Na noite do domingo 19 de junho, os Guarani Kaiowa e Ñandeva que vivem na região de Caarapó (MS) foram surpreendidos por um novo ataque a um de seus territórios tradicionais: Guapo’y. Na área sobreposta ao Sítio Bela Vista, uma das retomadas pelos indígenas na última semana, o barulho de tiros e a aproximação de caminhonetes, confirmada por servidores da Funai, fez com que os Guarani se abrigassem na mata, temendo pela repetição de um massacre, como o que aconteceu há dez dias na Terra Indígena Dourados-Amambaipegua I, em Caarapó. Saiba mais.
Requisitada ao Ministério da Justiça, a presença de um efetivo da Força Nacional de Segurança no local desde quinta-feira (16), não foi o bastante para coibir os novos atos de violência. Mas as circunstâncias do primeiro ataque, que tirou a vida do jovem agente de saúde Clodiodi Souza e deixou outros cinco indígenas gravemente feridos na manhã de 14/6, começam a ser esclarecidas.
Um relatório divulgado na terça-feira (21/6) pela comissão parlamentar que foi a Caarapó no final da semana passada para ouvir as vítimas e testemunhas do massacre, detalha os acontecimentos e lista os nomes de três proprietários de terras envolvidos na ação. “De acordo com as vítimas”, aponta o relatório, “quem coordenou o ataque foi um fazendeiro chamado Virgílio Mata Fogo, ao lado dos fazendeiros Camacho e Japonês”.
O primeiro teria ido à área retomada um dia antes, junto com policiais do Departamento de Operações de Fronteira, da Polícia Militar e da Polícia Federal e dito que voltaria para “resolver as coisas”. Kunumi Guarani, liderança indígena, confirma: “Tinha camarada das fazendas lá que falou assim: ‘Nós vamos resolver pelo nosso jeito amanhã’. E aconteceu”. O massacre veio mesmo no dia seguinte, com participação de Virgílio, segundo os depoimentos colhidos, como um dos principais desferidores de ataques.
Virgílio Mettifogo é um dos 87 nomes de proprietários listados como ocupantes da TI Dourados-Amambaipegua I, conforme publicado pela Funai. De acordo com esse levantamento fundiário, Mettifogo é o propreitário da Fazenda Edurama, sobreposta à Terra Indígena. Dois outros proprietários, das Fazendas Santa Luzia e Copacabana, têm o mesmo sobrenome de um dos envolvidos, Camacho. Confira.
Um documentário produzido pelos próprios indígenas, lançado nessa sexta-feira (24), também cita nomes dos envolvidos e detalha as circunstâncias do massacre. Desde quarta-feira (22), lideranças guarani da Aty Guasu, vindas de todo o cone sul do estado, fazem uma assembleia na área atacada. Assista.
Lentidão nas investigações
“Nos últimos 15 meses, essa é a oitava vez que eu vou até o Mato Grosso do Sul”, lembra o deputado federal Paulo Pimenta (PT/RS), que é vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Em entrevista ao ISA, ele conta que, entre as medidas tomadas, está o pedido de inclusão de seis lideranças indígenas ameaçadas no Programa de Defensores de Direitos Humanos. Pimenta e também destaca que o acompanhamento feito pelos parlamentares ajudou a subsidiar as investigações do Ministério Público Federal, que na sexta-feira passada (17), denunciou 12 pessoas por formação de milícia armada para cometer crimes contra o povo Guarani Kaiowa. O esforço começou há oito meses e analisou ataques a outras comunidades indígenas.
Kuña Poty, uma das testemunhas do massacre, conta que se passaram mais de 48h até que a investigação policial fosse oficialmente iniciada e as testemunhas, ouvidas. Os indígenas pediram ao MPF que profissionais trazidos de Brasília (DF) realizassem a perícia, que aconteceu na sexta-feira passada, mas não teve resultados divulgados ainda. Já Kunumi Guarani revela que outras lideranças também estão sendo ameaçadas e que, apesar de achar positiva a ida dos parlamentares à região, a comunidade espera que o Estado seja mais ágil nas investigações e punições: “Que seja realmente punido imediatamente, porque tem prova concreta. A gente não acredita em mais nada. Temos esperança só em Ñanderu, nosso deus, que possa resolver ou tocar no coração dessas pessoas que estão à frente. A nossa angústia, nossa tristeza maior, é que quem morre, quem leva as consequências somos nós, indígenas. Cadê a investigação? Cadê essa Justiça? ”.
