Resistência Afro-boliviana

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Por Daniela Gomes. Nos mais de três séculos em que a escravidão perdurou, cerca de 5,7 milhões de pessoas foram sequestradas na África e chegaram como escravos aos portos latino americanos. Essa população deu origem aos mais de 150 milhões de afrodescendentes que representam cerca de 30% da população do continente. Em comum essas pessoas que vivem em diferentes países, tem além de sua ancestralidade a busca por uma identidade e o resgate de valores como a cultura e a religiosidade, para assim reconstruir aquilo que a escravidão roubou.

Exemplo dessa busca, a população afro-boliviana, que representa hoje cerca de 0,5% da população da Bolívia, desenvolve ações que possibilitam uma reafirmação da identidade da comunidade negra naquele país, principalmente através de atividades solidárias, com o objetivo de melhorar a vida do povo negro. Além disso, há uma preocupação por parte do grupo em recuperar a autoestima, principalmente através da difusão da sabedoria ancestral e da difusão da cultura e manifestações artísticas, como por exemplo, as danças como o semba, o mauchi, e a saya, que tentam representar os valores e as necessidades da comunidade negra, além de ser uma ligação com a ancestralidade.

Ativista no movimento pela recuperação e preservação da africanidade boliviana, Edgar Gemio, é uma das pessoas que vê o resgate cultural e histórico da população negra de seu país, como uma das maiores necessidades para que a luta contra o racismo ganhe forças. Filho de um importante compositor afro-boliviano, Gemio afirma visualizar hoje na Bolívia, uma preocupação em não deixar que os valores da população negra desapareçam. Em entrevista exclusiva a afrobrasnews, Edgar Gemio fala sobre cultura, história, política, resistência e muito mais.

??afrobrasnews – Edgar conta um pouco da sua história para os nossos leitores, como começou sua militância?

?Edgar Gemio – Meu nome é Edgar Gemio Zabala e eu nasci há 25 anos na comunidade afro-boliviana de Tocaña, que fica no município de Coroico, em La Paz, Bolívia. Estudei o primário em uma escolinha que tínhamos em nossa própria comunidade. Depois estudei em uma escola urbana em Coroico e para reduzir os gastos, pois era muito caro estudar na cidade, meus pais decidiram me enviar para um internato católico, há uns 30 km de Tocanã. Ali estudavam cerca de 30 jovens afro-bolivianos, nós ficávamos no internato durante a semana e no final de semana voltávamos para Tocanã e foi ali, que tudo começou.

Em 2000 eu passei a fazer parte de um grupo chamado Esperanza Juvenil, com jovens de diferentes escolas, que tinha como objetivo fazer com que cada jovem se tornasse alguém que pudesse ajudar sua comunidade. Em 2002 nós criamos em Tocanã, a organização juvenil afro-boliviana, Raíces Afros en Bolívia, que tem como objetivo dar continuidade as atividades culturais praticadas por nossos pais, como o Saya, Semba, Baile de Tierra, Mauchi entre outros, essas atividades se desenvolvem até hoje.

Em 2005 eu terminei o colégio e fui morar na cidade de Santa Cruz de la Sierra, onde rearticulamos a organização afro-boliviana, com os moradores daquela cidade. Eu fui presidente da organização em 2006 e 2007.?

Em 2008, eu retornei a La Paz e ajudei a desenvolver a Organización Integral Saya Afro Boliviana ORISABOL, na qual atuo até hoje, ao mesmo tempo em que apoio todas as atividades do grupo Raíces Afros en Bolivia RAFROBO. E no decorrer de todo este período, graças a internet, acabei me tornando uma ponte para chegar a todas as comunidades afro na Bolívia.

??afrobrasnews – Como é a situação do povo negro na Bolívia atualmente? Como está a militância em seu país?

?Edgar Gemio – Eu me sinto capaz de dizer que o povo negro na Bolívia está relativamente bem, pois com tudo que temos vivido, as oportunidades estão surgindo. Uma de nossas maiores dificuldades é com a formação cultural e intelectual do nosso povo. Me alegro em dizer que nos últimos anos surgiram muitos líderes dentro da comunidade, que foram orientados a trabalhar pela comunidade, então ainda que não tenhamos todo o sucesso necessário, eu percebo que o que acontece é um processo forte de conscientização, abertura e geração de oportunidades. A saúde, ainda não chegou às nossas comunidades. Também percebemos que não existem programas dedicados a divulgação da nossa cultura, mas tenho esperança de que isso irá acontecer de uma maneira ou de outra no decorrer desse processo. Posso dizer que hoje há muita abertura, mas que um dos maiores obstáculos que temos hoje somos nós mesmos, pois entre os afro-bolivianos há uma disputa indiscriminada e desleal, entre as lideranças do movimento negro.

??afrobrasnews – Quais são as principais demandas do povo negro na Bolívia?

?Edgar Gemio – A principal demanda é a documentação histórica e cultural do povo negro e posteriormente colocá-los a disposição não apenas do nosso povo, mas de todos os povos no nosso país. Que a educação seja mais igualitária e baseada no respeito às diferenças culturais. No demais, acho que são detalhes que também estão presentes no restante das comunidades “pluriculturais” e que as soluções devem nascer da nossa própria comunidade, que deve mostrar desejo e criar ferramentas para resolver essas questões.?

?afrobrasnews – Que tipo de trabalho vem se desenvolvendo nesse sentido?

?Edgar Gemio – Dentre as coisas interessantes que tem sido feitas nesse sentido eu destaco a criação da fundação HUASCAR CAJIAS e principalmente a contribuição do historiador Fernando Cajias. Depois disso, temos o autor Juan Angola Maconde, que recuperou capítulos perdidos de nossa história e publicou em seu livro Raices de un pueblo. Ele também está trabalhando junto ao Ministério da Educação boliviano, para incluir a história e cultura afro-boliviana, nos currículos escolares, porque atualmente a única coisa que se fala sobre isso nas escolas é que os negros foram escravos em Potosí. ?

Da mesma maneira, foi criado o Centro de Interpretación y Expresión Cultural Afro boliviano Tocaña, que se projeta sustentavelmente como algo essencial para a preservação das práticas ancestrais em nossa cultura.

afrobrasnews – Você é filho de um conhecido cantor de ritmos afro-bolivianos. Como isto influenciou na formação de sua identidade?

Edgar Gemio – Meu pai, Vicente Gemio Medina, é um amante e um soldado incansável nesse processo de visibilidade que nossa comunidade tem sofrido desde a década de 1980 até os dias de hoje. Isto me influenciou muito, pois sempre foi um exemplo a seguir, um compromisso que eu nunca iria alcançar, mas é parte da motivação pela qual eu sigo. Confesso que compor não é o meu negócio, mas nós estamos no mesmo pelotão e lutamos a mesma batalha.

 

afrobrasnews – Na sua opinião os povos da diáspora africana na América Latina podem se unir na luta contra a discriminação racial? Como isso aconteceria?

?Edgar Gemio – Claro, pois se falamos sobre a diáspora, falamos do conjunto de ações, gestões, estratégias políticas, práticas e ferramentas culturais com que contamos, para fazer da comunidade negra em toda América Latina e no mundo, uma única família, na qual podemos compartilhar experiências, em prol do desenvolvimento das mesmas, não importa seu posicionamento geográfico ou ideológico. Na verdade isso nos leva a trabalhar unidos, não apenas contra a discriminação, mas também, contra a pobreza e em favor da educação, da saúde, da alimentação e antes de tudo pelo respeito e geração de oportunidades.

Foto: Reprodução/Bolívia Cultural

Fonte: Bolívia Cultural

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