Por Renato Santana, da assessoria de comunicação do CIMI.
Indígenas denunciaram à Polícia Federal na terça-feira (15) um ataque sofrido em área retomada da Fazenda Guarani, no município de Ribeirão do Largo, microrregião de Itapetinga, na Bahia. A retomada ocorreu no domingo (13) e os indígenas alegam que a atual posse da Fazenda Guarani detém terras tradicionais esbulhadas de seus pais, avós e bisavós.
Conforme o ofício encaminhado à polícia pela Fundação Nacional do Índio (Funai), cerca de uma centena de indivíduos armados invadiu a área para retirar o grupo à força ferindo dois indígenas e uma idosa. Os homens foram encaminhados ao Hospital de Base de Vitória da Conquista sem risco de morte, mas com ferimentos de mais gravidade. Na quarta-feira (16) os indígenas foram ao Ministério Público Federal (MPF) prestar depoimento.
O grupo é composto por indígenas resistentes, em emergência étnica, integrantes dos povos Aimoré, Pataxó, Tupinambá e Mongoyó que permaneceram nas regiões de antigos aldeamentos, no caso o Cachimbo, sobreposto pela Fazenda Guarani, e o Verruga, onde hoje está a cidade de Itambé.
Conforme a argumentação dos indígenas, a Fazenda Guarani possui apenas 15 tarefas (6,45 hectares) com um registro de compra e venda, mas ocupa uma área de 200 hectares sem escritura localizada. A fazenda não possui benfeitorias ou é produtiva. O dono é o ex-prefeito de Itambé, Ivan Fernandes, presente durante o ataque aos indígenas conforme os vídeos que circulam nas redes sociais.
“É terra tradicional. Os meus pais e meus avós sempre falaram desse território, que minha bisavó morava nela com a família e a comunidade. É uma aldeia tradicional, várias famílias do nosso povo passaram por aqui. Esse antigo, seu João Cotia, sempre conversava isso comigo. Ele se tornou nosso cacique, mas ele faleceu e eu fiquei no lugar”, explica o cacique Capilé Pataxó Hã-hã-hãe.
O desenrolar do ataque
Na manhã da terça-feira (15), horas antes do ataque, um dos integrantes do grupo de whatsapp do Itapetinga Notícias avisou: “pra que a galera do grupo, pra quem tiver terra, pra quem tiver fazenda, pra quem tiver comércio, eu ouvi de um suposto índio, eles estavam em três, hoje às 6 horas da manhã, esperando a lanchonete abrir pra tomar café, e dizendo que só tava esperando ordem do chefe, do cacique pra invadir lojas e supermercados, o comércio também, aqui também é deles” (SIC).
O homem faz uma convocação: “Pra evitar que isso aconteça, vamos dar apoio ao ex-prefeito Ivan Fernandes e a qualquer fazendeiro que esses pilantra entrar. Então eu conto aí com o apoio de vocês pra gente tirar esse pessoal da fazenda do amigo Ivan Fernandes porque ele disse (o índio) que (Itambé) também é deles porque vão saquear os mercados também, as lojas também, o comércio em geral também” (SIC).
Mangtxay Pataxó, que também é artista plástica, afirma que os indígenas chegaram à Fazenda Guarani no domingo de forma pacífica. Anunciaram para um homem que estava na residência a retomada. “Com 30 minutos a PM chegou com tudo. Querendo bater, ameaçar de dar tiro. Quando começamos a gravar, baixaram o tom de voz e passaram a negociar. Negociamos pra não sair da área. Quando o fazendeiro viu que não íamos sair, começou a agredir a gente. Falou assim pra mim: ou você sai com seus pés ou vai sair debaixo do chão”, conta.
A indígena afirma que não houve agressão a ninguém que estava na fazenda e tampouco destruição de bens. “Depois da negociação, fomos para o ramal na entrada da fazenda. Esse ramal dá na rodovia. Ficamos ali e começamos a ver um monte de hilux, van e caminhão deixando gente, homens na fazenda. Passamos a noite em vigília e a movimentação não parou”, diz.
