Por Júlia Dias Carneiro.
Era 7 de janeiro de 2017. Marielle Franco tinha acabado de tomar posse como vereadora pelo PSOL no Rio, seu primeiro mandato legislativo. No entusiasmo daquele ano que começava, ela e sua parceira, Monica Benício, acompanhavam o show da sambista Mart’nália no Circo Voador, na Lapa.
Marielle esperou começar Namora comigo, música especial para as duas, e abriu a mão de Monica, colocando no meio de sua palma uma aliança.
“Ela estava realizando um sonho da minha vida quando fez isso”, conta Monica. “Era a realização de uma história que foi interrompida muitas vezes, mas nunca sem o desejo de ser vivida.”
Com a voz embargada, ela acena com a cabeça para confirmar que, sim, o bonito anel com pedras de granada em que vinha mexendo ininterruptamente durante a conversa com a BBC Brasil é a aliança.
Monica nos recebe na casa em que ela, Marielle e sua filha, Luyara, viviam juntas havia apenas um ano e três meses, em uma vila na Tijuca, na zona norte do Rio.
Mudaram-se para lá na mesma época do pedido de casamento, enfim consolidando uma história de amor iniciada quando ainda eram jovens, mas interrompida inúmeras vezes pelas dificuldades que enfrentaram ao assumir um relacionamento entre duas mulheres.
Na noite de 14 de março, Monica esperava por Marielle como sempre fazia, acendendo velas e incenso em casa para criar um ambiente acolhedor que compensasse as pautas pesadas com que a companheira lidava no trabalho.
Marielle havia acabado de avisar por mensagem que já estava a caminho de casa quando foi brutalmente assassinada com quatro tiros na cabeça, no bairro do Estácio. O ataque que matou a vereadora de 38 anos e seu motorista, Anderson Gomes, de 39 anos, ainda está sendo investigado.
A entrevista às vezes é interrompida por lágrimas, mas Monica segue em frente. Fala com firmeza sobre o que considera ter sido um crime político contra a parceira, sobre as tentativas subsequentes de difamá-la com notícias falsas na internet e sobre o temor de que sua morte seja usada para reforçar argumentos em prol da intervenção federal na segurança pública no Rio. Para ela, isso seria um segundo crime contra Marielle, crítica feroz da intervenção.
Monica diz que pretende fazer o possível para “honrar a memória e o trabalho dessa mulher extraordinária”. Mas, antes, precisa “conseguir sobreviver” ao assassinato de Marielle – o grande amor de sua vida. “Nesse momento, a minha única luta é pela sobrevivência.”
Mãe preta, mãe branca
Monica veste uma camiseta branca com o desenho do rosto de Marielle. Em um adesivo pregado do lado esquerdo do peito, se lê: “Marielle Vive!”.
Quem entra na vila dá de cara com o mesmo adesivo, colado no centro do portão de ferro pichado. Um longo corredor de concreto dá acesso a casas de classe média. As casas da favela do Morro do Salgueiro, visíveis ao fundo, não estão muito longe dali.
Ao ver o cachorrinho de estimação da casa, a repórter, querendo saber se deveria perguntar pelo nome “dele” ou “dela”, pergunta antes se é macho ou fêmea. “É macho, mas aqui não tem essa coisa de gênero, não”, diz Monica de bate-pronto. Vez por outra sua personalidade espirituosa se expõe em meio ao luto, assim como o jeito para fazer piadas enquanto mantém o rosto impassível.
“O nome dele é Maddox. Ele é preto e branco, porque é filho de mãe preta e mãe branca. Isso é importante”, diz, abrindo um sorriso.
Na parede da sala, um mural pintado por Monica traz dois ícones femininos, Frida Kahlo e a ativista afro-americana Angela Davis, e São Jorge, de quem Marielle era devota. Na mesa abaixo, um retrato antigo mostra Monica, Marielle e Luyara ainda menina.
