Brasil distópico: o fim do começo da redução da desigualdade social
Por Laís Fernanda de Azevedo, para Desacato.info.
Que o Brasil está enfrentando uma insistente recessão econômica não é novidade, assim como não é novidade que o país é um dos mais desiguais do mundo, seja em termos de renda, de acesso à educação ou à saúde. No entanto, também é verdade que a partir dos anos 2000 houve uma sistemática tentativa de redução dessas desigualdades, com resultados bastante positivos e férteis, que foi interrompida a partir de 2015. Voltamos a patamares de pobreza e de desigualdade de renda de mais de uma década atrás [1].
Segundo os critérios do Banco Mundial, pessoas com rendimento de até U$5,50 diários são consideradas em “situação de pobreza”, aquelas cujo rendimento não ultrapassa U$1,90 são consideradas em situação de “extrema pobreza”. No Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) estabeleceu, em 2015, o ponto de corte de R$ 70,00 per capita para definir famílias em situação de extrema pobreza e o dobro desse valor (R$ 140,00) para definir a pobreza, valores bem abaixo daqueles considerados pelos parâmetros internacionais, mas utilizados para a avaliação do fornecimento do programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada. Os dados da PNAD contínua (Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio) mostram que em 2017 aproximadamente 54,8 milhões de pessoas (26,5% do total da população) se encontravam em situação de pobreza, sendo que 15,3 milhões (7,4% do total da população) delas em extrema pobreza, níveis próximos aqueles de 2004 e muito distantes de nosso auge, 2014, quando aproximadamente 5,2 milhões de pessoas estavam em situação de pobreza extrema [2].
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Estudos recentes oriundos do grupo de pesquisa do “World Inequality DataBase” (WID) de Thomas Piketty, mostram insistentemente que o Brasil é um dos países com a maior concentração de renda deste planeta, ficando atrás apenas da Índia e da África do Sul. Para se ter uma ideia, em 2015, os 10% mais ricos se apropriaram de, aproximadamente, 54% de toda a renda nacional, um volume maior de renda do que o pertencente aos 90% restante de toda a população. Além disso, esses estudos, ao incluírem dados do imposto de renda em suas análises, chegaram a considerações de que os avanços na redução da desigualdade de renda entre 2000 e 2015 foram no mercado de trabalho, com redução da desigualdade dos salários de aproximadamente 12% no período, medido pelo índice de Gini dos rendimentos do trabalho. Este índice varia de 0 a 1 e indica o grau de concentração de renda de uma economia, quanto mais próximo de 1 maior o nível de concentração da renda, quanto mais próximo de 0 mais igualitária é esta economia em termos da distribuição. Nesta mesma metodologia, quando consideramos a desigualdade total da renda (salários + lucro), o índice de Gini recuou muito pouco, em torno de 4% em 15 anos, resultado tímido que é reflexo da concentração abismal de renda nas mãos de poucas pessoas [3]. Como pode ser observado no gráfico a seguir.
Fonte: WID. Elaboração Própria.
Isso nos traz uma lição importante: o mercado de trabalho é o mais responsivo às políticas e arrisco dizer que o que aconteceu no país foi, na verdade, crescimento econômico com inclusão social, não necessariamente com distribuição de renda. Mas por que, então, esse aumento da pobreza nos últimos anos importa? Por que é importante para uma economia como a nossa, de dimensão continental, incluir as pessoas e reduzir as disparidades sociais?
Para além de atributos óbvios de humanidade e justiça social, incluir os “pobres” nos mercados de trabalho e consumo significa crescimento econômico. Todo o crescimento experimentado pelo Brasil durante a primeira década dos anos 2000 não foi mera sorte de um cenário externo favorável e do “boom das commodities”, como alguns gostam de dizer, houve um esforço sistemático de geração de empregos e valorização dos salários, principalmente, o salário mínimo, de investimento público em saúde e educação e, também, ampliação de políticas de acesso ao crédito. Tudo isso vai ao encontro do que os economistas chamam de “demanda agregada”, que em palavras simples é o consumo das famílias, das empresas e do governo. E é esta demanda agregada que faz o país crescer.
A pobreza é apenas um aspecto da dimensão da desigualdade social, precisamos incluir nesse pacote o acesso à saúde e à educação, a questão do gênero, raça, cor, oportunidade e mais alguns outros atributos.
Quando o governo gasta com educação, saúde e assistência social, ele amplia os postos de trabalho, aumenta as oportunidades de qualificação e melhores empregos, reduz desigualdades e, por consequência, aumenta o volume renda circulando na economia. Com mais renda, os empresários veem um potencial maior de consumo para seus produtos e investem mais, gerando mais empregos e mais renda. Essas novas pessoas empregadas vão aumentar o nível de consumo fazendo com que a economia cresça. Isto nada mais é, novamente, a tal da demanda agregada gerando um ciclo virtuoso de crescimento econômico.
