Por Ladislau Dowbor.
“O setor financeiro desvia, da sociedade e do Estado, 1,5 trilhão de reais por ano — quase o mesmo que todo o Orçamento da União. Os rentistas, que viveram e vivem do trabalho dos outros, precisam seguir o conselho que dão aos pobres que encontram pelas ruas”. Há um pano de fundo na crise que vivemos que pode ser resumido no tripé ambiental, social e financeiro. O nosso triângulo das Bermudas, para os que gostam de imagens. Resumidamente é o seguinte.
No plano ambiental, estamos literalmente destruindo o planeta, através do aquecimento global, da perda de biodiversidade (destruímos 52% da fauna do planeta entre 1970 e 2010 segundo o WWF), da liquidação das florestas, da contaminação generalizada das águas e assim por diante. Tecnologias de século XXI, que permitem extração de recursos naturais de forma quase ilimitada, e leis do século passado geram uma combinação insustentável. O planeta não aguenta.
No plano social temos as cifras estarrecedoras de 8 famílias que detêm mais patrimônio do que a metade mais pobre da população mundial. Apresentado de outra forma, 1% dos mais ricos detêm mais riqueza do que os 99% seguintes. Somos 7,45 bilhões de pessoas no mundo, e 80 milhões a mais a cada ano. Entre dois e três bilhões estão em condições econômicas dramáticas, presas na chamada armadilha da pobreza, em que a própria miséria trava as possibilidades de dela sair. E esses bilhões não são ignorantes nem resignados, sabem hoje que se pode viver melhor, e muros na fronteira mexicana ou em Israel, frotas da marinha no Mediterrâneo, ou as cercas eletrificadas na Europa não vão resolver o assunto. Vivemos um universo explosivo. Já não se fazem pobres como antigamente. Um New Deal planetário está na ordem do dia.
Os desafios ambiental e social estão devidamente estudados e sistematizados, e detalhados nos acordos de Paris e na Agenda 2030 de Nova Iorque. Sabemos o que deve ser feito e que medidas devem ser tomadas. Mas há o problema da mobilização dos recursos financeiros correspondentes, e a sua mobilização depende de capacidade política de decisão. Aqui nos defrontamos com o terceiro eixo, o financeiro. Não faltam recursos. O planeta produz anualmente 80 trilhões de reais de bens e serviços, o equivalente a 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. Dá para todos vivermos de maneira digna e confortável, mesmo sem buscar ideais de igualdade, apenas bom senso. Mas os recursos estão essencialmente em mãos de aplicadores financeiros, não de investidores produtivos. Os que detêm os recursos estão interessados em fazer os papéis render, não em promover o desenvolvimento. Basta lembrar que existem, segundo a revista The Economist, 20 trilhões de dólares em paraísos fiscais, 200 vezes os 100 bilhões que a Cúpula de Paris ambiciosamente se propôs a levantar a cada ano para evitar a tragédia climática. São recursos que não só não são investidos para fomentar a economia, como sequer pagam impostos. Bem vindos à era do capitalismo improdutivo.
A solução é óbvia: os recursos financeiros improdutivos, hoje em mãos de especuladores, precisam ser redirecionados para servir à reconversão tecnológica que nos permita parar de destruir o planeta, e para organizar o acesso a um mínimo de renda e a inclusão produtiva dos excluídos. Em particular, a guerra com os pobres tem de ser transformada em guerra contra a pobreza, articulando as políticas ambientais, sociais e financeiras.
Este quadro global, que gerou as três conferências mundiais de 2015 e desenhou a agenda mínima para 2030, se aplica rigorosamente ao Brasil. Estamos destruindo a Amazônia, contaminando os aquíferos e outras fontes de água, entupindo os alimentos de agrotóxicos, paralisando as cidades por opções absurdas de transporte individual. E no plano social a tragédia é total, com 60 mil assassinatos por ano, uma gigantesca população carcerária vivendo em condições medievais, cerca de 20 milhões de pessoas ainda presas na miséria total. Com as riquezas deste país, termos miséria é francamente um atestado de imbecilidade profunda das nossas chamadas elites, que buscam arrancar o que podem sem ver que estaríamos todos melhor com um desenvolvimento mais equilibrado. Estamos destruindo a riqueza ambiental herdada em vez de capitalizar o seu potencial, e mantendo o país entre os 10 mais desiguais do planeta. As compras em Miami vão bem obrigado.