Monica a conheceu quando Luyara tinha 5 anos e, desde então, começou a tratá-la como filha. Hoje com 19 anos, Luyara está na casa dos avós, em Bonsucesso, onde tem dormido desde que Marielle morreu.
Como figura pública, Marielle não economizava declarações de amor e postagens com selfies sorridentes ao lado da mulher nas redes sociais, geralmente seguidas do hashtag #M2 – uma referência às iniciais do casal – e #nossasfamiliasexistem.
“Não tem outra maneira de sintetizar o que se vivia aqui que não afirmar que nossas famílias existem e que isso era uma configuração familiar. Quer parte das pessoas e da sociedade aceitem isso ou não.”
A afirmação, sempre reiterada por Marielle, vai contra a proposta do Estatuto da Família, um polêmico projeto de lei que busca definir a “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”.
Preconceito
Monica tem 32 anos, é arquiteta e, assim como Marielle, é uma “cria da Maré”, como sempre repetia a vereadora ao contar que nasceu e cresceu no enorme complexo de favelas na zona norte do Rio.
Como a companheira, ela mantém a ligação com a Maré atrelada à vida profissional. Em mestrado na PUC-Rio, vem estudando como a violência influencia a relação de jovens dali com outros espaços da cidade.
Monica e Marielle se conheceram quando tinham 18 e 24 anos, respectivamente, numa viagem de Carnaval com um grupo de amigos para a Praia de Jaconé, em Saquarema (RJ).
“Tivemos um ano de relacionamento como amigas até entender que aquilo era mais que amizade. Por influência religiosa e pelo contexto em que vivíamos, não entendíamos bem o que estava acontecendo. Até que um dia aconteceu um beijo”, lembra Monica.
“As histórias foram acontecendo, foram se intensificando e fomos nos vendo cada dia mais apaixonadas.”
Durante os primeiros sete meses, não contaram para ninguém sobre o namoro. E já estavam juntas havia dois anos quando assumiram de vez a relação.
“Quando a gente assumiu para a família, foi rejeição para todos os lados. Foi muito difícil. Você não tem auxílio na rua, entre amigos, e quando mesmo a família não te dá suporte, o mundo vira um lugar bastante complicado.”
Isso foi mais de dez anos atrás, época em que “nem na Lapa era razoável ver duas mulheres andando de mãos dadas”, lembra Monica, referindo-se ao bairro carioca com a vida noturna mais agitada e plural da cidade, e aos próprios amigos, católicos como Marielle e que também resistiram à relação das duas.
“Éramos duas mulheres que não se encaixavam no estereótipo do que rotulavam como sapatão. Havia riscos na favela. Era perigoso. ‘Vocês gostam de mulher porque não conheceram homens de verdade’. ‘Você nunca conheceu um peru de verdade.’ Ouvimos isso muitas vezes. Às vezes, vinha de amigos mesmo. Mas, quando vinha de estranhos, era amedrontador. Além de tudo, temíamos a possibilidade de um ‘estupro corretivo’.”
A pressão ao redor, ao lado de dificuldades financeiras, acabou colocando o relacionamento em xeque. “A gente terminou muitas vezes, voltou muitas vezes.” Monica teve relacionamentos com outros homens e outras mulheres; Marielle, com outros homens. “Buscar relacionamentos com homens era uma forma de simplificar a vida. Eram histórias mais fáceis de se viver.”
‘Leoa com armadura’
A reaproximação definitiva veio quando Marielle estava pensando em se candidatar para a Câmara dos Vereadores e quis saber a opinião de Monica. Não teve a resposta que queria ouvir. Monica disse ter certeza de que ela faria um trabalho “belíssimo” e que teria seu voto. Porém, de uma perspectiva pessoal, não queria que ela se candidatasse.
“Conheço a Marielle que não é a Marielle que grita, que não é a Marielle que bota o dedo na cara dos outros, que não é a Marielle que tenta parar o caveirão (como são conhecidos os carros blindados usados pelo Bope). E, conhecendo essas fragilidades, sabia que ela teria uma vida muito difícil.”