É preciso deixar de pensar que reduzir pobreza e outras desigualdades sociais são coisas de comunista. Muito pelo contrário, isso é coisa de capitalista. O crescimento econômico, sem aumento da demanda agregada é absolutamente limitado. O Banco Mundial irá lançar um relatório em outubro de 2019 intitulado “Pobreza e Prosperidade Partilhada 2018: Juntar as Peças do Quebra-cabeça da Pobreza”[4], onde explicita justamente a preocupação mundial com a desaceleração da redução da pobreza, cujas implicações afetarão diretamente o crescimento econômico mundial. Nas palavras de Martin Ravallion, ex-economista do Banco Mundial e professor da Universidade Georgetown (EUA) “É preciso mostrar mais às pessoas como a desigualdade é custosa. Não é somente ética e moralmente repulsiva: também é uma má notícia ao crescimento econômico. Se a desigualdade não é bem gerida não ocorre muito crescimento e não será possível aproveitar seus benefícios. Tudo está conectado.” [5]
Mesmo diante de todas as evidências ao redor do mundo, o Brasil parece viver uma distopia, fazendo maratona na contramão da humanidade. O governo vem desde 2015 cortando gastos nos setores que justamente reduzem desigualdades: saúde, educação e assistência social. Só pra listar algumas medidas temos: a PEC 55 do Teto dos gastos (2015); a Reforma Trabalhista (2016); a desindexação da correção do salário mínimo por lei (2017); a Reforma da Previdência (2019); sucessivos cortes e contingenciamentos nos orçamentos da saúde e da educação básica e superior; redução do orçamento e da concessão do benefício do Bolsa Família (corte de 1,5 milhão de bolsas em 2017).
Todas essas medidas tinham como objetivo controlar as contas do governo (déficit público) e retomar o crescimento, no entanto, nada disso se procedeu. As consequências estão refletidas no desempenho econômico medíocre dos últimos 4 anos, com o encolhimento do PIB da ordem de quase 5% (IBGE). A miséria aumentou (FGV Social) [6] e a renda média dos trabalhadores retrocedeu em cerca de 4,5% (FGV Social) [7], o que refletiu também na queda de quase 11% no nível de bem estar dos brasileiros (índice calculado pela FGV Social). [8] O dado mais alarmante é o aumento da taxa de desemprego de 7,5% em 2014 para 12,7% em 2019 e se considerarmos a taxa combinada de desemprego e subocupação (por insuficiência de horas trabalhadas), esse percentual chega a 19 % da população ativa, aproximadamente 21 milhões de pessoas. Diante disso, existe um quadro de precarização do trabalho, onde pessoas com qualificação vivem a “uberização” [9] de suas funções e aquelas que antes ocupavam cargos de operárias rumam para a informalidade.
O cenário para 2020 não é mais animador, o orçamento público federal terá redução de 15% se comparado à 2018, o menor volume de gastos dos últimos 10 anos, atingindo áreas da saúde, educação e seguridade social, de acordo com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) [10] enviado hoje para o Congresso Nacional. Além disso, o salário mínimo não terá elevação real e os investimentos em custeio e manutenção da máquina pública também será reduzido. Medidas estas que dão um dramático “adeus” para a demanda agregada.
O sonho de um Brasil mais inclusivo está cada vez mais distante. Vivemos o paradoxo da doxa, as verdades viraram mentira, as prioridades sociais foram invertidas e parece estar cada vez mais difícil pensar fora dessa “excentricidade”. O progresso econômico se distancia, a alteridade social se deteriora e os absurdos são exaltados, aproximamo-nos de uma distopia em prática. A redução das desigualdades que outrora foi meta e programa de Estado, hoje parece ter se tornado a inimiga número um da economia. Mal sabem eles que essa é a saída mais provável para Brasil.
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/08/politica/1544225150_329691.html
[3] AZEVEDO, Laís Fernanda. Ensaios sobre Distribuição de Renda: apreciações teóricas e análise empírica para o Brasil entre os anos 2000 e 2015. Tese de Doutorado em Economia. UFRGS. 2019.
[6] http://incid.org.br/sistema-de-indicadores/
[7] https://cps.fgv.br/Pobreza_Desigualdade
[10] LOA 2020 – Projeto de Lei nº 22/2019-CN.
Laís Fernanda de Azevedo é economista, com mestrado em Administração e Doutorado em Economia pela UFRGS
A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.