O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) protocolou na sexta-feira (01) representação junto à Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo investigação sobre conflito de interesses envolvendo a advogada e produtora rural Luana Ruiz Silva Figueiredo diante das funções que exerce como secretária Adjunta de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
A nomeação de Luana foi publicada pelo Diário Oficial da União (DOU) no dia 25 de janeiro, após indicação da ministra Tereza Cristina, ruralista do mesmo estado da advogada, o Mato Grosso do Sul. Em decreto do presidente Jair Bolsonaro, para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF/MAPA) foi transferida a atribuição de identificar, delimitar e demarcar terras indígenas, antes responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A advogada, que fez parte do Governo de Transição, acumula declarações contra os direitos constitucionais dos povos indígenas: “é preciso cortar as pernas da Funai”, “o câncer (…) é o estudo da terra pelo antropólogo” e que “não se fala em território indígena, o território é um só: o território da nação” (leia mais abaixo). Chegou a defender o uso de armas de fogo contra as retomadas indígenas de terras tradicionais meses após a morte de um Guarani Kaiowá em terra tradicional homologada (leia a história completa abaixo).
Luana Ruiz não se restringe ao discurso e milita nos tribunais contra demarcações territoriais. De acordo com o Artigo 37 da Constituição Federal e a Lei 9784, que regula o processo administrativo, são necessárias imparcialidade e isenção para postulantes a cargos públicos – como este oferecido à advogada ruralista. Caso tais requisitos legais não sejam observados, o nomeado fica impedido de desempenhar a função por ter interesse na matéria. Esse interesse, conforme a legislação, pode ser também reflexo, ou seja, ligado à família ou aos círculos pessoais do indicado ao cargo.
Nas imagens abaixo, alguns dos processos em que Luana segue como advogada mesmo após assumir a secretaria do MAPA.
Como à advogada ruralista do Mato Grosso do Sul compete a demarcação de terras indígenas e quilombolas, entre outras matérias fundiárias, a Assessoria Jurídica do Cimi entende que ela está impedida ou suspeita para assumir a função. “Luana advoga em diversos casos que tramitam no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal) envolvendo a anulação de procedimentos demarcatórios de terras indígenas e em ações de reintegração de posse contra comunidades indígenas”, pontua o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.
Nhanderú Marangatú: a morte de Simeão Vilhalva
A advogada ruralista, que começou a se retirar de alguns destes processos judiciais após assumir a Secretaria Adjunta, tem interesse direto na matéria e nunca escondeu o fato, conforme comprova o Cimi em sua representação à PGR. Conhecida nos meios de comunicação e políticos sul-mato-grossenses, Luana herdou dos pais a militância anti-demarcação. O motivo também é público: a família de Luana possui propriedades sobrepostas à Terra Indígena Nhanderú Marangatú (MS), do povo Guarani Kaiowá. Homologada em 2005, a regularização fundiária da Terra Indígena é questionada em dois processos judiciais, pela família de Luana: o processo nº 0001924-29.2001.4036002 (concluso para sentença na Vara Federal de Ponta Porã-MS) e um outro processo que tramita no STF (Mandado de Segurança nº 25.463, de relatoria do ministro Gilmar Mendes).
Em 29 de agosto de 2015, a morte do agente indígena de saúde Simeão Vilhalva expôs ao mundo, com ampla repercussão internacional, a disputa em Nhanderú Marangatú. A mãe de Luana e à época presidente do Sindicato Rural de Antônio João, Roseli Maria Ruiz, encerrou abruptamente um encontro público na sede do sindicato, que contava com a presença da imprensa e de políticos, afirmando: “Eu não acredito em mais nada, nem na Justiça e nem no Cimi. Estou indo agora para as minhas propriedades para retomá-las”.
