Na semana passada, a International News Safety Institute (Insi) colocou o Brasil como o 8º país mais perigoso no mundo para o trabalho da imprensa. Na quarta-feira (25/1) encontro publicado no site do jornal Estado de S. Paulo que o Brasil fica em 99º no ranking sobre liberdade de imprensa. E vai além: o país já esteve melhor. Antes ocupava a 48ª colocação, caindo, portanto, 41 posições. As informações vêm da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que alega como “justificativa da queda” o aumento da violência e a morte de três repórteres no país, ano passado.
A mesma organização apontou as regiões Norte e Nordeste do Brasil como as mais perigosas para os jornalistas e destacou a presença do crime organizado e de atentados contra o meio ambiente como as principais ameaças à atividade dos profissionais da imprensa. O relatório, que vem sendo divulgado há dez anos, na presente edição 2010-2011 não cita os três crimes mencionados no estudo. Tem algum zumbido aí.
Para não ficar cercando Lourenço em torno do umbigo, destaco do relatório da RSF que “da América Latina, o Uruguai foi o melhor [sic] colocado (32º); a Argentina ficou em 47º e Chile e Paraguai, em 80º. Depois do Brasil, aparecem Equador (104º) e Bolívia (108º). Nas últimas colocações ficaram Turcomenistão, Coreia do Norte e Eritreia”. Finalmente, os campeões da liberdade de imprensa são esses gigantes em população, em dimensão geográfica e em pujança econômica jamais vistas: Finlândia, Noruega e Estônia. Não por acaso, os mesmos três países que apareceram entre os dez primeiros em 2010. Pois bem, o zumbido agora é catapultado à condição de insuportável ruído.
Cartão de visitas
Quem me lê, a esta altura já deve estar convencido que entendo tanto de aferição de liberdade de imprensa mundo afora quanto entendo das reais causas que levaram à queda do Império Romano ou das novas teorias dando conta que muito antes de os europeus descobrirem a América, os navegadores chineses haviam passado por aqui em suas possantes caravelas de juncos. Ou seja, qualquer um dos três assuntos consegue dar nó cego em meus neurônios sobreviventes.
Mas, acompanhando o trabalho da imprensa, dia a dia, hora a hora e ao longo de tantos anos, estou como que instintivamente estimulado a levar pouca fé nessas pesquisas. Sim, trata-se de uma questão de fé: ou se aceita a informação como válida in totum ou se a rejeita. Fico com a segunda alternativa.
Uma lacuna imperdoável o estudo da RSF não nominar os três jornalistas assassinados no Brasil. Tenhamos em mente a comoção que suscitou no país a trágica morte do repórter Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, conhecido como Tim Lopes. E nunca é demais homenageá-lo. Ele tinha 52 anos e foi dado como desaparecido em 2 de junho de 2002, depois de ter sido carbonizado por narcotraficantes cariocas. Mas sua morte mesmo só veio a ser confirmada após acurado exame de DNA dos fragmentos de ossos encontrados em cemitério clandestino.
Quase dez anos depois do ocorrido, Tim Lopes tem sido homenageado anualmente, principalmente pelas Organizações Globo, onde trabalhava há muitos anos, sendo já nome de rua, praça e escola pública no Rio de Janeiro. Entendo que, devido às investigações criminais e ao julgamento dos algozes de Tim Lopes, ficou patente que ele não foi vítima do cerceamento à liberdade de imprensa, mas sim da ação de bandidos enredados no tráfico de drogas.
Soaria muito estranho a liberdade de imprensa ser avaliada pela quantidade de jornalistas mortos por bandidos em embate com a polícia. Há menos de três meses, o cinegrafista Gelson Domingos, que trabalhava na Band, foi atingido no peito e morreu no tiroteio entre policiais e traficantes que aconteceu na Favela de Antares, Zona Oeste do Rio de Janeiro.Naquela operação, segundo informações da Polícia Militar, nove criminosos foram presos, cinco pessoas morreram, sendo quatro traficantes não identificados e o cinegrafista.
Se, por um lado, tanto sabemos sobre a trajetória, a vida e a morte do Tim Lopes, ficamos sem ao menos saber os nomes – apenas os nomes – dos três jornalistas brasileiros assassinados no Brasil no período 2010-2011. Seria o profissional da Band um dos três jornalistas mortos no país e que contribuíram de forma tão significativa, para que o Brasil perdesse 41 posições dentre os países que usufruem da liberdade de imprensa?