No plano financeiro, então, francamente merecemos o diploma honoris causa. Segundo o Tax Justice Network os ricos do país mantêm 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, cerca de 1600 bilhões de reais. Não só não investem, como não pagam impostos. E são os primeiros a se cobrirem de bandeiras. Esses recursos não estão parados em alguma ilha, são administrados pelos bancos nossos e estrangeiros (se é que a distinção ainda tem algum significado), como por exemplo o Itaú e o Bradesco, em Luxemburgo, no Panamá ou outros numerosos abrigos. São alimentados pela evasão fiscal, que o Sindicato dos Procuradores da Fazenda estimou em R$ 571 bilhões em 2015. Os assalariados, que têm os impostos descontados em folha, não participam da festa, e pagam os impostos embutidos nos preços, os chamados impostos indiretos, que representam no Brasil a obscena cifra de 56% da carga tributária. E para fechar o caixão, de qualquer forma lucros e dividendos são isentos. No andar de cima da economia, estamos brincando de esconde-esconde com os recursos do país.
Naturalmente dirão que são recursos deles. Eles produziram tudo isso? A parte esmagadora dos lucros provém de aplicações financeiras, não de investimentos produtivos. Enquanto isso, as famílias e as empresas carregam uma dívida de 3,1 trilhões de reais neste início de 2017, 48,7% do PIB. Esta carga não é particularmente elevada. O que é monstruosamente elevado é a taxa de juros sobre estas dívidas: em média 32,8% ao ano, ou seja, 1 trilhão de reais ao ano, tirados da economia. O Estado de São Paulo, que não pode ser taxado de antipatia para com os grupos financeiros, ostentou esta manchete dominical no dia 18 de dezembro último: “Crise de crédito tira R$1 trilhão da economia e piora a recessão”. Em matéria interna, discretamente, este comentário impressionante, de que afinal a crise brasileira pode não ser devida ao problema do ajuste fiscal. Tal clarividência por parte da grande imprensa precisa ser louvada, mas só os desinformados puderam acreditar no conto da dona de casa que gastou demais.
A dona de casa realmente existente no Brasil, ou seja, a demanda das famílias, principal motor da economia, parou de funcionar por uma razão simples: está endividada. Em fevereiro de 2017, temos 58,3 milhões de adultos “negativados”, que é o termo educado que os bancos usam para se referir aos que estão quebrados, popularmente “com nome sujo na praça”. Explicação: dos 3,1 trilhões vistos acima, 800 bilhões representam dívidas das pessoas físicas em “crédito livre”, pagando uma média de 73% ao ano (seriam 3% ao ano na Europa). Isto representa uma sucção de 500 bilhões de reais, 8% do PIB, sobre a capacidade de compra das famílias. Com a redução do consumo das famílias enforcadas, as empresas param pois não têm para quem vender. A economia privada fica paralisada. A dona de casa foi esfolada pelos juros.
O prego no caixão vem da dívida pública: em 2015, com a Selic ainda em 14,5%, foram transferidos 397 bilhões de reais dos cofres públicos, essencialmente para intermediários financeiros e a classe média alta. Como funciona? Eu que sou professor de idade respeitável, tenho uma poupança, sobre a qual o banco me paga uma merreca que mal cobre a inflação. Mas o banco aplica estes recursos (meu dinheiro) no Tesouro Direto, onde vai render 6% acima da inflação, excelente rendimento ganho com dinheiro dos outros, de mão no bolso, sem precisar produzir nada. Os 397 bilhões (6% do PIB) poderiam estar sendo investidos pelo governo em infraestruturas e em políticas sociais. Vá somando: 15% do PIB tirados sob forma de juros das pessoas físicas e jurídicas, mais 6% tirados sob forma de juros por meio da dívida pública. É a dimensão da farra financeira.
