Restaurantes Populares, água no deserto. Por Raul Fitipaldi.

A fome sempre foi um instrumento de guerra como é agora no Iêmen.

Foto : Alisson Frazão/Secom Maceió

Por Raul Fitipaldi para Desacato.info. 

Não poucas vezes me acompanhou a pobreza dura. Quando falta quase tudo, a janta é um prato de sonhos que comparecem à noite para abastecer a barriga barulhenta porque está vazia. (Um detalhe, quando lembro desses episódios, ressoam na minha memória, a música agridoce e o dizer extraordinário de Alfredo Zitarrosa, cantor da pobreza e da luta dos povos do Sul.)

Conheci a fome quando era um jovem adulto. Nunca faltou comida na minha infância.  Menos ainda em uma adolescência revestida disso, que ousam chamar, os que desenham números, de classe média baixa, que apenas é uma pobreza mais elegante. Jamais meus velhos permitiram que faltasse nada.

A pobreza chegou quando adulto por causa da minha opção de nunca suportar um patrão. Sentia horror de ter um patrão que me desse ordens, e à medida que mais lia mais horror sentia. O preço dessa opção, e de algumas inconsequências, foi passar necessidades básicas, faltou comida. Não foi durante muito tempo, mas, foi várias vezes. Primeiro em Montevidéu e depois em Buenos Aires.

Quando você sente fome, não só sua saúde desmorona, sua autoestima também. Foi num desses episódios que descobri o Restaurante Popular. E longe de ser um lugar de resgate da minha barriga inquieta, foi um território de encontro com meu mundo, minha gente, cores e cheiros que me pertenciam desde o nascimento. Lá dentro éramos dezenas de iguais ocupando um espaço no centro da cidade. Desfrutamos dessa água fresca no deserto de um sistema árido e injusto, cuja cereja do bolo era a ditadura no Uruguai, e a reconstrução, depois dela ser derrotada, na Argentina. Aí estávamos com as nossas roupas maltratadas pelo uso, nossos sapatos ordinários e nossas caras de precisar todos o mesmo. E o mesmo não era só aquela comida milagrosa. Era outro sistema que nos incluísse, tanto aos famintos permanentes como aos esporádicos.

Vi que em Florianópolis as pessoas estão se manifestando para que não retirem o Restaurante Popular da Avenida Mauro Ramos. Não o conheço, nunca entrei. Posso estar errado, porém imagino essa gente nossa, mestiça, sonhando o futuro com o qual eu sonhei, sem miséria e sem patrão. A maioria de olhos escuros como eu, com as roupas semelhantes às minhas naqueles anos 70. Essa gente que luta contra o embrutecimento e a exclusão onde nos jogam as elites em todas as cidades capitalistas.

A fome sempre foi um instrumento de guerra como é agora no Iêmen. Os impérios e os oligarcas sempre submeteram os povos através da humilhação que produz a fome. Os ricos, os patrões, sempre estão em guerra contra os pobres. No Brasil, no Iêmen, em quase todo o mundo. No entanto, a fome também é uma ferramenta, embora indesejável e injusta, capaz de mobilizar, não só por um Restaurante Popular, porém pela liberação de um povo da injustiça e do maldito jugo que nos sacrifica todos os dias. Transformar os sonhos em pão é muito mais que multiplicá-lo, é construir, a partir do pão para todos e todas, Outro Mundo Possível e cada vez mais Urgente.

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