserir no sistema capitalista produtivista acaba por compartilhar o mesmo sistema de crenças que o resto de sua cultura, isto é, que a culpa por este insucesso é inteiramente sua. Os próprios padrões incorporados na sociedade preparam estes indivíduos para reagirem de tal sorte que o que os outros veem como sua falha, leva-os inevitavelmente a concordar que ele fica aquém do que ele realmente deveria ser.  Vergonha torna-se um sentimento experienciado cotidianamente.

E é essa vergonha que causa sérios danos para construção da identidade. Os indivíduos acabam interiorizando a ideia que eles não se encaixam mais no grupo e estão excluídos de todas as possibilidades.

Uma abordagem psicossocial está justamente interessada na relação entre biografias individuais e processos sociais e com os mecanismos a partir dos quais as relações sociais se tornam internalizadas. Os relatos individuais mostram a internalização da dor, e a dificuldade que os indivíduos que vivem em condições subalternas encontram para assumir um outro lugar no mundo senão àquele que já foi internalizado.

O sofrimento social refere-se à dor e à perda que acompanha a miserabilidade e o rebaixamento que são consequências da existência da opressão e dominação nas sociedades democráticas de capitalismo tardio. O poder se naturalizou. A vergonha e a humilhação acabam por se tornar destacadas das relações sociais de poder que as geraram. Daí que o sofrimento se torna individualizado e internalizado e incorporado na subjetividade como algo puramente dependente do sujeito.

O indivíduo que sofre em consequência de suas condições precárias, seja pela falta de emprego ou pela condição de pobreza, na maioria dos casos, recusa a autopiedade. Seguidamente a culpa pelo seu estado de pobreza ou miserabilidade ou estresse no trabalho é atribuída a si mesmo. Serge Paugam, sociólogo francês, dedicou-se a entrevistar pessoas que se encontravam em diversas situações de precariedade: desempregados de longa data, recém desempregados ou pessoas que não possuíam o status de trabalhador. A maioria dos entrevistados sentem-se culpados por sua condição e ficam envergonhados de serem obrigados a pedir ajuda à assistência social. Mesmo na França, país que colocou em prática vários dispositivos de ajuda financeira aos desempregados ou aos pobres, a grande maioria destas pessoas recusam categoricamente a assistência e possuem muito escrúpulo para pedir uma intervenção ou para se beneficiar de uma ajuda social. Muitas vezes esperam o último momento para se dirigir a um balcão da assistência social. O desconforto em procurar a assistência social transforma-se rapidamente em humilhação. Humilhação sobretudo em se tornar identificado como fazendo parte da sociedade dos derrotados. Há um apelo ao orgulho por parte dos entrevistados. Ninguém quer se ver unido ao tipo de gente que frequenta esses espaços institucionais. Há uma mistura entre o mendigo de rua, o desempregado e o que nunca trabalhou. O desempregado não quer ser comparado ao mendigo de rua, o que cheira mal, ou aquele que nunca trabalhou.

Depender da assistência social é a revelação de que se é pobre e o recurso a ela é a última cartada do jogo.

A categoria de assistido também provoca uma outra forma de estigmatização que é o de serem tachados de aproveitadores do sistema, e preguiçosos que não possuem capacidade ou não querem trabalhar. No Brasil, a partir da implementação do bolsa família observou-se uma exacerbação deste tipo de discurso. Apesar da pobreza no Brasil ser bem diferente da pobreza na Europa, por se tratar de um país onde uma vasta população se encontra na mesma situação de precariedade, o discurso de culpabilização por parte da sociedade que não vive na pobreza não é menor. O que esse discurso acarreta é uma interiorização da culpa que provoca um sofrimento duplo que acompanha aquele primeiro sofrimento ligado a falta de bens materiais de primeira necessidade.

Segundo o psicanalista Wilfred Bion (1962), algumas experiências são mais difíceis de serem digeridas, porque nos faltam os recursos para simbolizar e dar sentido a elas. São experiências que nos foram forçadas e não aquelas que escolhemos livremente. Essas experiências ficam presas no nosso sistema como toxinas psíquicas.  A dificuldade em dar sentido a estas experiências, ou a digeri-las no vocabulário de Wilfred, advém do fato que elas não são reconhecidas publicamente. Não é possível fazer um discurso sobre elas, a partir do qual as experiências poderiam ser nomeadas e lamentadas. O que acontece no mundo do trabalho precarizado é que as experiências de sofrimento advindo deste são sentidas apenas como uma falha do indivíduo, e não uma falha ou uma perversidade do sistema. Por isso as experiências de sofrimento não são compartilhadas, mas antes escondidas e se transformam muitas vezes em vergonha.

Há um interesse na ocultação do sofrimento que decorre dos arranjos políticos e econômicos nas sociedades de capitalismo tardio. Durante as rápidas mudanças sociais, com a desindustrialização, de-localização de empresas, fechamentos, desempregos em massa, as pessoas em geral tornam-se sujeitos passivos dessas mudanças em vez de serem seus agentes. Não há mais escolhas no mundo do trabalho. A desindustrialização destrói comunidades e identidades.

Segundo Dardot e Laval, no livro “La Nouvelle raison du monde” (2009), “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é primeiramente e fundamentalmente uma racionalidade, e como tal tende a estruturar e organizar, não somente a ação dos governantes, mas até mesmo a conduta dos governados”. Os autores esclarecem uma ideia muitas vezes mal interpretada segundo a qual tudo seria mercado na concepção neoliberal. Mas não é isso. O essencial no neoliberalismo não é que tudo seja mercado, mas antes que a norma do mercado se imponha para além das relações de mercado. Dizem os autores: “Considerado como racionalidade, o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade”.

Essa ideia central dos autores nos faz compreender o porquê dos indivíduos que vivem no mundo do precariado, na maioria das vezes, se culpabilizarem por suas condições e se verem inteiramente responsáveis por estas.  O sistema neoliberal vende a ideia segunda a qual cada um deve se fazer sozinho. É a ideia do “Self-made man”. A regra do mercado é a concorrência, a maximização do lucro, a produção desenfreada, a autonomia do manager, e tantas outras.

Há um primeiro sofrimento no mundo do trabalho que decorre tanto da falta material para uma subsistência digna, de uma luta constante que é travada todos os dias pelas condições difíceis nas fábricas, nas empresas, que estão ligadas desde a incerteza da manutenção do emprego que dê o mínimo de subsistência, até as condições sofridas na sua realização. E aqui estou pensando nos indivíduos que trabalham em frigoríferos, nas fábricas cujos gestos repetitivos durante longos períodos e poucos momentos de descanso causam atrofiamentos nas mãos, por exemplo, e dores insuportáveis no corpo, mas também, indivíduos que aparentemente possuem uma vida financeira estável decorrente de seus trabalhos, mas que sofrem pressões psicológicas extremas levando a problemas de saúde bastante graves. E há igualmente um segundo sofrimento que é o resultado da culpa generalizada pelo fracasso que muitas vezes leva os indivíduos a se afastarem dos grupos de pertencimento. Os indivíduos por não possuem um trabalho, ou o possuem de forma bastante precária se culpabilizam por esta condição. Falta-lhes uma consciência de que os problemas advindos do mundo do trabalho possam ter causas que estão para além de suas capacidades individuais, como por exemplo decorrente das artimanhas de um sistema neoliberal que arrasta para o mundo da incerteza e da precariedade milhares de indivíduos globalmente.

Evania Reich

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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