As negociações coletivas se desenvolvem em meio à uma brutal crise política, econômica e social. As negociações, que são uma das tarefas mais importantes dos sindicatos, nunca foram fáceis, mas nessa conjuntura ficaram ainda mais adversas. Um dos efeitos disso é a não reposição das perdas salariais, que para a maioria das mesas, é a cláusula mais relevante da negociação coletiva no Brasil. O motivo é simples: como as negociações no Brasil são extremamente limitadas, o reajuste salarial acaba sendo a cláusula mais importante.
Segundo pesquisa do DIEESE relativa ao primeiro semestre de 2020 (“Pandemia muda contexto das negociações coletivas no 1º semestre de 2020”), houve redução do número de cláusulas relativas a reajustes salariais em 28% na comparação com o negociado no mesmo período de 2019 (conforme registrado no Sistema Mediador, da Secretaria de Relações de Trabalho). Como não teve redução no número de registros de instrumentos coletivos no período, tudo indica que a queda no número de reajustes está relacionada à mudança do objeto das negociações coletivas, que passaram a se concentrar em questões relativas à pandemia da Covid-19. Ou seja, em muitas mesas, os patrões nem quiseram discutir a cláusula do reajuste salarial ou equivalente. Uma indicação disso é que, ao menos 55% dos instrumentos analisados nessa pesquisa pelo DIEESE (4.082 instrumentos) registraram cláusulas relacionadas à covid-19.
Além de quase 30% dos instrumentos de negociação no primeiro semestre, nem ao menos preverem reposição da inflação no período, uma parcela significativa ou praticou reajuste inferior à inflação, ou adiou o reajuste para o período de pós-pandemia. Em muitos casos o acordo traz a cláusula de reajuste, só que definindo o mesmo para começar a valer meses à frente da data-base, impondo assim uma perda de salários reais. Por exemplo, houve negociações em que as partes acertaram a aplicação do INPC-IBGE do período, mas para começar a vigorar bem mais à frente, em alguns casos em janeiro de 2021.
A não reposição da inflação nos salários, ou o adiamento da reposição para meses após a data-base, vem provocando uma queda dos salários reais, estes já bastante irrisórios. O fato é especialmente grave para os salários mais baixos, já que, apesar da inflação em geral estar em torno de 3%, os alimentos têm aumentado de preço em ritmo bem superior. Como se sabe, quanto mais baixo o salário, maior o peso relativo dos alimentos sobre o orçamento. Uma família que tenha orçamento de R$ 1.500,00 (só com um empregado, por exemplo), gasta a totalidade dos recursos com comida, limpeza e higiene. O preço da cesta básica indica isso. Segundo o DIEESE, a cesta básica de alimentos em São Paulo, que custou R$ 539,95, em agosto, aumentou 12,15% nos últimos 12 meses. A variação de SP foi uma das menores do país. Em 8 das 17 capitais pesquisadas em agosto, apresentaram variações anuais acima de 15%. Em Florianópolis a CB está custando R$ 530,42 e aumentou 14,26% em 12 meses.
O PIB caiu 11,4% no segundo trimestre de 2020 (comparado ao segundo trimestre de 2019). Foi a maior queda da série, iniciada em 1996. O consumo das famílias brasileiras despencou 12,5% no segundo trimestre, na comparação com o trimestre anterior. Essa queda do consumo, que também é a maior registrada na série histórica do IBGE é resultado matemático das políticas praticadas a partir do golpe de 2016, cujo objetivo é tirar o que puder dos direitos e da renda do trabalhador. Neste contexto de brutal crise econômica e super exploração do trabalhador, os patrões aproveitam a pandemia, e a natural desarticulação do movimento sindical, para não conceder reajuste salarial na mesa de negociações, e ainda retirar os poucos benefícios que os acordos e convenções coletivas, possuem, fruto de décadas de luta.
A mesma política de arrocho se observa nas estatais. O caso dos Correios é a prova de que a lei não existe mais no país há um bom tempo. A direção dos Correios simplesmente quebrou um acordo que tinha vigência até 31 de julho de 2021, com a apoio do STF. Com essa decisão, os trabalhadores dos Correios, que estão morrendo de Covid-19 na linha de frente, perderam direitos históricos, obtidos em décadas. Só é possível entender que um acordo que foi feito entre a empresa e os trabalhadores seja quebrado por uma decisão liminar, se entendermos que o Brasil está no Modo Golpe desde 2016. A greve dos Correios, que é histórica, tem também o caráter de ser contra a privatização da empresa, que é a próxima da lista de Paulo Guedes. A greve é contra a retirada de direitos, a privatização, e também a negligência dos Correios com a saúde dos trabalhadores em tempos de pandemia.
A quebra do acordo por parte da direção da estatal certamente é uma preparação para a entrega da empresa aos tubarões. Entre as 70 cláusulas derrubadas pelo governo e o Supremo estão: 30% do adicional de risco, vale alimentação, licença maternidade de 180 dias, auxílio-creche, indenização por morte, auxílio para filhos com necessidades especiais, pagamento de adicional noturno e horas extras. O grupo econômico que arrematar os Correios, na bacia das almas (provavelmente uma multinacional), assumirá uma empresa onde os trabalhadores têm o mínimo de direitos, e uma remuneração que foi achatada no período recente.
O aumento das dificuldades na negociação se verifica num contexto em que as adversidades da ação sindical, no seu conjunto, ampliaram muito. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE. O número de sindicalizados passou de 16,1% em 2012, para 11,2% em 2019. Além disso, há uma sistemática desqualificação dos sindicatos realizada através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, o que torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas.
Os patrões estão aproveitando toda essa conjuntura de crise econômica e sanitária para tentar “depenar” os direitos dos trabalhadores, muitos conquistados a suor e lágrimas, às vezes obtidos em muitas décadas de batalhas. Em função desse quadro, a direção sindical do DIEESE em Santa Catarina, em documento recente, sugeriu algumas medidas aos dirigentes sindicais no sentido de enfrentar esses ataques, as quais listo a seguir:
- Não assinar acordos ou convenções coletivas que imponham perda salarial para os trabalhadores. As negociações devem contemplar no mínimo a inflação do período;
2. Não assinar acordos ou convenções coletivas que impliquem em perder benefícios de qualquer natureza;
3.Não fechar acordos ou convenções que signifiquem perdas de direitos sociais, organizativos, ou de qualquer outra ordem;
4.Antes de fechar o acordo procurar obter informações de negociações do setor, no município, estado ou país.
São orientações muito adequadas da direção do DIEESE. Em algumas situações é preferível ficar sem acordo coletivo, do que celebrar acordos ou convenções que impliquem em prejuízos para os trabalhadores. Se a entidade sindical referenda cláusulas que pioram a vida dos trabalhadores, oficialmente ela estará concordando com tais prejuízos. Nesse caso, é preferível simplesmente não assinar o acordo e encaminhar as medidas cabíveis, que passam principalmente pela mobilização dos trabalhadores. Mais do que nunca, é preciso resistir!
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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