Nenhum país pode funcionar assim. O rentismo que assola o país assumiu aqui uma ferocidade impressionante. Os parasitas, para usar a expressão de Michael Hudson, estão matando o paciente. O déficit público no Brasil se deve essencialmente aos juros absurdos que pagamos sobre a dívida pública. A taxa Selic baixou para 11%, mas com a inflação em baixa (caiu a demanda) em termos reais os custos para os nossos bolsos continuam iguais. De algum lugar tinha de vir o dinheiro que os bancos ganham, e isso alimenta o lucro dos bancos, a evasão fiscal e a vitalidade dos paraísos fiscais. O sistema funciona, mas para os rentistas, não para a economia. O FMI prevê que em 2017 o nosso PIB poderia crescer 0,2%, ou seja, ficaremos parados. São otimistas. [1]
Em 2013, o governo se viu frente a esta asfixia da economia pelos intermediários financeiros, por rentistas que não só não produzem como travam, e iniciou uma firme redução das taxas de juros; A Selic baixou até 7,5%, cerca de 2,5% acima da inflação (nos EUA 1%, na Europa 0,5%). E baixou os juros que pagam as pessoas físicas e as pessoas jurídicas utilizando os bancos públicos. A revolta dos rentistas foi instantânea, consideraram que o “pacto” fora rompido, e a partir daí não tivemos mais um dia de governo, e sim uma guerra permanente que culminou com o impeachment. A redução dos juros era necessária, indispensável do ponto de vista econômico, mas não era viável na relação de forças realmente existente. O resto é uma caminhada caótica que se aprofunda.
O “saneamento” financeiro proposto pelo governo golpista consiste essencialmente em reduzir ainda mais os direitos dos trabalhadores e dos mais pobres, de forma a puxar mais recursos para o andar de cima, visando dar às elites econômicas confiança para investir e recuperar a economia. A lógica não funciona: com menos direitos e recursos na massa da população, a demanda continuará estagnada, e ninguém vai produzir quando não há para quem vender. E não é o setor exportador, que representa apenas 10% da economia, que vai resolver.
Esta política apenas aprofunda a crise, e um número crescente de pessoas – e curiosamente um artigo do Estadão – se perguntam “até quando será a culpa da Dilma”. Estamos indo ladeira abaixo. A previsão de 0,2% de estagnação que vimos acima, por parte do FMI, representa um recuo frente à previsão anterior, igualmente ridícula, de 0,5% de crescimento. Não há como uma economia funcionar quando os recursos são transferidos do sistema produtivo (público e privado) para rentistas que nada produzem. E enquanto fazer aplicação financeira render mais do que investir na produção, não há como inverter o processo. O dinheiro dos ricos vai para onde rende mais.
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No plano propositivo, é essencial entender que o desenvolvimento sustentável é o objetivo. Isto significa melhorar a vida das famílias sem destruir o meio ambiente, e de forma socialmente mais equilibrada. O bem estar das famílias por sua vez depende da renda e do patrimônio acumulado em termos individuais: por exemplo ter um salário decente e uma casa digna e equipada. De forma geral é a renda que auferimos que permite assegurar o cotidiano e o patrimônio básico. Mas depende essencialmente também da capacidade do Estado assegurar o acesso ao consumo coletivo.
Muitos países ainda sofrem de deficiências básicas como ruas e estradas asfaltadas, escolas e hospitais adequados e assim por diante. Nos países desenvolvidos, em geral o consumo individual e o consumo coletivo são basicamente equilibrados. O canadense tem um salário mais baixo na média do que o americano, mas tem creche, escola e universidade gratuitos, um sistema de saúde universal e gratuito, as cidades são repletas de piscinas e outras formas de lazer público. O consumo coletivo universal e gratuito assegura um equilíbrio muito maior da sociedade, pois gera uma igualdade maior à partida. E é muito mais produtivo, pois a saúde não vira indústria da doença, nem a educação indústria do diploma. Particular importância adquiriu o livre acesso à banda-larga da internet, com muitas cidades no mundo já assegurando o serviço como direito básico universal e gratuito. Não à toa há uma correlação rigorosa entre o nível de desenvolvimento e bem estar dos países e a dimensão das políticas públicas.