“Qualquer barulho, pra mim, já é tiro”, diz Kuña Poty“Estava aquele barulho, que parecia lata e não era barulho de lata: era mesmo tiro de 12. Muitas pessoas gritavam e aquele barulho de balas para cima da gente. Era pra acertar mesmo. Não sei como a gente saiu ileso de lá. Mas algumas colegas saíram feridas, inclusive até agora está no hospital. Além dos que estão internados, vários foram atingidos por balas de borracha e ninguém estava armado lá. Eu calculo que esse ataque seja bem planejado, para atacar daquela maneira. A gente foi correndo, correndo, tudo para dentro da reserva indígena. Meu irmão ficou para fechar o portão e eles avançaram nele, com pistola e fuzil na mão, já dando tiro. Nessa ocasião, o menino Clodiodi chegou correndo, perguntando: “Quem tá ferido?”, porque ele era agente de saúde. Ele foi para socorrer, não tinha nada na mão. Aí eu falei: “Seu tio está lá na frente”. Ele chegou lá e foi junto com o meu irmão para fechar o portão. Foi quando deram tiro nele. Deram tiro e o Clodiodi caiu no chão. Tinha duas caminhonetes, uma de cor prata e uma preta e a pá-carregadeira. O pessoal correu e eu voltei para trás, porque meu irmão ficou para trás. Eu não ia permitir que ele ficasse lá sozinho. Quando a gente voltou, eu vi meu sobrinho [Clodiodi] no chão, esticado. Já estava baleado entre o abdômen, na altura do tórax e bem na direção do coração. Aí eu voltei, gritei, tirei minha jaqueta e fui balançando, com a mão direita e a mão esquerda levantada, para eles pararem de atirar. Por alguns minutos, eles paralisaram o tiroteio e começaram a xingar. Mas avançaram com a pá-carregadeira, para poder carregar o corpo e carregar o meu irmão junto, vivo. Eles já tinham cavado a terra para poder enterrar”.
Transferências compulsórias
Em entrevista ao ISA, os indígenas contam que apesar de terem se surpreendido com a violência da ação dos proprietários de terra de Caarapó, já imaginavam que haveria resistência à demarcação da TI Dourados-Amambaipegua I. “A gente não tem nenhuma culpa disso. Eu diria, também, por outro lado, que os fazendeiros também não têm culpa. Quem tem culpa é os Estados, quem vendeu, ou seja: nos retirou do local na época da nossa territorialidade. Nós estamos ali em um chiqueiro: fomos aldeados e aí criou esse limite, da reserva”, explica Kunumi Guarani, referindo-se ao confinamento dos Guarani Kaiowa na Reserva Indígena de Caarapó, criada em 1917 pelo Serviço de Proteção ao Índio. Os de Caarapó não foram os únicos: em 2014, a Comissão Nacional da Verdade classificou as transferências compulsórias dos Guarani Kaiowa para reservas como graves violações de direitos humanos, que devem ser reparadas pelo Estado brasileiro. Relembre.
Segundo Kunumi, a demanda dos indígenas pela demarcação das terras tradicionalmente ocupadas é amplamente conhecida pelo moradores da região de Caarapó: “O pessoal que está há 40, 50, 60 anos morando ali, sabe que os indígenas moravam ali na região. Nós chegamos antes; nós não viemos de fora. Não adianta alguém vir falar que não é Terra Indígena”. Segundo Kuña Poty, algumas famílias que reivindicam a área atacada na semana passada também trabalhavam na Fazenda Ivu, como forma de não se afastar de seu território tradicional. Veja abaixo o mapa com a localização das Terras Indígenas em Caarapó.
Matias Benno, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), concorda. Ele reitera que, embora a publicação do relatório de identificação da terra pela Funai tenha sido apontada pela imprensa regional como estopim de um “conflito”, a raiz dos problemas é outra: “Foram sucessivas as ondas de remoção forçada dos Kaiowa para dentro dessa pequena reserva. Os territórios que hoje são contemplados com a publicação desse relatório, sempre foram de ocupação tradicional, dos quais os indígenas jamais se afastaram. Eles ficaram em fundos de mato, em fundos de fazenda e pequenos acampamentos, sofrendo violências ao longo de todo esse tempo”.
