Renovações urbanas: o caso dos paralelepípedos

    Arquiteto e urbanista Dalmo Vieira Filho pede, no mínimo, prudência no projeto para o Centro Histórico de Florianópolis.

    Obra do ilustrador Cláudio Duarte feita especialmente para a defesa dos paralelepípedos.

    Por Dalmo Vieira Filho

    As noções de qualidade variam com o tempo. Mais ainda nos campos subjetivos da história, da cultura e da tradição, que incluem, além do conhecimento, os sentimentos e os afetos. Nos projetos de renovações urbanas, há séculos de aprendizados e exemplos, alguns transformadores, que revigoram áreas inteiras, outros desastrosos, que substituem valores autênticos por gratuidades passageiras.

    Os espaços, edifícios e equipamentos públicos formam grande parte dos elementos simbólicos da sociedade, e há que considerar os diferentes valores colocados em jogo quando dos projetos que lidam com essas áreas, já que elas são, por definição, depositárias preferenciais dos referenciais históricos e culturais das cidades.

    No mínimo, é preciso prudência.

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    Cartum de Cláudio Duarte.

    No caso de Florianópolis se recomenda extremo cuidado em lidar com a pavimentação das vias mais antigas, que são parte importante do coração da cidade.

    Nas últimas décadas surgiu toda uma série de novos materiais, como os ladrilhos hidráulicos e pisos cerâmicos, além do asfalto e dos cimentados, esses últimos em blocos ou em camadas, estimulando a troca dos padrões tradicionais, baseados em pedras, por novas opções capazes, teoricamente, de facilitar as caminhadas, valorizar cores e criar composições mais dinâmicas.

    Essas opções foram sendo paulatinamente abandonadas, em todo o mundo, principalmente porque as novas cores se mostraram efêmeras, e a resistência dos materiais bem inferior aos pavimentos mais antigos.

    Cidades como Lisboa, Nova York e Paris discutiram o assunto, e como regra geral, basta ver seus projetos mais recentes e suas paisagens urbanas mais conhecidas, deixaram de substituir os pisos tradicionais pelos blocos ofertadas pelo mercado.  Atualmente, é geral que se usem dois tipos principais de pavimentos: os rochosos e os pisos em placas, por vezes inteiriços, que se valem do concreto simples até os mesclados com seixos.

    As cores e os desenhos, singelos ou espalhafatosos, deixaram de ser empregues, por duas razões principais: as cores tendem a ser fugazes e pela simples constatação de que os pisos são complementos das paisagens urbanas, ou seja, embasam as visões das construções, das massas construídas, das árvores e dos logradouros em geral. Como tal, devem se comportar como comedimento, como molduras que são, que não devem se arvorar à condição de protagonistas das paisagens urbanas. Não é sua função e os projetos que valorizaram as visões aéreas das composições de piso, acabaram por notar que os desenhos se tornam inócuos a partir dos ângulos visuais das pessoas que caminham pelas ruas, criando inclusive confusões e interferindo danosamente nas paisagens.

    Alguns fatores práticos também contribuíram para essas decisões, como as dificuldades de reposição de peças, já que pavimentos mais frágeis se deterioram pouco tempo depois de confeccionados e precisam de constantes manutenções. Nos pisos mais recentes, a granulação de cimento e areia se ressente da sucessão dos golpes pontuais do pisoteamento constante. Acabam por surgir pequenos desprendimentos e fragmentações, criando deformações, cavidades e frestas que acumulam fungos e sujeiras. Diante de usos intensos, se desgastam e perdem qualidade em curto espaço de tempo.

    Os pisos rochosos, ao não perderem consistência em suas camadas externas, e ao contrário, ganham polidez e qualidade com o tempo.

    Há ainda os fatores estéticos e para apreciá-los é impossível desconsiderar a nobreza intrínseca dos diferentes materiais. Vale lembrar a tradição cristã, segundo a qual, o próprio Jesus trocou o nome de seu seguidor Simão proferindo as seguintes palavras: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ao longo da história, e não é à toa, as rochas foram sempre identificadas com solidez, beleza, e com a própria noção de perenidade.

    A pedra foi sempre o material nobre, com que se construíram as mais belas esculturas e que marcava as partes mais significativas das construções antigas, tais como as portadas, os cunhais, as cimalhas e os brasões.

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    Tirinha de Armandinho, de Alexandre Beck, apoiador da causa dos paralelepípedos.

    Por similitude, a base ou o pedestal de uma obra de arte sempre poderão se valer de um material natural, como a pedra ou a madeira, permitindo optar pelas variedades brutas ou polidas, pelas infinitas variedades de cores e texturas existentes.

    Há uma nobreza intrínseca na pedra, que poucos outros materiais conseguem equivaler. Somada à durabilidade, beleza e facilidade de manutenção, cria-se a receita usada pela grande maioria dos projetos atuais que lidam com espaços urbanos, em especial os espaços históricos.

    Resta analisar o conforto para quem caminha, argumento quase sempre presente nos projetos que propõem a substituição dos pisos rochosos por seus equivalentes artificiais.

    Impressiona a insistência para falar nas eventuais dificuldades do uso do salto alto, como se justamente, essa modalidade de calçar devesse predominar sobre todas as demais e em detrimento de diferenciais como os muitos tipos dos pavimentos mais antigos e tradicionais.

    O fato é que em cidades como as nossas, onde as diferentes intervenções de várias naturezas ainda fazem parte das rotinas das estruturas viárias, é preciso prever as obras de reposição, dadas por falhas de execução, excesso de peso, consertos ou novas canalizações. Nesse quesito, desde que os reparos sejam bem feitos, os pisos em pedra são insuperáveis, porque a sua retirada e reposição é mais fácil, seu peso próprio é maior e as dimensões, em especial a profundidade,  facilitam a solidez dos reparos e a reintegração com o conjunto pavimentado.

    A conclusão é que a moda de trocar pisos tradicionais por blocos de cimento se remete mais ao gosto pelo que é novo e pela vocação de obras efêmeras do que pelas qualidades reais dos projetos e as correspondências com o que acontece no mundo.

    A ficção do novo exerce tal atração entre nós que questões vitais, como o planejamento à médio prazo e os aspectos sentimentais ficam em segundo plano. Mas é preciso não esquecer: as áreas reconhecidas como patrimônio são formadas pelos lentos acúmulos e incorporações e os projetos que buscam sua valorização, devem sempre somar atributos, e nunca subtraí-los. Essa é uma regra básica de lidar com patrimônio edificado e bem poderia ser a tônica do necessário e inadiável processo de requalificação da área central de Florianópolis.

    Mais sensibilidade, humildade para com as realizações do passado e menos arrogância para com as propostas da atualidade.

    Dalmo Vieira Filho – arquiteto com especializações em patrimônio histórico e cultural, ex arquiteto do IPHAN; representante Titular do Ministério da Cultura (MinC) no conselho Nacional de Turismo e do IPo Conama. Ex-secretário do Desenvolvimento Urbano de Florianópolis e ex-Presidente do Instituto do Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF); integrou o conselho de Cultura e Patrimônio de Itajaí, Blumenau, Pomerode, São Francisco do Sul, Laguna, Jaraguá do Sul, Joinville e Florianópolis; consultor de empresas e órgãos públicos.

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