Marielle, porém, já estava decidida – e a parceira deu seu apoio.
“Era o lugar dela. É o lugar das leoninas, o centro dos holofotes”, considera. “A Marielle tinha luz própria. Não precisava de palco, de microfone, de nada disso para chamar atenção. Era dessas pessoas que os outros percebem quando entram na sala.”
As duas estavam em relacionamentos firmes, mas reataram pouco antes de a campanha começar. A relação, agora, era mais madura, entre duas mulheres e não mais meninas, diz Monica – ainda alternando o presente e o passado para falar da companheira.
“Ela é leonina, e eu sou aquariana, são opostos complementares. Sou extremamente metódica, organizada, racional; ela trazia muita emoção. Isso gerava um equilíbrio harmonioso”, conta.
Monica diz que só uma coisa mudou em Marielle ao se eleger: “Ela me convenceu a deixá-la comprar mais roupas”, ri. Seu guarda-roupa era “um carnaval” de estampas e cores vibrantes. As unhas estavam sempre pintadas cada uma de uma cor. E era Monica quem separava suas roupas de manhã.
“Ela era sempre muito atarefada. Se deixasse, saía com tudo da mesma cor. Eu ficava nervosa”, conta, orgulhosa de “assinar como autora” do estilo da companheira.
Dentro de casa, Marielle era muito diferente da “leoa com armadura” que o mundo conheceu, diz Monica.
“Eu tenho a impressão que ela pendurava a armadura do lado de fora quando chegava e vestia de novo quando saía”, afirma. “Aqui, precisava de afeto, de carinho, queria ser cuidada e cuidava também. Era muito bonito. Tínhamos muita cumplicidade.”
‘Ingenuidade’
Monica não tem dúvidas de que o assassinato de sua mulher – “muitíssimo bem executado, de forma fria, no meio de uma via pública” – foi um crime político.
Os temas delicados com os quais a vereadora lidava reforçam a convicção. Marielle denunciava brutalidade policial e violação de direitos humanos em favelas do Rio. Falava abertamente, mas não sofrera ameaças, e o casal não temia represálias.
“Nesse sentido, acho até que a gente beirava uma certa ingenuidade. A gente nunca teve receio por qualquer fala ou denúncia. Era o trabalho dela, sabe? Ela nunca falou de ameaças ou de um medo real de risco de morte. Isso nunca fez parte das nossas conversas.”
Para Monica, o assassinato foi um crime “contra a democracia”. Ela diz que mais importante do que descobrir quem matou Marielle é descobrir quem a mandou matar.
Marielle fazia críticas veementes à intervenção federal anunciada pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro. Havia sido nomeada relatora de uma comissão formada na Câmara dos Vereadores para monitorar as ações do gabinete coordenado pelo interventor, o general Braga Netto.
Após o crime, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou ao jornal O Globo que o assassinato poderia ter sido planejado “para confrontar ou abalar a intervenção”, levando o crime a reagir.
A afirmação foi vista pelo deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), padrinho político de Marielle, como uma tentativa de usar a morte da vereadora para justificar a intervenção, acusação negada por Jungmann. Para Monica, isso equivaleria a um segundo crime contra a companheira.
“A sensação de segurança que pode ser produzida com a intervenção é só para a zona sul (a área mais abastada do Rio) e o asfalto. Para quem está na favela, ela é mais medo, mais terror, mais dor, mais morte, mais sangue. A intervenção em nada pode ser justificada a partir do que aconteceu à Marielle. Seria mais um crime contra sua memória.”
Difamação
A comoção produzida pela morte de Marielle nas redes sociais foi seguida de uma onda de notícias falsas sobre a vereadora, espalhando boatos de que teria sido eleita com dinheiro do tráfico e defendia bandidos, entre outros.