A habitação permanente dos Guarani Kaiowa nos territórios reivindicados é comprovada pelo relatório TI Dourados-Amambaipegua I, da Funai. Ele mostra que o processo de esbulho das terras Guarani começou já no século XIX, com o arrendamento das terras de ocupação tradicional à Companhia Matte Larangeiras e continuou, no século XX, com a titulação das terras a particulares. O relatório detalha a situação de quatro desses territórios tradicionais reivindicados, mas são muitos: em 2001, um levantamento feito pelo historiador Antonio Brand listou 20 terras das quais os indígenas foram expulsos na região de Caarapó, Laguna Caarapã e Juti.
Como solução para o imbróglio, o governador de Mato Grosso do Sul propôs ao Ministério da Justiça que os recursos da dívida do estado com a União sejam usados para a compra de propriedades sobrepostas a Terras Indígenas. Enquanto isso, tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda à Constituição, a PEC 132/2015 , para autorizar o pagamento de indenizações pela terra nua – já que hoje, quando uma TI é demarcada, os proprietários são indenizados apenas pelas benfeitorias. Nenhuma das propostas prosperou até o momento.
O deputado Paulo Pimenta lembra que, em 2013, após o assassinato de Oziel Terena, na Terra Indígena Buriti, também no MS, o Governo Federal propôs um acordo para pagar pelas fazendas sobrepostas à TI, avaliadas em 78 milhões de reais. Pressionados pela Federação de Agricultura de Mato Grosso do Sul (Famasul), destaca Pimenta, os fazendeiros abandonaram a mesa de negociações: “As associações de produtores e os integrantes da bancada que representam os agricultores têm agido de modo a impedir saídas. Essas iniciativas legislativas reforçam nos produtores mais radicais uma possibilidade de revisão da Constituição e então eles se organizam para postergar qualquer solução”, critica.
A única solução possível é a demarcação das terras
Em entrevista ao ISA, Lauriene Seraguza, antropóloga e doutoranda na Universidade de São Paulo, que desde 2004 trabalha com os Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva em Mato Grosso do Sul, defende que só a demarcação das Terras Indígenas pode resolver o impasse.
ISA – Como você avalia a situação na TI Dourados-Amambaipegua I depois do ataque?
Lauriene – Os Guarani Kaiowa da Te’ýikue estão bastante amedrontados. Uma pessoa foi morta, várias pessoas ficaram feridas, algumas ainda estão no hospital e a situação está bastante tensa. Mas acredito que depois da identificação da TI, os Guarani Kaiowa vão querer ocupar aquilo que o Estado declarou como sendo deles.
ISA – Como os indígenas estão se organizando para retomar a vida depois dessa violência?
Lauriene – O processo de recuperação de posse, as retomadas, contam com o apoio de 100% da comunidade e eles estão se organizando para continuar suas atividades normais, escolares, de saúde, dentro dessas áreas. Professores, rezadores, agentes de saúde, mulheres e velhos, todos estão empenhados nessa organização
ISA – Como você interpreta a violência desse ataque a tiros dos fazendeiros em cima dos índios?
Lauriene – A impressão que me dá é que, para eles terem tomado essa atitude, de chegar num lugar e abrir fogo contra qualquer pessoa indiscriminadamente, é porque eles deviam estar se sentindo muito seguros. É importante ressaltar que antes dessa mudança de governo [o afastamento temporário de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer] ocorriam atentados, mas nunca ataques como esse, dessa forma. Eles atiraram com intenção de matar. As pessoas não foram atingidas por rojões, mas, sim, por armas de fogo. E isso aconteceu logo depois da identificação e delimitação da TI, ainda dentro do período do contraditório. É de se ponderar que os fazendeiros tenham atacado desse jeito porque esperavam que o novo governo anulasse a identificação da terra. A notícia da identificação chegou a Mato Grosso do Sul junto com outras antecipando que o novo governo iria rever isso já que o processo teria sido feito no apagar das luzes do governo Dilma. Não é verdade. O processo começou em 2007 com trabalhos de antropólogos, geógrafos e outros profissionais que fizeram o levantamento fundiário por solicitação da Funai.
ISA – Na sua opinião qual seria a solução para resolver esse impasse?
Lauriene – Só a demarcação das terras pode resolver. É a única solução possível. Enquanto os Guarani Kaiowa não puderem voltar para as suas terras, esse problema não vai se resolver. Enquanto eles não puderem permanecer na terra de onde eles foram removidos, retirados, com muita violência desde o início do século XIX, não vejo solução.
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Fonte: ISA.