Retrospectiva: Crônica sobre em uma ponte, segundo Guigo Ribeiro

#AOutraReflexão

#SomandoVozes

 

Pulou da ponte na vista do povo

Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.

-PULA, PORRA! – uma voz.
-PULA LOGO, PORRA – outra voz.
– PULA! PULA! PERAÍ! PULA NÃO! PULA NÃO QUE MEU CELULAR DE PAU E VOU REINICIAR! – ainda outra voz.

Pessoas rompem com o destino e ali permanecem. Estão felizes. A rotina mata e vão matá-la presenciando uma morte em potencial. Como de costume, foi alguém olhando e que atraiu outros. Coitado de quem não se deixa levar pelo olhar do outro e perdeu, pensavam alguns. Chegou um, dois, seis, dez. Formou-se uma significativa torcida não uniformizada. Os gritos começaram tímidos e alguém possibilitou a coragem necessária ao fazer-se ouvido. Aí foi geral mesmo.

Explico! Havia uma ponte feita pela prefeitura que facilitava os trabalhadores irem para seus trabalhos. Ela nasceu como um projeto de melhoria e foi abandonada. Da maquete inicial, perdeu a beleza. Tanto que nem mais ligavam pra ela. Era uma ponte. E sua única serventia consciente era passar no ônibus. Esse era seu uso. Talvez por isso, numa análise rasa e despretensiosa, aquele homem calculando seus minutos finais se tornou tão atraente. Antes era concreto e só. Ah… e a frase que alguém escreveu há tanto tempo que perdeu a cor:

– EU AMO O AMOR!

O homem não almejava as manchetes vista sua enorme vergonha de estar em evidência. Não tinha amor anterior (recente) para chantagear usando a própria vida. Não tinha filhos pra chorar sua ausência, tão pouco para destiná-los à terapia no futuro por este evento. Brigas, acusações… nada disso. Eu sei. Me contaram depois. Sua angústia nasceu quando o teto de sua casa arrebentou numa chuva e seus bens foram alagados por boletos. Ao realizar a soma de teto quebrado + bens estragados + tempo dedicado à resolução + transtorno do imprevisto, chegou ao resultado final: desemprego. Por sorte não havia apostado as fichas no dito eleito que, até aquele momento, transitava pela vida fazendo merda. Eis uma pequena alegria. Caso contrário, já tinha pulado há tempos!

– NINGUÉM CHAMA A POLÍCIA, HEIN! SE QUER MORRER, MORRE! – com o celular apontado.
– PULA LOGO! VOU PERDER O FRETADO!

– ÁGUA É 2,00! SUCO É 2,00!

No espetáculo, nasce uma figura do lado da plateia sem ingresso. Uma senhora um tanto mais na terra que o futuro morto. Olha a incerteza do homem e entende o tempo como terrível pra certas decisões. Entende que querem comer aquela alma para depois cagar  numa esquina de boteco. Pacientemente cruza a multidão entre pedidos de desculpa e licença, se aproxima dentro do que o momento autoriza e sente os olhos do homem
visualizando cifras. Merda de papel. Arruma o lenço na cabeça, joga levemente a bolsa pra trás e dispara:

– Pula não, seu moço. Vai que calha de ter mais vida pra tu viver. Aí se espatifa no chão e nem se dá a chance de um big mac pra levar todo e qualquer mal da vida. Volta!

O homem a olha com susto, mas sem força pra perder a convicção. Ainda mais que havia tanta gente ali e não queria ser vaiado. Ela entende isso e se aproxima. Inclusive, assumindo a mesma posição e correndo o mesmo risco por estar ali, naquela altura, se equilibrando e flertando com o além. Ela se aproxima pois se recorda – acredite se quiser – que leu em algum lugar e em algum momento da vida que se colocar na posição transmite confiança.

– Volta, homem! Volta que logo vai ter sirene cantando aqui! Vão te ajudar!

O homem relutava sem dizer nada. O dizer nada era parte grande de sua existência. Guardava tudo na caixa do peito. Se fala, riem. Se fala, falavam que é viadagem. Pra quê? Montava no silêncio, engatava marcha e seguia pela estrada da solidão.

– Desce! Não ocupe o lugar dos outros.

E a profecia se fez como previsto. Sirenes. E revolta na plateia pela novela que parecia ir pro fim sem a morte do protagonista.

– PORRA!!! TUDO ISSO PRA NADA? – uma voz.

– TÔ ATRASADA DE BESTEIRA!!! – outra voz.

– ÁGUA É 2,00! SUCO É 2,00!

O homem cedeu! Alguns fardados se aproximavam do lugar e teriam que liberar o trânsito pra ontem. E assim foi. O homem estendeu a mão pra senhora e desceu ao nível seguro para, prontamente ser conduzido pelas forças presentes. A senhora olhou o moço indo, a plateia lá embaixo e pulou com alegria pra dali segundos arrebentar o crânio no chão.

Imagem: Homem atravessando uma ponte – pinturaartistica-babu.blogspot.com

Guigo Ribeiro é ator, músico e escritor, autor do livro “O Dia e o Dia Que o Mundo Acabou”, disponível em Clube de Autores.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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