Monica evitou contato com tudo isso. Tirou os jornais da porta de casa pouco antes da reportagem da BBC Brasil chegar, intocados. Tem evitado ver TV, ouvir rádio, entrar nas redes sociais. Se amigos contam sobre boatos, pede para pararem no meio. Só pede que lhe enviem “as coisas que forem bonitas”.
“A Marielle era uma defensora pelo direito à vida e à igualdade. Coisa que a nossa sociedade não permite para pobre, não permite para negro, não permite para favelado”, diz Monica.
“Vemos nossos jovens negros na favela morrendo diariamente, porque a sociedade insiste em um discurso ignorante de achar que defender direitos humanos é defender bandido. É importante estudar um pouco para não falar tanta besteira, com tanta irresponsabilidade.”
Monica e Anielle Silva, irmã de Marielle, pediram na Justiça que vídeos difamatórios sobre a vereadora sejam retirados do YouTube. Já obtiveram uma vitória parcial, com ordem para a remoção de 16 vídeos. Monica diz que vão continuar lutando.
“Nenhuma mensagem difamatória a respeito da Marielle será tolerada. E isso diz respeito não só à responsabilização da plataforma, mas também daqueles que publicaram e compartilharam. Quando se faz uma publicação difamatória, tem sangue na mão de todo mundo”, afirma.
Viúva da Marielle
Nos dias seguintes ao assassinato de Marielle, houve críticas nas redes sociais de que a mídia não estaria entrevistando a sua viúva, como se fosse uma tentativa de ocultar a relação homossexual (e não uma espera imposta pelo luto). Monica diz não saber nem o que dizer a respeito.
“As coisas foram muito atropeladas. Ainda nem comecei a viver o luto. Ainda acho que, no fim do dia, a Marielle vai chegar em casa. Não consegui absorver a ideia de que a minha mulher não volta mais.”
Monica diz que as manifestações realizadas no Brasil e em cidades no mundo todo para a Marielle “são bonitas e, de certa forma, dão força”. “Porque a gente vê que o trabalho dela fez e vai continuar fazendo diferença”, diz.
“Mas eu trocaria todas essas coisas, todas essas manifestações, e, de forma bem egoísta, até o símbolo importantíssimo que ela já está se tornando para o mundo, para tê-la em casa no final do dia”, afirma.
Os planos para o casamento eram para 2019, escapando da loucura de mais um ano eleitoral. Marielle estava prestes a se lançar como vice-governadora pelo PSOL-RJ, em chapa formada com seu companheiro de partido, o vereador Tarcísio Motta.
O casal também pensava em ter mais uma criança, desejo compartilhado por Luyara. Mas ainda não havia consenso de quem deveria engravidar. Monica diz não ter vontade de gerar, e Marielle já se considerava velha para tal. “Era um plano que seria pensado depois do casamento.”
Ao contrário do preconceito enfrentado pelo casal na juventude, Monica diz que as fotos que postavam juntas nos últimos tempos sempre recebiam palavras de apoio, nunca comentários homofóbicos. “Se dependesse da Marielle, ela postava uma selfie romântica de nós duas por dia. E eu falava: ‘É bom a gente postar coisas de trabalho também, né?'”
Ultimamente, ela diz que sair com Marielle era como estar com uma celebridade, com pessoas pedindo fotos e abraços em restaurantes, na rua, na fila do cinema. “Esse afeto lhe dava força. Mostrava que seu trabalho estava sendo respeitado e fazia diferença na vida das pessoas. Era muito importante para ela.”
Vendo Marielle alçada a símbolo internacional, Monica diz que sua imagem pode ser afastada das causas que defendia, mas não acredita que isso vá acontecer. “Distanciar a sua imagem do que foi a sua luta vai ser um trabalho muito mais difícil do que foi calar a Marielle”, considera.
“O mundo inteiro já está vendo que ela não pode ser calada. E não será.”
*Colaborou Rafael Barifouse, da BBC Brasil em São Paulo