Retrospectiva: Acordar de um sono dogmático

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

A semana que passou foi de muitas emoções. Dois eventos importantíssimos para a história do Brasil se deram praticamente ao mesmo tempo: o lançamento do filme “Democracia em Vertigem” da cineasta Petra Costa e as declarações de Glenn Greenwald, na audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

Quem não se emocionou com esses dois momentos tem verdadeiramente um problema com a democracia brasileira. Quero abordar aqui apenas algumas reflexões sobre o filme.

As imagens escolhidas a dedo por Petra Costa nos fizeram derramar lágrimas. Assisti duas vezes e fui incapaz de conter as minhas. Muitos dos episódios históricos narrados pela cineasta eu já havia esquecido. Logo eu que sempre votei no PT e que segui os momentos de suas derrotas, mas também os de sua ascensão ao poder. O lindo dia em que pela primeira vez o Brasil elegia realmente um representante do seu povo sofrido.

A imagem de Lula, metalúrgico, jovem operário, líder sindical saindo nos braços de uma multidão é absolutamente comovente. Esse homem sem nenhuma instrução universitária, filho da pobreza do Brasil, que fala como um rei. Expressa-se com razão e emoção. E porque se expressa desse jeito consegue chegar ao cargo público mais importante de uma nação: a presidência. “Lula é a expressão de um ideal dos trabalhadores indo para a política”, diz a cineasta. Pela primeira vez na história do Brasil os trabalhadores se fazem representados. Há pela primeira vez na história do Brasil um momento de circulação de elites.  Essa circulação caracteriza-se pela ascensão a posições destacadas na sociedade de lideranças das classes subalternas, a chamada não elite. Lula é o representante da não elite do Brasil. Perde as eleições em 94 e 98. Mas em 2003 ele toma posse. A não elite chegava finalmente ao poder.

Seu primeiro discurso incluía esta frase que Petra faz questão de nos relembrar: “enquanto tivermos um irmão e uma irmã brasileira passando fome, teremos motivos de vergonha”. Essa frase não tem falsa promessa, não tem demagogia. Lula dirige o seu discurso ao povo, ao mesmo povo de onde ele saiu. É um compromisso com os desmunidos, com os pobres desse imenso país. Não tem falcatrua nisso. Lula é pura emoção, mas também razão no seu discurso. Razão porque ele sabe que o Brasil só pode crescer se incluir seus excluídos. Se acabar com a fome e a miséria que assolavam nossa nação. Com este fim o governo federal cria em 2003 o Programa Bolsa Família que atendia 3,6 milhões de famílias em janeiro de 2004. Em 2010, o número de beneficiados já chegava a 12,8 milhões. Apesar do valor do bolsa representar uma parcela ínfima da renda total das famílias brasileiras, 1,28 em 2011, o programa ainda assim foi responsável pela redução substancial nos índices de pobreza, e consequentemente na desigualdade de renda no Brasil. O aumento igualmente do salário mínimo diminuiu a disparidade salarial, ou seja, a diferença entre quanto ganhava o trabalhador mais pobre e quanto ganhava em média o conjunto dos trabalhadores da economia. Essas medidas aliadas aos tantos outros programas implantados pelo governo do PT e suas políticas públicas específicas retiraram milhões de brasileiros não somente da miséria, mas movimentaram toda uma classe assim chamada “classe C”, ou baixa classe média.

O filme de Petra é uma apologia ao governo do PT. Pouquíssimas críticas foram feitas. E para quem segue a política sabe dos tantos erros cometidos por este mesmo governo que retirou milhares de “nossos irmãos” da miserabilidade. Mas, esse não era o intuito da cineasta.  Assim como Petra, este artigo também não tem este intuito. O destaque é o papel das emoções positivas na política. Emoção de amor, conciliação que Lula demonstrou durante seu governo. Queria conciliar com seus rivais, mas queria continuar amando o povo brasileiro. Claramente não foi compatível, eis que o interesse da elite que Lula passa a apoiar não é a mesma do povo que ele tanto amava.

As emoções podem ser consideradas ruins na política. Existe toda uma linha de pensamento segundo a qual na política não deve haver emoção, mas somente razão. Os atos que realizamos no ímpeto das emoções podem ser destruidores, e, portanto, a política deve se esquivar de as tê-las.

Mas também as melhores e maiores conquistas dos povos se deram na emoção. Lutas emotivas foram travadas para que pudéssemos conquistar direitos que eram negados às minorias. As emoções possuem um valor importante em nossas vidas, e não é preciso substituir a emoção pela razão, mas antes compreender o seu lugar na razão.