No ofício à Polícia Federal, os indígenas denunciam que perceberam a movimentação e o aumento da presença de pessoas. Parte eram moradores das cidades locais, mas entre eles identificaram ainda pistoleiros, funcionários de uma empresa de segurança da região e policiais militares à paisana. Alguns usavam máscaras.
Em Itapetinga, parentes dos indígenas foram procurados por integrantes do grupo que atacou a retomada e de acordo com o transcrito no ofício escutaram: “a gente vai chegar de uma boa para poder eles saírem da fazenda, se não saírem aí a gente vai ter que entrar com providência” (SIC).
“Quando o dia amanheceu a movimentação aumentou até que eles se reuniram, pra mim dava uns 400, e começaram a caminhar na nossa direção xingando, ameaçando, dizendo que iam expulsar, que iam matar, que iam bater. Gritavam essas coisas. Não teve como enfrentar. Então recuamos pra nossa aldeia, que fica na Fazenda São Francisco, a 1 km dali”, afirma.
Durante a saída, um pai e um filho foram agredidos pela turba. Um deles teve o maxilar fraturado e vários cortes, um deles sobre o olho direito. Mangtxay Pataxó diz que uma idosa também ficou para trás e acabou levando murros e tapas antes de liberada para voltar para a aldeia.
Após serem expulsos nesta terça, os indígenas receberam ameaças de que também seriam expulsos da Fazenda São Francisco, local onde estão no momento. Na São Francisco os indígenas dividem a área com um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST).
“Estamos ilhados, sem poder ir à cidade comprar comida. Na nossa aldeia plantamos de tudo, mas alguns alimentos só conseguimos na cidade como o feijão e o arroz. As ameaças são demais, toda hora chega uma nova. Acho que eles se empolgaram com o que fizeram”, analisa.
Território tradicional
A ocupação indígena na região é antiga. Como no resto do país, a presença foi sendo sufocada pelas frentes de colonização. As aldeias então foram retiradas de suas terras e seus integrantes levados aos aldeamentos Cachimbo e Verruga, ambos do século XIX. Eram administrados pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos e foram abertos pelo governo com o intuito de passar estradas na área liberada de comunidades indígenas.
Em face de tais características históricas e de ocupação recente, os estudos antropológicos para a identificação e delimitação do território são uma reivindicação dos indígenas. “A São Francisco e a Guarani estão nessa área tradicional que a gente quer porque é indígena. Tinha os aldeamentos mais os relatos de nossos pais e avós, dos mais antigos espalhados por outras aldeias”, declara Mangtxay Pataxó.
Em recente decisão, a Justiça Federal de Vitória da Conquista deu uma sentença favorável aos indígenas e sem-terras dentro de uma ação de reintegração de posse. O juiz João batista de Castro Júnior não concedeu. Os impetrantes agravaram, mas o Tribunal manteve a decisão e em 2 de setembro deste ano saiu a decisão do juiz da sentença, Castro Júnior, mantendo os indígenas e sem-terras na área.
“A compreensa?o do tema impo?e-se ser feita, portanto, nessa perspectiva estritamente constitucional, pois, nunca e? demais lembrar, a posse indi?gena na?o se subordina ao estala?o conceitual do Direito Civil, inclusive porque, entre os bens da Unia?o, a Constituic?a?o cataloga “as terras tradicionalmente” (art. 183, § 3o), garantiz assegurada tambe?m sob a Carta anterior (Su?mula 480, STF)” (SIC), declarou o juiz na sentença.
Sobre a identidade dos indígenas, questionada pelos autores do pedido de reintegração, Castro Júnior é taxativo: “esse fenômeno de identidade não pode ser visto estaticamente, o que implica dizer que pode sofrer naturalmente cambiantes bem captadas pela perspectiva linguística, como se vê de Ernst Cassirer: “Se, através da transformação das condições de vida, da mudança e do progresso da cultura, veio a instaurar-se uma nova relação prática entre o homem e seu ambiente, os conceitos linguísticos tampouco guardam seu ‘sentido’ original. Começam agora a deslocar-se, a mover- se de um lugar para outro, na mesma medida em que os limites estabelecidos pelo atuar humano tendem a alterar-se e a diluir-se reciprocamente” (SIC).
Imagem de capa: Imagem de vídeo mostra homens encapuzados preparados para atacar indígenas. Imagem: captura de tela.