Um terceiro eixo do bem-estar das famílias resulta da gratuidade de acesso aos bens comuns. Nos Estados Unidos muitas praias são fechadas ao público, pertencem às famílias ricas ribeirinhas. Eu imagino tentarem fechar Ipanema. Mas já há fortes tentativas no litoral entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Na Inglaterra e na Polônia, por exemplo, há o direito de caminhar livremente pelo interior, inclusive nos campos de propriedade privada, respeitando apenas uma distância das moradias. O acesso às zonas naturais de pesca e outras fontes de lazer ou de produção artesanal baseadas em bens comuns da natureza também fazem parte desta dimensão importante do bem-estar, particularmente estudada nos trabalhos de Elinor Ostrom.[2] A gestão dos bens comuns e a garantia de sua acessibilidade a todos fazem parte das políticas públicas.
Em outros termos, os avanços não vão depender dos resultados da guerra entre os que querem privatizar tudo ou os que batalham a estatização geral, mas de um equilíbrio do acesso à renda e patrimônio individual, ao consumo coletivo e aos bens comuns. Este equilíbrio exige por sua vez que haja um Estado democrático, e não capturado por grupos financeiros com interesses estreitos. O objetivo é uma sociedade equilibrada, e não apenas o PIB. Note-se que o consumo coletivo e o acesso aos bens comuns simplesmente não aparecem na contabilidade atual. E não aparece nas contas da renda nacional o quanto se retira das famílias através dos juros absurdos. No centro da visão propositiva, mais do que os objetivos que todos conhecemos, e que inclusive estão bem sistematizados na Agenda 2030, está a questão da governança: quem decide, e através de que mecanismos de poder, a alocação dos recursos.
É curioso como não estamos sozinhos nesta busca. James Galbraith resume os desafios nos EUA: “A alternativa progressista ao programa econômico de estímulos irresponsáveis e ganhos rentistas sobre o capital é um programa de pleno emprego, salários decentes, e amplos investimentos nas necessidades sociais, culturais e ambientais, assentadas em impostos que incidam diretamente sobre as rentas, lucros de monopólio e heranças, desestruturando (dismantling) assim a dinastia oligárquica que tem mandado nos Estados Unidos, através dos dois partidos, desde 1981.” [3]
O Banco Mundial, na sua avaliação da economia brasileira em 2016, qualifica o período de 2003 a 2013 como The Golden Decade, a década de ouro, e por sólidas razões [4] O aumento da capacidade de consumo da base da população gerou um círculo virtuoso, os programas redistributivos tiraram da miséria cerca de 50 milhões, a acumulação de reservas cambiais protegeu o país dos ataques especulativos internacionais, a política de soberania nas negociações internacionais gerou um clima de respeito pelo Brasil, e o Brasil cresceu de maneira sustentada durante dez anos. Uma política que se sustenta durante dez anos não é uma experiência fracassada, é um caminho a ser reconquistado. E a base, em termos econômicos, é simples, elementar: aumentar a capacidade de consumo da base da população gera demanda, aumento de produção, novos investimentos, e expansão do emprego, o que por sua vez estimula mais demanda. E os investimentos em infraestruturas e em políticas sociais asseguram o complemento de dinamização pelo lado do Estado. O crescimento econômico gerado assegura os impostos que permitem fechar a conta. Mas não pode sustentar um dreno dos recursos da ordem de 15% no setor privado e de 6% no setor público.
Algum mistério? Não há nada de novo a inventar, é retomar as conquistas, o caminho estava certo. O que não estava certo é o sistema de drenagem dos recursos produtivos para ganhos especulativos. Os rentistas, que viveram e vivem do trabalho dos outros, e travaram o processo, precisam seguir o conselho que dão aos pobres que encontram pelas ruas.
Fonte: COntrovérsia.