Afeto fornece alguns dos nossos objetivos mais básicos. Melanie Klein acreditava que o amor e o ódio são as categorias básicas da existência humana, uma posição compatível com a análise da política de Carl Schmitt como dividindo o mundo em amigos e inimigos. Na medida em que nós amamos outros humanos, seu bem-estar se torna um dos nossos objetivos ao lado do nosso próprio bem-estar. E temos satisfação em prejudicar aqueles que odiamos. Certamente, há momentos em que os objetivos do grupo são tão importantes que os indivíduos estão dispostos a sacrificar suas vidas para eles. Nós não podemos entender fanáticos e mártires a menos que possamos compreender o amor e o ódio pelos grupos.

E é isso que Lula soube fazer na maior parte do tempo de seu governo. Amou o povo brasileiro e quis seu bem-estar. E hoje a história mostra que ele sacrificou senão a sua vida, a vida de toda a sua família. A morte de Dona Marisa, que provavelmente adoeceu em função das pressões políticas e do ódio advindo do povo, é a maior prova desse sacrifício. Pessoas sensíveis adoecem quando são alvos de ódios avassaladores. É sabido que toda a sua família vive atualmente problemas financeiros gravíssimos devido a exclusão social. Não entraremos em detalhes. A Carta Capital fez uma matéria substancial sobre o assunto.

Lula é amado e odiado. Tem os que não suportam a sua emoção. Não suportam que ele fale do fundo do seu coração. Mas, quando a emoção é apreciada, mesmo na política, desconfiamos daqueles políticos que não a possuem. Consideramos suas ações secas e frias. Aqui se está falando de uma emoção voltada para o bem. Uma emoção positiva, propositiva para o bem dos cidadãos. Claro que existem emoções destruidoras, raivosas, carregadas de rancor. O momento de votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff estava cheio dessas emoções rancorosas. Vimos surgir na Câmara dos deputados homens e mulheres que nos representavam cheios de rancores. Representantes que nos passaram a perna. Que destruíram o nosso sonho de democracia. Como diz Petra: “temo que nossa democracia tenha sido apenas um sonho efêmero”.

Dilma Roussef é, portanto, a segunda protagonista de Democracia em vertigem. Que mulher! Havia esquecido o quanto eu a admirava. O quanto havia ficado orgulhosa de meu país por ter eleito pela primeira vez uma mulher. Dilma toma posse em 2011. Petra Costa soube focar a emoção no dia da posse. Chorei ao ver Lula, Dilma e dona Marisa abraçados. Os três representavam naquele momento o que a política pode ter de amor e não de ódio. Seus olhares e seus abraços rompiam com o gelo do que pode ser os protocolos de uma posse presidencial. Temer estava fora dessa emoção amorosa. Temer é o gelo, a cobra, a desunião. Lula e Dilma sabiam disso. O deixaram fora desse momento de amor, mas sabiam que não podiam ficar muito tempo assim.

Temer e sua corja destruíram Dilma e dona Marisa. E com elas o sonho de muitos brasileiros. O sonho de que ainda poderia ser possível continuar mudando os rumos da nossa jovem democracia. A dureza de Dilma e a sua suposta falta de emoção levara-a a destituição.

Talvez o momento mais triste da votação do impeachment tenha sido a comemoração dos apoiadores com seus cartazes “tchau querida”. Cartazes desrespeitosos, misóginos, raivosos. Uma emoção expressada em duas palavras que deveria envergonhar todas as mulheres que apoiaram este impeachment. E eu não falo aqui de Janaina Paschoal, essa deputada que vota pelo impeachment pelos netos de Dilma Rousseff. Quanta ironia! Quanto ódio em sua fala! Falo aqui de milhares de brasileiras que foram as ruas gritar pela destituição da primeira mulher presidenta. E não era qualquer mulher. Dilma era a representante de todas as mulheres que foram maltratadas por homens que sempre dominaram a política desse país.

Jasper em seu livro The Art of Moral Protest: Culture, Biography, and Creativity in Social Movements escreve que o ódio pelos outros nunca deve ser subestimado como motivo humano. O poder do pensamento negativo capta a nossa atenção mais urgentemente do que as atrações positivas, na maioria das vezes.  Em qualquer engajamento político, é possível que os jogadores comecem a se concentrar em prejudicar os adversários, em vez de fazer apostas originais disponíveis na arena. A polarização mutuamente destrutiva ocorre então, em que cada lado está disposto a arcar com enormes custos para prejudicar o outro lado. Nojo reaparece como parte do pacote de imagens negativas que afeta os seres humanos.

Essas emoções negativas propulsadas por uma mídia tendenciosa, uma elite inconformada da pouca perda de seus privilégios foram o estopim do “tsunami que destruiria a política brasileira”.

Agora só nos resta esperar que o povo acorde de seu sono dogmático. Que as investigações dirigidas pelo corajoso jornalista estadunidense Glenn Greenwald recuperem um pouco de emoções positivas para a nossa política, conseguindo afastar o ódio, tanto advindo da classe política, como de uma parcela de nossos cidadãos, que tão profundamente Petra nos fez ver em seu filme.

Evania Reich

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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