Na sequência, um comboio com dezenas de camionetes se dirigiu à Terra Indígena Nhanderú Marangatú. Os Guarani Kaiowá foram atacados. A imprensa foi impedida de acompanhar a ação, que terminou com a morte de Simeão Vilhalva com um tiro na cabeça. A Polícia Federal concluiu, no entanto, que durante a confusão um parente de Simeão atirou nele de forma acidental. Os Guarani Kaiowá contestam essa versão.
Na reunião do Sindicato Rural, estavam ao lado de Roseli a ministra da Agricultura Tereza Cristina e o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, então deputados federais, além do senador Waldemir Moka (PMDB/MS).
Meses depois do episódio, Luana Ruiz declarou ao jornal Campo Grande News, em matéria publicada às 15h49, na versão online, no dia 8 de setembro de 2015*, que defende o uso de armas contra os indígenas: “Eles estão cometendo crime e violando letra expressa da lei. Quando o produtor rural retoma como nós fizemos, a lei me permite, a lei me garante, a lei fala que é direito do proprietário a legítima defesa da propriedade, ainda que com o uso de arma. Estou agindo dentro da lei e no exercício regular de um direito. Eles estão agindo contra a lei e além de tudo desrespeitando decisão judicial”.
Na representação protocolada pelo Cimi está uma lista com os processos que Luana atua ou que já atuou envolvendo a questão indígena. Alguns exemplos são o Mandado de Segurança nº 28.541 e Mandado de Segurança nº 28.574, ambos de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello; Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1037139, de relatoria do ministro Roberto Barroso e o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1084821, de relatoria do ministro Dias Toffoli.
“Cortar o mal pela raiz”
Em um vídeo que circula na internet (assista aqui), Luana destaca que as terras indígenas foram conquistadas para a formação da nação e, portanto, não há dívida histórica com os povos indígenas. “Hoje a nação é uma união e não é por isso que a nação tem que ser disseminada porque existe uma suposta dívida histórica com os povos indígenas. Não existe. A conquista territorial é enerente no mundo (SIC)”.
A advogada defende que o “problema nasce nos laudos fraudulentos da Funai porque a Funai tem antropólogos assinando laudos cuja palavra é tida como verdade absoluta, antropólogos esses acusados de fabricar terras indígenas. O processo é fraudulento, e ideológico (SIC)”. Ela defende “cortar as pernas da Funai” e defende: “se não cortarmos o mal pela raiz, pode mudar a presidência, pode mudar o procedimento, pode mudar o Decreto 1775… o câncer está arraigado lá na origem que é o estudo da terra pelo antropólogo fraudulento e pelo Conselho Indigenista Missionário ideológico (SIC)”.
Para Luana, o índio traz a carga histórica “da vítima, do coitado, do angelical, do harmonioso com a natureza. O que não é verdade. Pode ir em qualquer aldeia indígena e você vai ver o lixo que tem no chão. Participei de algumas perícias no sul do meu estado e estive no seio das comunidades indígenas e fiquei aterrorizada com o lixo, a falta de assepsia, de higiene, a destruição da mata, da natureza, colocam fogo, eles derrubam sim a mata pra fazerem suas casas, são madeiras que não perduram no tempo. Então esse derrubamento de madeira é constante porque tem que estar reconstruindo seus barracos todo mês. Cadê a harmonia com a natureza? Não existe esse semblante angelical. O índio carrega essa carga histórica de que ele é de todo bom, o produtor rural carrega essa carga histórica de que é de todo mal (SIC)”.
Questionada sobre como os produtores rurais podem se unir, Luana respondeu em três pontos: “Primeiro ponto: não se fala em povos indígenas. O povo é um só: o povo brasileiro. Os indígenas são cidadãos brasileiros como eu sou uma cidadã brasileira. Segundo ponto: não se fala em território indígena, o território é um só: o território da nação. Terceiro ponto: não se fala em propriedade em terras indígenas, mas se fala sim em propriedades legais e legítimas sobre as quais se querem criar terras indígenas (SIC)”.
* A reportagem verificou o link em 28 de fevereiro de 2019, às 12h11.