Daí que, na pressa de publicar tudo e qualquer indício que robusteça a insustentável tese de que o Brasil não desfruta de ampla e irrestrita liberdade de imprensa, os veículos que integram a grande imprensa nem ao menos fazem o dever de casa. Assim, em vez identificar lacunas deixadas por relatório com tão alarmante resultado, e procurar meios de preenchê-las – o que seria o básico para qualquer jornalista recém-formado –, fica-se ao Deus-informará. E este é um ponto crucial para considerar o estudo da RSF como minimamente crível.
É prudente que, ao se considerar as mortes de pessoas que exerceriam a profissão de jornalistas seja estabelecido, de forma clara e inquestionável, se esses profissionais foram realmente mortos em função do exercício da atividade profissional ou se o óbito ocorreu por motivos alheios à atividade jornalística. Motivos existem, e muitos; afinal, a segurança pública no Brasil não é exatamente o melhor cartão de visitas do país. A inexistência de informações confiáveis, de afirmações fincadas firmemente nas nuvens, nada mais fazem que levar água ao moinho da partidarização política há muito exercitada pela grande imprensa: há que se denunciar qualquer pensamento que afete a ideia da liberdade de imprensa. E o tema, por si só, vem sendo esgrimido quase que semanalmente em grandes jornais e revistas, como sendo a próxima vítima do governo brasileiro.
Ameaças no ar
E a Argentina, que no relatório de Repórteres Sem Fronteiras ocupa a 47ª posição, 51 pontos à frente do Brasil? Como se justificaria isso? No Brasil algum jornal foi empastelado ou recebeu ameaça nesse sentido? Na Argentina, sim. No Brasil, foram aprovadas leis claramente direcionadas a diminuir o poder de fogo e influência do Estado de S.Paulo ou de O Globo? Na Argentina, o Clarín tem até hoje sido vítima disso. No Brasil, impostos foram criados de forma a encarecer o custo do papel de imprensa? Na Argentina, sim. No Brasil, o governo tem movido mundos e fundos para destituir de seus donos alguma empresa jornalística? Na Argentina, sim.
Mas quem lê o noticiário sobre este relatório da RSF fica com a impressão de que a Argentina é aqui. Assim como um dia, décadas passadas, o Haiti era aqui. Resumo da ópera: Brasil, 99º; Argentina, 47º. Parece brincadeira de mau gosto. Piada mesmo. Assim como um dia foi o caso boimate: uma árvore que produzia filé bovino ao molho de tomate. Mesmo estapafúrdia, houve gente que acreditou nisso. E não foi gente-sem-jornal nem gente-sem-revista que levou isso a sério. O fato é que ainda hoje estudamos nas faculdades de jornalismo algo assim. O “fruto da carne”, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, batizado com o sugestivo nome de boimate, foi noticiado como o mais sensacional “fato científico” de 1983 na revista Veja, em sua edição de 27 de abril daquele ano. E se transformou na boiveja, a maior “barriga” (notícia inverídica) da divulgação científica brasileira.
A tarefa de comparar países é bem mais complexa que comparar legumes ou veículos automotores. É que existe um índice de subjetividade envolvido e a necessidade de procurar ler as entrelinhas em que o contexto se revela. E é sempre árdua. Se o Brasil aparece tão mal na fotografia feita por Repórteres Sem Fronteiras, quais seriam os critérios usados para indicar a Finlândia, a Noruega e a Estônia para encabeçar tal ranking? Por acaso, em algum desses países o governo é exercido por uma similar da nossa Associação Nacional de Jornais? Os seus parlamentos serão formados por diretores de empresas de comunicação, chefes de redação, jornalistas há muito consagrados, publicitários e apresentadores de tevê de renome? E os judiciários estariam sempre isentos de julgar questões envolvendo direito de resposta? Sei não. Faltou apenas a organização declarar que nesses campeões da liberdade de imprensa o governo é exercido por sua própria imprensa.
Para tudo na vida há que existir o contraponto. Para a religião, para a ciência. Para a literatura e a matemática. Para o capitalismo, o socialismo e para o pacifismo e o terrorismo. É claro que se faz necessária a existência de uma instituição com a missão de aferir a realidade dos países em outras questões relacionadas com a liberdade de imprensa. Por exemplo, quais os países com os maiores índices de concentração de propriedade dos meios comunicacionais? Quais os monopólios mais longevos no ramo das comunicações?
Uma coisa é certa: certos rankings carecem de credibilidade porque parecem existir para atender interesses muito específicos. É como pedir a um vascaíno que avalie a real posição desfrutada pelo Flamengo no coração do povo brasileiro.
E até que tal ranking venha a lume, continuará sendo infinitamente mais fácil dizer que “os princípios de imparcialidade e lisura jornalística” são crescentemente ameaçados no Brasil por um Estado totalitário e insuflados por forças francamente antidemocráticas.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]